O Atraso de Mefistófeles


Em 2008 Cristovão Tezza levou todos os prêmios. De Jabuti a Portugal-Telecom. “O Filho Eterno” é sem dúvida, um livro bem escrito, mas agora que a poeira em torno ao livro abaixou, vamos aos fatos, às linhas que alinhavam o enredo. Escrevendo uma narrativa auto-reflexiva, realista e pouco dinâmica, Tezza criou sobre um personagem com Síndrome de Down, uma mãe ausente, uma filha de poucas aparições e a figura de um pai acidental: o protagonista é um escritor que de golpe em golpe recebido vai se tornado um fracassado resiliente. Um escritor eterno: o pai eterno.'

Já se disse que o estilo é parecido ao de Coetzee. É bem verdade, a história é narrada em discurso indireto livre, em terceira pessoa do singular, bem ao estilo do sulafricano. O narrador é distanciado e racional em demasia, não sugerindo em momento algum empatia ao leitor. Diga-se de passagem, afirmo que o Tezza é escritor dos bons, pois sustentar o ambiente de desilusão de um personagem ressentido com o mundo e consigo é algo que imagino requeira um esforço descomunal, pois até agora só lera em escritores como Roth e Coetzee tal ausência de compaixão com seus protagonistas, suas criaturas. Tezza ousa. O seu personagem inominado quase chega perto da complexidade resignada de Seymour Levov ou da frieza contrita de David Lurie. Quase.

A idéia da paternidade de um filho com Síndrome de Down cai-lhe como uma bomba ferindo o orgulho, frente aos parentes e amigos, com a idéia da paternidade fracassada. Por ela, e somente por essa razão, aquela espécie de jovem pequeno-burguês - com aventuras ilegais em Portugal e na Alemanha, que prolonga a adolescência de boemia até os 28 anos – com complexo de superioridade suficiente para iludir-se quanto ao pragmatismo da vida, esfacela-se. Transforma-se numa pessoa mal resolvida. A paternidade em tais termos, condena o protagonista a ter contato com um mundo de hospitais públicos, gente pobre – à qual despreza - e médicos insensíveis ao seu problema que concebe como lotérico. Talvez por isso, chegue a pensar, nem tanto como nos devaneios de Cronos que devora os filhos, que seria bom se o filho morresse cedo - talvez de acidente, ou por um acaso lotérico tal como aquele que o fez cair nos braços daquele pai. Pensar se pensar isso é moral ou não, deixo para que outros decidam. Só sei que, ainda que de forma bastante episódica no livro, nosso pequeno Mefistófeles, baseado nessa esperança, tenta escrever um grande poema sobre suposta morte trágica do filho, e tenta publicá-lo. Arrepende-se logo em seguida. Enfim, há algo de culpa cristã no personagem. Tezza, dessa forma, cria um protagonista de frieza analítica, aliada a empáfia niilista, que revela, em sua arrogância intelectual, o que quer ver de errático na natureza dos fatos, tal como um David Lurie.

É um livro de saltos grandes no enredo. Dos exercícios motores da infância, aos primeiros anos na escola, passando pelas aulas de fonoaudiologia, pelas tentativas de alfabetização, pela certeza de que aos 8 anos Felipe não poderia frequentar a escola até nascimento da segunda filha – esta sem Síndrome – há elipses no enredo. A filha nunca aparece. A mãe das criancas, por sinal, aparece para parir, sustentar a casa e desaparecer novamente. Todos os personagens secundários, incluindo o filho eterno, me passaram a impressão, apesar de serem peças chave na narrativa, de frequentar a estória apenas para tornar a luta por projeção do pai, escritor mediocre e acadêmico inexpressivo, numa luta épica pela recuperação da idéia de paternidade.

Pouco menos de um quarto para final do livro, a estória esgota certas possibilidades de distanciamento e dá uma certa virada para recortes cotidianos mais sentimentais que mostram um pai mais maduro, adaptativo e sociável. Certo dia Felipe desaparece. O pai se desespera e enquanto procura pelo filho é tomado por uma sensação de vazio. Felipe já com quase 20 anos ainda não lê nem escreve, mas consegue ter noções de tempo pelos prazos dos jogos do Campeonato Brasileiro, usa internet, cria e nomeia pastas no computador. Este episódio da perda do filho poderia incorrer num aspecto redentor do pai. Mas Tezza toma extremo cuidado com essa armadilha que poderia transformar o livro numa bomba, pois seria muito fácil transformar este enredo numa série de fatos sentimentais encadeados em torno à culpa, à compassividade, ou à redenção do pai - temas que Tezza, como grande escritor, evita cuidadosamente.

Não quero tocar no aspecto auto-biográfico da obra de Tezza que certamente uma boa estratégia de marketing criou em torno ao "O Filho Eterno", pois este certamente não foi o motivo que me levou a lê-lo - - já que lera "Trapo", um livro de enredo mais vibrante e rico. Muitos disseram que este foi o livro do ano, que foi um livro corajoso da parte do autor. Esta é uma decisão que deixo para que outros a tomem. No fundo no fundo esta é a estória ficcional, mais que de um filho - como o título do livro nos leva a crer -, de um pai. Como ficção, é a estória de um homem que virou homem um pouco tarde, acreditando que sempre há tempo para esse tipo de coisa. Como "auto-biografia" - e duvido que seja - , elas por elas, melhores são as do Rui Castro. Como ficção, ótimo livro.
Música do dia. Franz Schubert - Death and the Maiden - III.Movement Excerpts

2 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Chico, ainda não tive a oportunidade de ler o premiado, contestado e também elogiado livro do Tezza. Certamente ficarei influenciado pelo seu texto, conto lá no meu mundo quando puder opinar melhor.

Falando em Seymour Levov, vai lá no blog do Barros
(http://barrosbar.blogspot.com) tem resenha sobre "pastoral americana".

ilusão da semelhança disse...

Kovacs, recomendo muito este livro do Tezza. Apesar de ter gostado mais do Trapo. Agora ando lendo um angolano novo chamado Ondjaki - recomendacao de um amigo dos Acores - que eh bem bom.

Vi que voce anda lendo o ultimo do Saramago. Assim que puder lerei e trocamos nossas ideias. ok.