O livro faz parte da coleção Amores Expressos, que lembro ter rendido muita polêmica infrutífera na época. No livro, que divide-se em dois momentos (“Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar.”), Ruffato conta a estória de Serginho, uma figura pacata, que vive uma vida sem grandes ambições. Os dois momentos expressam bem a tensão que levara a este amanuense modesto, peladeiro de fim de semana e funcionário da pagadoria da Companhia Industrial de Cataguases a parar de fumar, como esse cara gregário e boa praça, sem grandes ambições, acaba por se envolver com Noemi que engravida, forçando-o a casar.
Na primeira parte da história, passada no Brasil, vemos Serginho imerso em problemas não necessariamente criados por ele, mas que por força das circusntâncias vão lhe azedando a vida. Primeiro, uma gravidez indesejada. Segundo, um malfadado casamento já condenado desde o princípio a naufragar. Noemi, moça de “idéia fraca,” podia ter bem dado uma outra solução para o destino de Serginho, mas não, prefere ter o filho. Só que tempos depois, o casamento forçado por Carvalho, pai da moça, começa a dar sinais de esgaçamento. Noemi é instável, “ora prostrada na cama o dia inteiro, sem força para trocar a fralda da criança, ora virando noite sem pregar o olho, numa falação sem fim[...].” Os altos e baixos tornam a relação insustentável. Com a mulher ruim da cabeça, com a responsabilidade de Pierre, o filho, em suas mãos, com um emprego que já andava bamba, e a doença da mãe... sua vida entra quase em rota de colisão. Os Carvalhos decidem então internar a moça numa clínica de repouso em Leopoldina e ainda demandam contra o pobre Serginho um processo por maus tratos, negligência e abandono de incapaz. Natural Serginho se sentir esgotado com tamanha adversidade. A resignação de Serginho frete às circunstâncias da vida parece a de um bunda mole mas não é não. Não é homem de desistir fácil, mesmo com todas as adversidades, bem como lhe dissera certa vez a Mãe Célia, que baixava na progenitora da Irineia, uma de suas namoradas. Um dia conversando com os pinguços no bar, indagado sobre “O que você vai fazer da vida agora, ô Serginho.” “Pro enstrangeiro,” ele responde! Destino: Portugal.
Um pequeno parêntese deve ser feito para dizer que o livro, em meio a toda a ziquizira que envolve a vida de Serginho, tem passagens divertidíssimas, como por exemplo quando Serginho fala do tio Zé-Carlim, com quem dividia o quarto nos tempos de Cataguases, e que era fanático por automobilismo a ponto de espalhar cartazes do Emerson Fittipaldi e de sua Lotus pelas paredes do quarto...e que “por ironia, morreu cedo, nem trinta anos, no trevo da saída de Ubá, única vítima da batida entre um ônibus da linha Belo Horizonte-Muriaé e o Chevette do seu Lino [...]”. Ou por exemplo, quando vai conversar com o lacônico português Oliveira, que lhe dá dicas de como é o avião da TAP, “apertado,” “Tem banheiro?” “Tem Comida no avião?” “Passaporte?”...E de quando na cidade se espalha a notícia de que Serginho vai “pra fora”, e o amigo Ivan Cachorro Doido, assim como eu, um encostado do INSS – vide meu perfil no blog –, começa a procurar imóveis para o futuro nababo Sergio na região da rua Humberto Mauro, onde só há residências de bacanas e que Serginho reluta. O amigo prontamente filosofa, “Depois de conviver” com a civilização em Portugal, “Alta cultura,”não ia conseguir mais aturar o povo de Taquara Preta, sem educação, sem modos nem compostura, desclassificado, “Mas lá só moram os picagrossas,” Serginho rebate.
Vemos que na primeira parte do livro há uma caracterização perfeita do ambiente de Cataguases. Não me furtei de pensar, bem Ruffato está escrevendo sobre um protagonista angustiado em continuar vivendo numa cidade pequena cercada de gente pequena, mas ainda assim escreve sobre um habitat de tipos folclóricos facilmente identificáveis na rua, na sua rua. Na segunda parte do livro, sim, causa surpresa pois Ruffato escreve sobre Serginho já em Portugal como imigrante ilegal brasileiro. Ou seja, está escrevendo sobre uma realidade que não é a sua, que requer inventividade e mão firme para prender o leitor. Ou seja, sem muito exagero pode-se dizer que há um século, um mestre escrevia na periferia do capitalismo, e que hoje dada as circunstâncias que levam milhões de brasileiros como Serginho a emigrar, Ruffato escreveu um livro no centro do capitalismo, sobre a visão do imigrante, em outras palavras sobre a visão do periférico no centro do capitalismo, àquele que não só está à margem da lei mas também de uma cultura que por mais que os acordos ortográficos se esforçem é distinta. Em Portugal, convive com suas limitações e frustrações que vão desde o preconceito das autoridades, a competição férrea dos novos imigrantes vindos de leste europeu, a falta de emprego, de dinheiro e de amor.
O que admito no Ruffato é sua liberdade de expressão, seu realismo de falas naturais sem a idealização de uma linguagem artificial, tampouco na evocação de uma linguagem pobre. Os personagens incrivelmente reais não alimentam sentimentalismo barato, mas nem por isso evocam a indiferença do leitor. Sua autêntica razão talvez resida no fato de aurtorizar discursos, dando visibilidade, dando voz a personagens que não tem voz, nem na literatura, nem na sociedade. Tais discursos já haviam sido desvelados por Drummond, Graciliano, Dyonelio Machado e uma série de outros autores, mas este, apesar de um livro pequeno, na forma quase de um conto, prova por que Ruffato está entrando para o time da ficção contemporânea no Brasil com uma prosa fluida de personagens aparentemente prosaicos mas não necessariamente vulgares, enredos breves mas não necessariamente superficiais, e um conteúdo denso que foge das banalizações.