Já se disse que o estilo é parecido ao de Coetzee. É bem verdade, a história é narrada em discurso indireto livre, em terceira pessoa do singular, bem ao estilo do sulafricano. O narrador é distanciado e racional em demasia, não sugerindo em momento algum empatia ao leitor. Diga-se de passagem, afirmo que o Tezza é escritor dos bons, pois sustentar o ambiente de desilusão de um personagem ressentido com o mundo e consigo é algo que imagino requeira um esforço descomunal, pois até agora só lera em escritores como Roth e Coetzee tal ausência de compaixão com seus protagonistas, suas criaturas. Tezza ousa. O seu personagem inominado quase chega perto da complexidade resignada de Seymour Levov ou da frieza contrita de David Lurie. Quase.
A idéia da paternidade de um filho com Síndrome de Down cai-lhe como uma bomba ferindo o orgulho, frente aos parentes e amigos, com a idéia da paternidade fracassada. Por ela, e somente por essa razão, aquela espécie de jovem pequeno-burguês - com aventuras ilegais em Portugal e na Alemanha, que prolonga a adolescência de boemia até os 28 anos – com complexo de superioridade suficiente para iludir-se quanto ao pragmatismo da vida, esfacela-se. Transforma-se numa pessoa mal resolvida. A paternidade em tais termos, condena o protagonista a ter contato com um mundo de hospitais públicos, gente pobre – à qual despreza - e médicos insensíveis ao seu problema que concebe como lotérico. Talvez por isso, chegue a pensar, nem tanto como nos devaneios de Cronos que devora os filhos, que seria bom se o filho morresse cedo - talvez de acidente, ou por um acaso lotérico tal como aquele que o fez cair nos braços daquele pai. Pensar se pensar isso é moral ou não, deixo para que outros decidam. Só sei que, ainda que de forma bastante episódica no livro, nosso pequeno Mefistófeles, baseado nessa esperança, tenta escrever um grande poema sobre suposta morte trágica do filho, e tenta publicá-lo. Arrepende-se logo em seguida. Enfim, há algo de culpa cristã no personagem. Tezza, dessa forma, cria um protagonista de frieza analítica, aliada a empáfia niilista, que revela, em sua arrogância intelectual, o que quer ver de errático na natureza dos fatos, tal como um David Lurie.
É um livro de saltos grandes no enredo. Dos exercícios motores da infância, aos primeiros anos na escola, passando pelas aulas de fonoaudiologia, pelas tentativas de alfabetização, pela certeza de que aos 8 anos Felipe não poderia frequentar a escola até nascimento da segunda filha – esta sem Síndrome – há elipses no enredo. A filha nunca aparece. A mãe das criancas, por sinal, aparece para parir, sustentar a casa e desaparecer novamente. Todos os personagens secundários, incluindo o filho eterno, me passaram a impressão, apesar de serem peças chave na narrativa, de frequentar a estória apenas para tornar a luta por projeção do pai, escritor mediocre e acadêmico inexpressivo, numa luta épica pela recuperação da idéia de paternidade.
Pouco menos de um quarto para final do livro, a estória esgota certas possibilidades de distanciamento e dá uma certa virada para recortes cotidianos mais sentimentais que mostram um pai mais maduro, adaptativo e sociável. Certo dia Felipe desaparece. O pai se desespera e enquanto procura pelo filho é tomado por uma sensação de vazio. Felipe já com quase 20 anos ainda não lê nem escreve, mas consegue ter noções de tempo pelos prazos dos jogos do Campeonato Brasileiro, usa internet, cria e nomeia pastas no computador. Este episódio da perda do filho poderia incorrer num aspecto redentor do pai. Mas Tezza toma extremo cuidado com essa armadilha que poderia transformar o livro numa bomba, pois seria muito fácil transformar este enredo numa série de fatos sentimentais encadeados em torno à culpa, à compassividade, ou à redenção do pai - temas que Tezza, como grande escritor, evita cuidadosamente.