Ser moderno por engano

A crônica de hoje do Veríssimo, particularmente a de hoje, me fez pensar que o cronista voltou aos seus bons e velhos tempos. A crônica que a principio nem era tão excepcional, pois era na verdade era uma espécie de fragmento de duas crônicas diferentes sobre o mesmo tema. Mas eu gostei um montão pois o Veríssimo fala exatamente exagero e do auto-engano. Fala do que todos acreditam ser realidade, das frases que pensamos terem sido ditas e imortalizadas, em peças de teatro ou filmes, mas que na verdade foram proferidas noutras circunstâncias totalmente diferentes - ou que nem serquer foram ditas.

De uma só porrada, uma crônica bem leve me trouxe uma série de dúvidas sobre diálogos em filmes que assisti e livros que li.

Por exemplo, sobre famosa ‘toque outra vez, Sam’, que todos juram ter ouvido em Casablanca, é fato que nunca saiu da boca de Bogart. Isso eu me lembro. Na verdade, isso foi uma invenção muito bem bolada do Woody Allen - segundo o Millor o infeliz que deu certo - num filme de 72 chamado exatamente Play it Again, Sam.

O Verissimo não se lembra exatamente se a frase “é preciso mudar para que as coisas continuem como são” foi dita pelo principe de Salinas ou se pelo seu sobrinho Tancredi na versão de Il Gattopardo do Lampedusa que Luchino Visconti plasmou na tela.

Na verdade, eu tambem não chego a me lembrar exatamente quem disse a frase, mas ouso pensar sem certeza que foi dita pelo patriarca cínico, irônico e resignado interpretado pelo Burt Lancaster. Lembrar, não lembro. Lembro, sim, uma da mais bem boladas cenas que ja vi no cinema. A cena com o Burt Lancaster fazendo a barba na frente do espelho quando o Alain Delon chega e começa um diálogo por trás dele, ambos olhando para o espelho e consequentemente um para o outro e conjecturando sobre como seria o futuro se as tropas de Garibaldi obtivessem sucesso. Explico: O 'novo' Alain Delon às costas do 'velho' Burt Lancaster. Ambos olhando para a frente e vendo suas imagens refletidas, e se abusássemos do intelectualismo barato, invertidas.

Depois da tremenda sacada de Visconti muita gente usou essa metáfora ‘do olhar a frente mirando o espelho', para expressar que de fato o que se enxerga no espelho somos nós mesmos dentro de um contexto qualquer olhando para trás, enfim, para o passado.

Muita gente usou essa idéia concebida na ficção e transplantada no cinema, para explicar o caráter conservador das ondas de modernização nos países da península ibérica e na América Latina nos últimos 50 anos. Varios foram buscar as origens da Dependência no Pacto Colonial, sem explicar a vergonha histórica do nosso velho eufemismo de espelhos. Ou seja, a idéia de que 'ao se mudar sem mudar muito', salvo ledo engano, sempre esteve um pouco além da ficção e um tanto aquém da realidade - tanto na Italia do conde de Salinas e no Brasil dos Luzias e Saquaremas.

É por isso que eu gosto desse jeito de quem não quer nada do Verissimo. Sempre tranquilo, mas sempre dando suas estocadas - metaforicamente falando de cinema e literatura - até quando não quer. Como hoje.

Cabra-cega - Carlos Nascimento Silva

Alguns motivos me levaram a ler Cabra-cega. Um deles, erroneamente, foi o de ter sido um livro premiado com o Jabuti. Outro motivo, um tanto controverso também, foi o de falar dos anos 60, mas sem invocar os heróicos e teratológicos feitos daquela geração como se as seguintes e anteriores não existissem ou tivessem importância menor. Sei que é pouco, mas assim mesmo foi um dos motivos que me fez tirar o livro das estantes.

O enredo transcorre entre o dia 15 de julho de 1964 e os dias atuais. Começa com um assassinato de Sue Anne num lugar chamado Clipple Creek pelo jovem John Boy e termina nos dias atuais, com personagens, que ainda que nao presentes na cena do assassinato estavam ligados a ela por motivos inexplicaveis, já sexagenários e cheios de marcas, dessas que a vida deixa. Mesmo sem saber, quatro personagens alheios a cena, no Brasil e nos Estados Unidos, passam a ter seus destinos envolvidos por esse episódio. Ainda jovens, John Inward Jr ( um cientista e acadêmico americano), Marcella(uma mulher enigmática que procura a todo custo não se envolver emocionalmente com Jonas) , Ronaldo e Tangjo (Uma coreana casada com o português Carlos Augusto que conhece nos tempos de universidade nos EUA), passam a ter sensações estranhas, espécies de Déjà Vu, como se fossem testemunhas involuntárias do assassinato. Essa ligação extra-sensorial acaba acompanhando-os por toda a vida como uma metáfora de cabra-cega – aquele joguinho infantil onde uma delas, a cabra-cega, tem os olhos vendados e procura agarrar uma do grupo.

Carlos Nascimento escreve muito bem. Envolve o leitor com sua maneira precisa de narrar e pereceber detalhes da alma humana (o medo do desconhecido, o inusitado da amizades entre estranhos, a carga de sedução que há nas relações humanas, as pequenas perversidades que envolvem o amor, as esperanças perdidas de uma geração idealista, a incomunicabilidade básica e o mal estar com individualismo, enfim a procura às cegas de amizade, amor, companheirismo ou cumplicidade), mas a estória para mim deixou de se tornar interessante no momento em que essa incapacidade básica do serumãnu em se comunicar plenamente pela voz, palavra e gesto vaza na possibilidade da comunicação extra-sensorial – chave com que fecha os dilemas dos personagens.

Tudo bem, há até uma tentativa do autor em demonstrar a frustração e o dilema do jogo de cabra-cega nos personagens que mesmo tirando a venda negra e utilizando a internet para os aproximarem, continuam a não se enxergarem ou compreenderem totalmente nas beiras do século XXI - e para mim esse foi um dos pontos altos do livro. Mesmo assim acho que o livro perdeu um pouco no final. Não sei bem explicar essa minha frustração com a frustração dos personagens. Talvez esse tenha sido mesmo a intenção do Carlos Nascimento – que segundo o Umberto Eco em Interpretacao e Superinterpretação continua sendo o velho dilema do intentio auctoris e do intentio operis. Talvez, lamentavelmente para mim, um cara cheio de manias com o que consigo ver e desconfianças com o que não consigo enxergar, seja por miopia ou ceticismo, eu não tenha entrado nessa extra-sensorialidade toda do intentio auctoris . Mesmo assim um livro com sacadas geniais tais como as citações que fazem o leitor viajar antes de cada capítulo, e particularmente os diálogos entre Jonas e Marcela!!

Spellbound

Spellbound não é um dos melhores thrillers psicológicos de Hitchcock, mas ainda assim vale a pena ser assitido com atenção. A bem da verdade, Freud, Adler, Jung, Fromm e Lacan devem estar se revirando no túmulo, e suponho que um monte de psicanalistas devem igualmente ter engulhos ao ver o filme, mas como não sou psicanalista e não tenho compromisso mínimo com certezas, falseamento de hipóteses ou conclusões sobre o que quer que seja, gostei das linhas gerais e do argumento do filme. Parece até que Hitchcock persuadiu pessoalmente David Selznick a comprar os direitos do livro de John Palmer, The House of Dr. Edwards, por 40 mil dólares. Não me lembro bem se esse é um daqueles filmes que Hitchcock estava obrigado, por um contrato assinado com Selznick no início dos anos 40, a cumprir. Em todo o caso o filme parece que foi feito meio aos trancos e barrancos entre a negligência de Hitchcock e a obsessão de Selznick

Porém, nada explica tamanha animosidade dos psicanalistas. Principalmente por que estes certamente não tomaram ciência do nome que o português deu ao filme: “Quando o Coração fala mais Alto” ou algo assim. Isso sim, digno de indignação!! Até por que o nome original poderia ser um jogo de palavras com o sentido de iludido, encantado ou fascinado; ou num trocadilho slang, spell binder, poderia ser uma espécie de orador envolvente. Seja como for, algo muito mais pertinente que “Quando o Coração fala mais Alto”! Né não?

Para resumir, Ingrid Bergman, em seu papel de mulher independente e desejável, é uma jovem psicanalista que trabalha na clínica Green Manors. Por sua crença na ciência, a jovem doutora Constance Peterson nunca havia deixado a paixão interferir em seu trabalho. Entretanto, quando futuro diretor do lugar, Dr. Edwards (Gregory Peck), chega, suas certezas se abalam.

O tom de mistério começa quando Dr Edwards começa a agir de maneira estranha, expondo os efeitos avassaladores de sua amnésia e expondo suas fragilidades aos seus pares e pacientes. Seus pares, passam a perceber os lapsos de memória e chegam a assumir que o Dr. Edwards possa não ser aquela figura que ali se apresenta, principalmente baseados na negação de que o doutor Murchison tenha encontrado Dr. Edwards antes. Um dos primeiros a desconfiar do jeito esquisitão de Edwards é exatamente o mentor intelectual da doutora Constance Peterson, Dr. Brulov, interpretado por Michael Chekhov. Dr. Brulov acredita que algumas pessoas vivem socialmente em constante estado onírico (ãh, hã..), e inclusive o camarada até lembra um pouco o semblante do Freud.

Então, a doutora Constance Peterson, percebendo o comportamento vacilante do doutor Edwards tenta ajudá-lo a provar que ele é ele mesmo, tentando resgatar seu passado atormentado.

O fato é que o verdadeiro Dr. Edwards não está na clínica e está provavelmente morto. Então as perguntas que se seguem são. Onde está o Dr. Edwards? E quem é aquele camarada que se faz passar pelo Dr. Edwards?

Nesse momento o filme degringola um pouco numa espécie de psicanálise primitiva e nem Hitchock consegue contê-lo. Em parte por que Hitchock delega as imagens do inconsciente do Dr. Edwards a Salvador Dalí em sequências pra lá de surreais. As portas que se abrem no beijo de Constance e Edwards, os sulcos que Edwards vê no tailler de Bergman, enfim, uma série de imagens que supostamente seriam o retrato da mente conturbada de Edwards que não me convenceram. O produtor , o todo poderoso Selznick, chegou a contratar um terapeuta para orientar as gravações, o que levou a Hitchock ironizar “my dear, it’s only a movie!”
Uma curiosisdade. Muita gente criticou a sequência idealizada por Dalí para Spellbound. Muita gente também disse que Dalí não entendia nada de cinema. O que não é de todo verdade já que ele e Bruñuel haviam escrito Un Chien andalou e L’Âge d’or no final dos anos 1920.

A dúvida sobre se Dalí entendia mesmo de cinema ou não é irrelevante, mas o fato de Dalí saber que Bruñuel era cineasta do bons e e se calar ao saber que este passava os maiores perrengues em NY no início dos anos 40 trabalhando para Museu de Arte Moderna como dublador para a Warner Bros mostrava a animosidade sintomática entre ambos. Aliás a divergência entre ambos começou em L’Âge d’or, após uma série de desentendimentos entre Bruñuel e Gala – mulher intransigente de Dalí e que consta que Bruñuel tenta estrangular durante as filamgens de L’Âge d’or - , e que duraria para toda a vida. A divergência se concretiza quando Bruñuel edita o filme na França e não dá os créditos a Dalí. Dalí, então, magoado, escreve no início dos anos 40, A vida secreta de Salvador Dalí, e expõe os detalhes dos bastidores do filme, bem como as simpatias comunistas de Buñuel. Em virtude da cachorrada, Bruñuel perde o ganha pão do MoMA em 1943 e o filme Spellbound tem suas sequências oníricas realizadas não pelo melhor cineasta, mas pelo camarada bom de marketing que deu uma imagem ao inconsciente, e transformou essa imagem em mercadoria, e à mercadoria da imagem um fetiche para pendurar na sala de jantar.

Last but not least, o culpado da morte do verdadeiro Dr. Edwards não era o ‘Dr. Edwards’ que lembra finalmente de sua identidade. Isso não o livra do xilindró, pois junto aos fatos do passado, as lembranças revividas revelam os detalhes sobre o acidente que ocasionou a morte do irmão – detalhe que torna o suspense da trama tesa até a penúltima cena, já que a última é a do beijo, pois como diria David Lynch isso é Hollywood.



Bacana também são as piadinhas calhordas do Dr. Alex Brulov: “Good night and sweet dreams… which we’ll analyze in the morning” ou “ women make the best psychoanalyst until they fall in love. After that they make best patients”

O Homem de Fevereiro ou Março

Um cara na Florida está vendendo, no site Abebboks, em consignação, parece, para uma tal associação de amigos de uma biblioteca qualquer no Phoenix no Arizona, uma tradução do Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos por nada menos que US$ 637.75. Deve haver algum engano, obviamente, até por que o bigodudo do Maryion Meyer da AstroLogos books, com filiais em Londres e Nova York, está há meses tentando vender O Homem de fevereiro ou março, publicado pela Artenova em 73 – e com certeza mais raro - por US$ 115.00, mas tá difícil. De qualquer maneira Rubão deve estar rindo de orelha a orelha em ver seus livros sendo vendidos a preços tão... módicos.

Mas, pelo conjunto da obra, ele merece!!


Detalhe: O Homem de Fevereiro ou Março era vendido nos idos de 1973 por Cr$ 6,00 - sabe lá quanto isso valia no tempo de Médici!

O Túnel

El túnel (1947), de Ernesto Sábato, é um desses livros curtos que não chegam a prender o leitor mas o inquietam por passar um certo vazio, uma certa crise da existência que ultrapassa os limites da compreensão. O tema da inadaptação do indivíduo à sociedade contemporânea foi sem dúvida um dos temas prediletos da Escola de Frankfurt, e seria demasiadamente inóspito ambientá-lo no enredo de uma novela até que - primeiramente Camus com L’Étranger(1942) - Sábato se aventurasse a escrever a estória de Juan Pablo Castel e de como este assassinou a Maria Iribarne.

Já na primera página, sem rodeios, ele começa justificar o ato.

Castel é um pintor que desenvolve uma estranha obsessão por uma das apreciadoras de um de seus quadros. Num de seus vernissages, o pintor se admira com a atenção que uma mulher deposita num de seus quadros, ao notar um detalhe que havia passado despercebido por todos os críticos, mas não desapercebido por Iribarne. O detalhe. Uma janela onde uma mulher olha para o mar. Então, o pintor, sem maiores explicações, decide procurar a mulher por toda a cidade numa busca desesperada por não se sabe exatamente o que.

Em meio a procura, traça e fantasia uma série de possibilidades para encontrá-la, abordá-la, puxar um papo e conhecê-la. O mais interessante é que em meio a uma série de suposições e probabilidades quase matemáticas de tão logicamente traçcadas, Castel a encontra por obra exatamente do acaso, numa das ruas de Buenos Aires e a segue até seu trabalho. Dois dias se seguem até que Castel telefone e descubra que há um homem na vida de Maria Iribarne. Telefona novamente e a empregada diz que há uma carta para ele. Castel, desesperado, vai até a casa de Maria e encontra Allende, um homem mais velho e cego, que que se diz seu marido e lhe dá a carta de Maria. Allende diz que Maria esta numa fazenda fora de Buenos Aires com Hunter, primo do próprio Allende.

O que se segue é uma evidente rejeição de Maria a todas as tentativas de Castel em conquistá-la. Confundido e decepcionado, Castel começa a beber e frequentar prosíbulos. Escreve uma carta a Maria e logo em seguida se arrepende do conteúdo pois diz na missiva que não crê que seu amor a ele e a seu marido possa conviver com o amor a Hunter, com que acredita estar alimentando um romance adúltero. Tenta recuperar a carta ja despachada na agência postal sem sucasso. Pede, então, ao telefone, que Maria o encontre pois ameaça se suicidar.

Maria não atende ao chamado de Castel. Quando este novamente chama para sua casa, descobre que ela já havia retornado para a fazenda. Decide então partir para a fazenda armado de uma faca. Já na fazenda, Castel lembra-se dos momentos felizes com Maria. Nesse momento já não se sabe o que é realidade ou absessão em suas discussões absolutamente intelectualizadas e sua cabeça totalemente conturbada, transtornada pela incompreensão dos críticos, o amor não correspondido de Maria, e a indicação de que nem sequer Allende, Hunter ou Lartigue – amigo de Hunter – o levavam a sério. Suas tentativas de justificação dos mínimos atos levam uma certeza ao leitor. A do pessimismo deixado entre as projeções e a realidade. Nesse momento Castel pronuncia a frase que fecha um livro cheio de obsessões e pessimismos: “en todo caso había un sólo túnel, oscuro y solitário: él mío, el túnel en que había transcurrido mi infãncia, mi juventud, toda mi vida.”

Quando chega à fazenda mata a Maria Iribarne. Logo em seguida telefona para Allende e confessa que assassinou a Maria justificando que esta o enganava. Allende de revolta contra Castel , que se entrega a polícia, enquanto Allende se suicida.

Enfim, é um desses livros que não prendem o leitor, mas deixa de alguma forma uma marca incômoda. Aquela da presença de Juan Pablo Castel, assim como Mersault, de maneira análoga, talvez, havia deixado naqueles que leram O Estrangeiro há anos atrás.

Pequena biografia numa visita inesperada


Ethan é um desses caras, que aparecem de vez em quando com uma mala cheia de bagulhos, que pedem pra dormir na tua casa, que comem tua comida, que molham teu banheiro todo, que não levantam para sequer lavar o prato em que comeu e vão embora deixando a sensação de que tudo isso poderia ser suportado só por que é um desses caras que a gente não sabe bem o por quê mas é um cara bacana. Além de ser meio esparramado, ele é um economista muito esquisito, pois originalmente era engenheiro formado pela Technion Israel Institute of Technology. Um cara estranho, repito, pois além de entender muito de micro e macro economia, lê muita literatura e adora cinema – e isso, diga-se de passagem, esse Humanismo todo, como todo mundo sabe, é muito perigoso, e para um economista mais ainda....

Não pára aí. O cara gosta de Tarkovski, Antonioni, Truffaut, toca Villa Lobos ao piano e tem irmão maestro em Amsterdã que gosta de Egberto Gismonti, e agora ainda está lendo os irmãos Karamazov. Diz que se um dia votasse na vida votaria no Labor Party. Mas isso, já dizia o Freud, vem dos pais... O pai, um cara impressionantemente boa gente e pessoa boníssima que me chama ‘Cheeeco, the brrrasssilian frrriend’. É um sobrevivente que cresceu órfão de pai e mãe – coisa triste e tenebrosa que nem é bom falar – mas que obviamente não se entregou. Viveu muito, entrou pra marinha mercante, viajou o mundo todo, conhece muito de jazz (diz que ja viu Monks e Coltraine tocando no Blue Note), música brasileira, e futebol podendo dar a escalação de 70 de cabeça. Muita gente pode dizer com certo nativismo de princípio, até aí voce não disse nada, ô mané... mas nunca se esqueça que ele bem podia achar que a capital do 'Brazil' é Buenos Aires.... e que Monks é o plural de monkey.


Enfim, Ethan, após ter vindo dar aulas de verão em Maryland fez questão de visitar na semana passada, pra comer minha comida toda, e dormir no sofá, e deixar o banheiro todo molhado antes de retornar a Bruxelas, onde vive amancebado com a Marisa. Dessa vez, além de tudo, trouxe umas três caixas de livros para que eu os guardasse - não sei onde. Disso eu não me queixo, pois após uma detalhada explicação sobre as expectativas do mercado imobiliário americano, as políticas de securitização de bens e dívidas que as financeiras americanas implementaram após as crises asiática e mexicana, e como tudo isso afetou a crise da bolsa de São Paulo nas semanas passada, ainda de quebra ganhei por comodato um monte de livros bacanas. Um deles, um pequenininho do historiador americano Eric Foner, A Short History of Reconstruction, 1863-1877, comecei a ler ontem e já avancei dezenas de páginas. Não consigo largar. É impressionante como escreve bem. Parece que escreveu o livro exclusivamente para manés como eu, verdadeiras dízimas periódicas próximas do zero, zeros à esquerda, em economia.

As explicações de Ethan, ao tentar me convencer que é ótimo para o Brasil, hoje, ser uma das maiores economias integradas ao mundo financeiro internacional ( segundo ele nem China, nem India o são por não estarem totalmente integradas), foram ao mesmo tempo assustadoras mas de valor ímpar. Ele garante que se o pais quebra pra valer, com as reservas que temos - talvez uns 100 bilhões de dóla - aguentamos uns seis meses uma gestão de risco antes do bu-ra-co! Enfim, nada que eu não aprendesse lendo um The Economist, mas que sinceramente não tenho a menor paciência. Por isso relevo aquela porcalhada que o Ethan fez no banheiro.

Bolsa-Família

Sempre aprendemos na escola que o Brasil é um país grande e o quinto mais populoso do mundo. O Brasil é um país grande e tem 189,5 milhões de pessoas que nasceram no Brasil e portanto são consideradas brasileiras. Apesar de serem todos brasileiros, os nascidos no Brasil, nem todos são iguais. Ou melhor, apesar de os nascidos no Brasil serem brasileiros, exitem brasileiros que se diluem em estatísticas – ou seja, existem apenas como números para um ramo das matemáticas aplicadas que recorre ao cálculo das probabilidades para estabelecer hipóteses com base em acontecimentos reais, com o fim de fazer previsões. Prova disso é que o Brasil, que é o quinto pais mais populoso do mundo, possui um programa social que assiste a famílias desamparadas chamado Bolsa-Família. O programa Bolsa-Família beneficia estatísticamente 48,5 milhões de pessoas, nascidas no Brasil e portanto brasileiras. Infelizmente, um em cada quatro brasileiros necessita do Bolsa-Família. Parte do grupo de três em cada quatro brasileiros critica o programa Bolsa–Família, pois acredita que um em cada quatro brasileiro não prosperou na vida por conta de sua individual incapacidade em perceber que, brasileiros ou não, todos nascem iguais, em igualdade de condições, e com o dom divino do Individualismo Possessivo. Falaciosamente, parte do grupo de três em cada quatro brasileiros invoca a Locke para explicar estatisticamente o que pilantramente justifica uns serem diferentes dos ( ou melhores que) outros.

Fato é que um em cada quatro brasileiros faz parte de uma estatísitca incômoda. Aqueles que não estão no grupo das estatísticas incômodas, e portanto se incomodam com os números e os propósitos do programa Bolsa-Familia, criticam o Programa argumentando que é assistencialista. Porém, na prática a teoria é outra. Esclareço didaticamente: o valor do benefício vai de R$ 18,00 a R$ 112,00, que provavelmente é o valor de um jantar de um dos membros do grupo que não está no grupo do das estatísticas incômodas, ou seja, o grupo dos incomodados, mas que critica o governo e ao grupo dos estatisticamente incômodos sem se dar conta que há uma não desprezível inverosimilhança entre os R$ 112,00 gastados num jantar, digerido e excretado em 24-48 dependendo do metabolismo intestinal do incomodado, e os R$112,00 que uma família de cinco pessoas necessita para sobreviver durante um mês. Assim sendo, orçamento do Bolsa-Família é de 8,7 bilhões de reais e por parecer muito para aqueles que não estão no grupo das estatísticas incômodas, ou seja os incomodados, é um programa que recebe muitas críticas. Para incomodar mais ainda ao grupo dos que não estão no grupo das estatísticas incômodas, e portanto entram na estatísticas dos confortavelmente incomodados, o programa deve ser aumentado em 400 milhões antes do fim de 2007, incomodando ainda mais àqueles que já se sentem incomodados e que já provavelmente digeriram o jantar de, suponhamos, R$ 50,00 de ontem a noite.

Assusta que 30,3% dos beneficiados está na faixa entre 7 e 15 anos. E assusta mais ainda a crueldade com que uma pessoa de 65 anos de idade é jogada, estatisticamente falando, nafaixa de 1,4% to total de pessoas que não sobreviveriam sem o mesmo valor gasto por um comensal que gasta 50 reais num jantar trivial. Talvez os incomodados ainda não saibam, mas 69,2% dos beneficiados vivem em zonas urbanas.

Entristece o fato de que Brasil é um país grande e o quinto mais populoso do mundo, com 189,5 milhões de pessoas que nasceram no Brasil e portanto são consideradas brasileiras, e que apesar de serem todas brasileiras, nascidas no Brasil, nem todas são iguais, ja que 48,5 milhões delas, ou seja, um em cada quatro dos brasileiros não tem escolha - estatisticamente falando.



Quem quiser conferir tampe o nariz, a bra e leia com atenção o Estado de São Paulo de hoje.

A Segunda Morte de Edgard Allan Poe


Há um fato inconstestável na portuária e industrial cidade de Baltimore. Todo o dia 7 de outubro, aniversário da morte de Edgard Allan Poe, uma figura misteriosa, vestida de negro, usando chapéu e um cachecol, chegava pela madrugada e depositava 3 rosas e uma garrafa de conhaque pela metade no túmulo do autor.


Por anos e anos ninguém soube quem era aquela figura misteriosa. Entretato, dias atrás, um homem de 92 anos chamado Sam Popora desvendou o mistério que por anos rondava o túmulo de Poe. A figura misteriosa era ele mesmo, Popora. Esse velhinho simpático merece ou não merece ser emparedado no nicho junto aos barris de amontillados?

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Le Notti Bianche


Malgrado as adaptações de obras literárias para o cimena sempre incorram nas impreferições e limites naturais das duas artes, ao tentarem dar vida uma a outra, no filme de Luchino Visconti sobre o pequeno livro do Dostoievski, Noites Brancas, há uma exceção. Pois foi brilhantemente adaptado para o cinema em riqueza de detalhes.

Primeiro Dostoievski. Em primeiro lugar, esta é uma das novelas da juventude, autobiografica por natureza ao vermos que a protagonista da estória, Nastienhka, muito se assemelha a sua Avdotia Panaieva. Tudo se passa em quatro noites em São Petesburgo. Inicia-se uma ponte onde a jovem Nastienhka espera pelo namorado que prometera retornar naquela noite. O protagonista, que no livro não tem nome - mas no filme sim -, encontra Nastienhka chorando e compadecido passa a consolá-la e ouvir a inusitada estória de que ela se vê obrigada a estar presa literalmente à saia da avó, que idosa e cega, busca nessa artimanha uma maneira de controlar os passos da neta.

O título do livro é certamente uma alusão ao cenário dos longos dias russos, quando o sol não se põe totalmente mesmo pela noite, e que está presente em outras obras de Dostoievski como o Eterno Marido. Mas no filme Le Notti Bianche, de 1957, Visconti tratou de dar um tom poético ao lançar sob os dois neve. Aliás, Luchino Visconti deu mais aos dois personagens literários. Deu-os por um lado o magnetismo sonhador de Marcello Mastroianni, e por outro, os olhos, a vida sonhadora, suave e idealista de Maria Schell na pele de Natalia. Ao protagonista deu-lhe inclusive um nome, Mario, que Dostoievski omitira no livro. Tudo isso com um importante detalhe: não desvirtuou demasiadamente a obra, apenas tratou de limitar o transe monológico que os personagens de Dostoievski adquirem por vezes. Tudo sob a batuta de Nino Rota.

Interessante, pois nesse filme Visconti reinventava aquela estética neo-realista rompendo com as técnicas telejornalisticas do LUCE, e que muito marcou, por muito que se discuta, filmes como Roma, Cidade Aberta do Rosselini, ou Ladrões de Bicicletas do de Sica. Visconti o reinventava tomando outro caminho pois já tinha despertado a ira dos fascistas quando lançou Ossessione em 1942. Agora, neste filme, parte para um cenário intimista, todo criado nos estúdios da Cinecittá, mantendo a técnica das longas tomadas aprendidas com o amigo Jean Renoir – a quem foi apresentado ainda jovem por Coco Chanel. Pode parecer paradoxal dedicar-se a uma estória de amor quando todos, antes com Rosselini e de Sica e uma década mais tarde com Gillo Pontecorvo se dedicariam a uma estética que desprezava os cenários internos suntuosos, mas vindo de Visconti, tudo ganha um ar glamuroso. Além do mais Senso (1954) e Noites Brancas, propriamente, introduziram uma fase de Visconti fora do comum com Rocco i suoi fratelli (1960) e Il gattopardo (Leopardo de 1963 - um dos melhores filmes historicos que já assiti).
Finalmente, os cenários de Noites Brancas são semelhantes aos de uma ópera, afinal esta sempre foi uma de suas paixões já que ele próprio dirigiu umas 18, se não me engano. Em tudo, o silêncio, o sonho e a realidade se confundem nos olhos de Schell e na esperanca de Mastroianni, que como no livro de Dostoievski tem o final merecido.

C'est moi, c'est Lola

Pleure que peut
Rit qui veut

Duas ou três coisas sobre um filme de Jacques Demy. Antes de mais nada, Demy nasceu en Nantes, mesma cidade que foi cenário de seu primeiro filme, Lola, de 1961. O filme, que o português criativo para títulos chamou ‘Lola, a Flor Proibida’, foi assistido ontem pela primeira vez. De cara: uma estória simples porém com a força das imagens mexidas que não ignoram como o efeito da luz e da sombra induziram-nos ao pensar o quanto esses caras da Nouvelle Vague nos fizeram cair na real. Em Nantes, Roland (Marc Michel), reencontra ocasionalmente na rua a velha amiga Lola (Anouk Aimée) - uma mãe solteira que tem por razão a esperança de que o pai de seu filho, que a abandonou durante a gravidez, retorne. Uma estória por si só não tão incomum. O detalhe que dá vida ao filme é o fato de que Lola é uma dançarina de Cabaret e Roland é um homem voluntariamente desempregado, solteiro, sem filhos e sem o mínimo ímpeto para tê-los, que começa a perder a esperança no amor e na vida. Mas a partir do encontro, tudo muda. Roland se apaixona por Lola e avalia o tempo todo se deve ou não aceitar um trabalho de contrabandista de diamantes entre Nantes-Amsterdã-Joanesburgo.


A estória tem algo de uma metáfora cíclica. Na abertura, um homem num Cadilac branco, Jacques Harden, com um chapéu de cowby Stetson, tão branco quanto seu blazer, quase atropela um grupo de marinheiros americanos a caminho do Cabaret. No meio destes está um dos amantes de Lola que nunca encontra com Roland. Demy realiza um filme muito bem feito, com as cenas imprecisas e cuidadosas do movimento da Novelle Vague, com suas cameras soltas, o tracking shorts nas ruas e as luzes e as sombras bem ao estilo do movimento. Isso ajuda a narrar a estoria de forma vibrante pois todos os personagens, a exemplo de Roland e Frankie – marinheiro americano -, que orbitam o universo de Lola, não se encontram por muito pouco. E o desfecho se dá justamente no momento em que Roland descobre que Michel, o homem de branco, Cadilac Branco, Stetson na cabeça (do in[icio do filme), é na verdade o filho da anciã de sua hospedagem, que retorna à cidade, supondo corretamente que o mesmo Michel é na verdade o amor de Lola.


Falta notar um aspecto interessante. Nesse primeiro filme, assim como nos dois outros que se seguiram, La Baie des Anges e Les Parapluies de Cherbourg, Demy impressiona com sua visão cética, porém viva, sobre as relações. Em Lola entretanto, sua protagonista poderia ser um poico mais complexa dando mais pano para a manga, não fosse o fato de manter-se insistentemente pueril. Isso é algo, na modesta opinião de um palpiterio, que não acontece em Les Parapluies de Cherbourg e muito menos em La Baie des Anges, até por que ali estamos falando respectivamente Catherine Deneuve e Jeanne Moreau – que diga-se de passagem me parece melhor nesse filme que em Jules et Jim, dois anos antes. A música é de Michel Legrand e não preciso falar mais nada por que, por pouco, nao prefiro a música ao filme em si.
Nota: camarada, desculpe mas estou ouvindo aquele disquinho bom pra caramba do Michel Legrand em homenagem ao Luiz Eça.

Nota Funebre

Morreu hoje Joel Silveira, o jornalista que sempre esteve próximo aos presidentes.

Joel Silveira, ao lado de Chatô e Weinerum dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro e premiadíssimo autor de mais de 40 livros, morreu ontem (15/08) de madrugada, no Rio, aos 88 anos, 'de causas naturais', de acordo com a família.

Sergipano de Aracajú, veio para o Rio em 1937, tendo se destacado como jornalista e escritor. Foi agraciado com o prêmio "Machado de Assis", o mais importante da Academia Brasileira de Letras, em 1998, pelo conjunto de sua obra. Foi também ganhador dos prêmios "Líbero Badaró", "Prêmio Esso Especial", "Prêmio Jabuti" e o "Golfinho de Ouro".
Sandra Soares

http://almanaque.folha.uol.com.br/memoria_5.htm

Orhan Pamuk


Neve é uma novela do escritor turco Orhan Pamuk que foi recentemente traduzida no Brasil pela Companhia das Letras. Mescla numa trama bem construida um contraditório enredo de paixão, política e as imposições da religião. Como toda a boa obra literaria, esconde um segredo contido dentro de uma caixa de Pandora, que só tem um pequeno problema para quem pensa que é um livro fácil. É toda espelhada por dentro, a caixa.

A começar pelo contexto social. A Turquia contemporânea é, aos olhos de Pamuk, um mosaico de pequenos espelhos onde as instituições do Estado funcionam bem obrigado em Istambul, ou quiçá em Ancara, porém a herança da ocidentalização conquistada na Revolução dos Jovens Turcos por Ataturk apresenta porosidades difíceis de serem cobertas pelo cimento do Estado laico nos cantões mais afastados do país. No romance as tensões entre a ação do Estado que mantém a ferro e fogo abolição da poligamia, do sultanato, e impõe o casamento civil como forma essencial de manter o direito de família substituindo o direito islâmico pelo molde ocidental de organizar as intituições civis e penais, encontra forte reação nos movimentos islâmicos que ressurgem principalmente depois do colapso da União Soviética. Tais tensões aparecem por todo o lado nas entrelinhas de um enredo muito bem construido em torno de um poeta que se vê isolado por uma nevasca numa cidade perdida no interior do país.

Ka, o poeta, retorna a Turquia depois de 12 anos de exílio na Alemanha, onde sobrevive de uma subvenção para exilados políticos e de algumas palestra em bibliotecas públicas e centros de cultura turca ao redor do país. Na ocasião da morte da mãe, um amigo de Istambul que trabalha para um grande jornal aconselha-o a investigar a história do suicídio de jovens turcas que ao recusarem-se a tirar as burcas em instituições laicas, acabam se suicidando. Ka, então, parte para Kars, cidade no interior turco, onde encontra Ipek, filha do dono de um dos hotéis da cidade. Ipek é divorciada de Muthar, homem consciencioso que se envolve com a política local filiando-se ao partido radical islâmico. O livro começa com Ka chegando a Kars. A intensa neve bloqueia todas as entradas e saídas da cidade e nesses dias de isolamento inúmera estórias se traçam, tocam-se e espelham-se numa espécie de caleidoscópio que tem como centro a atuação do poeta estranho que chega à cidade.

O núcleo da estória, ou uma das inúmeras estórias de Neve, realmente começa quando Ipek e Ka estão na Confeitaria Vida Nova e presenciam o assassinato do diretor do Instituto de Educação da cidade por um extremista muçulmano, que o acusa de ser o responsável pelo suicídio de uma jovem chamada Teslime, já que esta se recusa a assistir as aulas do Instituto sem seu manto.

Um detalhe importante: o primeiro terço da estória é narrado em terceira pessoa. Uma espécie de narrador onisciente presencia tudo a partir do ponto de vista de Ka, porém se apresenta no decorrer da estória como um amigo de Ka que narra os fatos a partir de um caderno de anotações onde se encontras as impressões detalhadas das experiências do protagonistas nesses poucos dias – curiosamente, suas poesias não estão neste caderno.

Ka sofre por anos, é importante que se diga, de um bloqueio criativo. As musas, simplesmente o abandonaram nos últimos anos de Alemanha e talvez por isso se sentisse compelido a enveredar nessa viagem contraditória entre paixão, política e as imposições da religião, de maneira tão aberta e desprotegida. E somente quando retorna a Kars, volta a sentir a presença de Calíope - quiçá.

O leitor percebe já nos primeiros capítulos que o amor para Pamuk - assim como nos personagens de Dostoievski e Turgeniev - nunca é um sentimento doce e sereno. Ou leva seus personagens a uma paixão desenfreada desencadeadora de profunda amimação e rompantes criativos, ou os afunda no isolamento do gélido silêncio da neve. Por isso as experiências de Ka ao perceber-se apaixonado por Ipek, que certas vezes até lembra um pouco nossa Capitolina, definem os caminhos da paixão sempre dividida entre dois amores, dois caminhos que ou o conduzem à felicidade plena ou arruinam sua personalidade tornando-o vil e delator. Essas caracteristicas também aparecem na coragem e imprecisão de Kadife, irmã mais nova de Ipek que se encontra envolvida com Azul, líder extremista muçulmano que é delatado às forças do MIT por alguém que sabia de seu paradeiro – e este é um ponto chave na estória onde quase tudo sobre a personalidade de Ka e Kadife pode ser desvendado. Seu encontros respectivos com o infeliz e atormentado Muthar, ex-marido de Kadife e candidato a um posto politico em Kars, mostram seu desprezo pelos que usam a religião como meio político, mas também, que a religião tem um papel para além de definidora do bem e do mal, algo que está próximo a uma experiência anímica como é mostrado no encontro de Ka com o shiek Saadettin Efendi, que o inspira a escrever um certo número de poemas reveladoramente pautados na linha lógica de um floco de neve. Mas além do amor, a ambição política também faz parte dessa narrativa através do volúvel, erudito e ambicioso ator Sunay Zaim - que diga-se de passagem é um personagem dentro de uma persona criada por ele próprio, e que se se pode apontar uma pisada de bola em Neve ela talvez esteja na brevidade com que Pamuk trata esse tipo. O resto da estória deixo para quem o ler.

Mas uma coisa me intriga, e se um dia encontrasse a Pamuk perguntaria a respeito do sentido do nome do poeta Ka, aparentemente provocativo em virtude dos acontecimentos políticos recentes na Turquia. O livro foi lançado em 2002 e causou muita polêmica pela personalidade criticamente explosiva do autor que parece ter gastado um ano na preparação do romance. Coincidentemente - ou não - em 2001 a corte constitucional turca bane o Partido da Virtude, de tendência autenticamente islâmica, acusando-o de minar o Estado secular. Seus deputados fundam, então, um novo partido chamado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (Adalet ve Kalkınma Partisi)cujo acronimo é exatamente AK - voilá Ka espelhado. Fato é que nas eleições de 2002, exatamente no ano do lançamento intencional ou não - nunca se sabe - de Neve, o partido obtem maioria no parlamento Recep Erdogan elege-se primeiro ministro. E há uma passagem intrigante no livro onde Ka argumenta veementemente a um jovem poeta islâmico que o 'a' de seu nome Ka é grafado em letra minúscula. Pamuk cria vários espelhos nessa obra onde personagens e seus rasgos de personalidade, paixões e situações aparentemente arbitrárias, invertem-se ao refletirem-se umas nas outras, e talvez a questão do nome do protagonista seja apenas mais uma das reflexões - só que contra a realidade verosímil.

Música do dia: ária do suicidio - La Gioconda - Ponchielli/Boito

Era do Capital I



Bem antes do telefone, da Revolução Russa, da Guerra Fria, da internet ou qualquer outra revolução tecnológica a reboque de um evento político de grande monta, existiu Perry McDonough Collins, um o americano que, na Era do Capital, tentou ligar Europa e America por cabos telegráficos através do estreito de Bering. O único problema para que seus planos se concretizassem era transpor um vasto, inóspito e incógnito território chamado Russia. Assim, usando como fachada a Russia American Telegraph, uma espécie de subsidiária da Western Union Telegraph Company, essa mistura de empresário, político e empreendedor, combinou política, interesses financeiros, diplomacia e uma boa dose de oportunismo, para fazer valer a conquista comerciais Alaska - que somente seria comprado em 1867 - e de quebra aumentar a hegemonia americana em parte da Russia e da China.

O mais interessante é que pouca coisa se sabe sobre esse homem e muito menos sobre sua juventude, parte fundamental para a formação do carater de um homem. Entretanto, recentemente, um historiador militar americano chamado John B. Dwyer lançou um livro chamado, To wire the world : Perry M. Collins and the North Pacific telegraph expedition, onde com pouca análise mas muita exposição de fatos traça um panorama da expedição feita por Collins em 1864 pela terra da Sibéria, Ásia do norte, e o rio Amur, que é exatamente o rio que separa parte da Russia de parte da China. No livro, ainda que de passagem, o autor fala da juventude enigmatica de Perry, de seu fracasso como jovem advogado, e de seu contato com um dos mais ferrenhos defensores do Destino Manifesto, o futuro senador William McKendree Gwin, durante a corrida do ouro. Perry e Gwin, cada qual a seu modo, tiveram visões distintas de seus destinos, que diga-se de passagem, passavam longe do metal precioso. Enquanto Gwin buscava apoio para se eleger senador, Perry decidiu se dedicar a mineração, não de ouro, mas de almas. Começou arregimentanto trabalhadores para as minas californianas. Assim, o encontro dos dois era uma questão de tempo. Com Gwin eleito, Perry teve livre acesso a Washington, dai a fundar uma companhia de comércio que enviava gelo do artico para os paises do pacífico e começar a fazer negócios com a Russia, foi um pulinho de nada.

É interessante notar que a influência de Perry Collins na Russia czarista foi tanta nos anos que se seguiram a Guerra Civil americana que ele foi um dos convidados de gala para a coroação de Alexander II – não o III, pai do rifado na Revolução de 17 - em 1856. Três anos depois ele começou os contatos com Hiram Sibley para a criação do Russia American Telegraph, braço russo da Western Union Telegraph Company de propriedade do mesmo. Como no mundo dos negócio o corpo precisa de uma alma, ou seja, trabalhadores, bons contatos e propaganda, associou-se com Paul Reuter, da agência de notícias Reuter, pois a propaganda também fazia parte da alma dos negócios.

Perry, assim como George Kennan – o explorador, não o da teoria da détente -, e até o ‘nosso’ Percival Farquhar, passaram para a história muito mais como empreendedores visionários, que efetivamente homens históricos, ainda que a História, é verdade, se esforçe sem conseguir muito bem explicar a ação individual desses homens que movimentaram fortunas, arregimentaram massas de trabalhadores, foram amigos de czares e presidentes, frequentaram salões diplomáticos, subornaram, corromperam, ganharam e perderam dentre outras coisas seu lugar próprio na história.


Nota: Vale a correção de uma estupidez descrita acima, que se nao fosse um amigo atento permaneceria para todo o sempre. Diz o PRA: "O Kennan de 1947, não foi da "détente", mas o do containment, o da contenção da URSS". Obrigado.

Agá-Agá e Agá-Gê

Ver Heraldo do Monte e Hermeto Pascoal falando, me deixa a dúvida se a palavra escrita, por vezes, não deveria ser ouvida.

http://youtube.com/watch?v=3HzSOzWUwMI&mode=related&search=

De quebra Hermeto e Guinga.

http://youtube.com/watch?v=HPsGqNRmlXw&mode=related&search=

Michelangelo Antonioni e Bergman


Faleceu ontem, no mesmo dia da morte de Igmar Bergman, Michelangelo Antonioni aos 94 anos. Do Antonioni vi bons e antológicos filmes. Nesse momento me lembro logicamente do Blow-up que sempre me vem a cabeça por dois motivos. O primeiro, a Jane Birkin nua, no auge de no máximo seus 20 anos. A segunda coisa, o roteiro que foi baseado num conto do Cortazar chamado Las babas del diablo – que ficou bem diferente na tela, até por que por mais perícia que Antonioni tivesse, jamais poderia traduzir a frase, 'entre las muchas maneras de combatir la nada, una de las mejores es sacar fotografías.' Mas isso é uma longa estória.

Outro filme muito bom do qual tenho sempre uma boa lembrança é o La Notte. Jeanne Moreau e Mastrioanni emprestam olhares e gestos precisos a um casal em crise que procura em relacionamentos paralelos as respostas para a monotonia do cotidiano conjugal. Há uma cena clássica que Antonioni se supera no poder de bruxo eufemista, quando os protagonistas estão num bar e a cena começa com um jazz da pesada rolando. Um casal de dançarinos negros entra no palco e começa uma simulação meio doida de strip-tease. Quando todos pensam que aquilo terá um fim óbvio, o dançarino, ao final, envolve sua parceira com sua pele, ela agradece aos aplausos e se retira. A sutileza de Antonioni é mais uma vez notada quando a personagem de Moreau aplaude primeiro que o marido, estudando-o de uma posição um pouco mais atrás que a do marido, pois percebe que, talvez, no fundo, aquilo era desde o início, uma encenação feminina distante da apreensão masculina. Logo ele que era escritor e que deveria estar atento a esses mínimos detalhes da alma humana.

Por falar em detalhes ínfimos da alma, o que dizer de Bergman? Só o Ovo da Seprente e Persona. Ponto. Poucas vezes na vida senti tanto o pulso de um diretor como nesses filmes. Afinal, quem assitiu Persona sabe do que falo. Num enredo onde uma mulher surta no meio da apresentação de um Sófocles perdendo a fala, e instiga o resto de nossas duas horas de razão crítica a pensar em círculos - para onde esse cara vai levar essa estória agora? - é no mínimo um fabulosos exercício, típico do Bergman, de brincar com nossa incapacidade de pensar. Senti isso com pouquissimos filmes e livros na minha vida. Um deles, até então, que me lembre agora, era exatamente um livro menor do Gabriel Garcia Marques chamado Diário de um Náufrago, onde um cidadão está a deriva por vários dias no meio do oceano: ele, o mar e o céu. Só isso. Tirar uma estória desse quase-nada me impressionou quando eu tinha 16 anos. Lá pelos anos de faculdade já não me impressionava muito com esse negócio de tirar estórias do nada, pois como diria o Victo Guidice, a gente luta mesmo é contra esse vicios do mundo objetivo e do universo subjetivo em que a gente morre todo dia, mas aí um amigo me diz que havia um cineasta sueco bom pra caralho – ele usou exatamente essa expressão logo no fim de uma aula de filosofia do Gerd Bornheim! Fui conferir aquele tal de Bergman. Mas para meu amigo eu dissera que, obviamente, ouvira falar do homem, pois nesse meio de gente muito inteligente você revê filmes e relê livros, sem espanto, mesmo que só tenha vinte e pouquinhos anos, mesmo que só patéticamente da boca pra fora. O que me impressionou mesmo foi tirar uma estória de dentro de uma outra estoria. Ou seja, de uma peça de Electra, fazer um filme onde a protagonista passa todo o tempo muda, e que por um malabarismo visual do diretor, a enfermeira, se sentindo traida quando descobre que a mudez de sua paciente possa ser fabricada surta, ao desconfiar que pode estar, na verdade, sendo usada pela protagonista para uma espécie de estudo de personagem. É isso aí.... Bergman. Então, dorme com esse universo de pena, culpa e manipulação na cabeça.


Enfim, mais um dia triste, pois mesmo que se percebam coisas boas como um beijo de filho, a alegria de um dia quente, a promessa de uma publicação, a felicidade nos olhos de uma avó, e os instantes de atenção na generosidade do olhar da mulher, a gente sempre vai ficar com a sensação de que para entender tanto ao Antonioni quanto ao Bergman teriamos mesmo que revê-los inúmeras vezes até perceber que já é demasiado tarde. Perceber que para sermos melhores teriamos mesmo é que não apenas ler, mas parar, olhar, entender muitas sutilezas desses mundos onde a gente morre todo dia.

É alegre a natureza? Impotente dizem.




O PBS, Public Broadcasting Service, está transmitindo nas últimas semanas um documentário fantástico sobre arte chamado The Power of Art, apresentado por ninguém menos que um dos mais elegantes historiadores que habita o barulhento, e nem sempre competente, ambiente intelectual americano: Simon Schama.

Autor de livros já clássicos como o Citzens, ambientado no seio da Revolução Francesa, Schama, com sua eloquência característica, tomou o devido cuidado na época de afastar Luis XVI, Necker, Maria Antonieta, do centro das atenções, fazendo-os coadjuvantes de um processo muito mais interessante que via nos sans-culottes e em boa parte do Terceiro Estado a construcção de novos valores nunca antes elaborados. Através do conceito de cidadania, resgata da revolução o poder da crônica e embrulha de presente para os historiadores um problemão: se para a História não existe Verdade, o que limita um historiador dar à crônica um valor histórico – duzentos e tantos anos depois da Revolução.

Neste documentario, especificamente, ele tambem usa as margens para explicar a ligacao entre arte e hitoria. Baseia sua apresentacao num livro homônimo muito interessante já traduzido para o português. Na verdade, The Power of Art é baseado num livro que foi pensado para ser exibido na BBC, e elege oito artistas como representantes específicos de uma época que ao retratarem um objeto aparentemente inexpressivo ou uma paisagem intuitivamente familiar revelam através destes, valores de uma cultura, de um tempo e lugar: Caravaggio, Bernini, Rembrandt, David, Turner, Van Gogh, Picasso e Rothko. No documentário não fica clara justificativa da escolha por este ou aquele artista, mas pouco importa, pois sua erudição e a elegância do ordenamento de suas idéias é tanta - e tão simplificadamente exuberante - que o melhor mesmo é ficar calado, admirado, pasmo.

Ele fala por exemplo da verdadeira obsessão dos românticos por elementos da natureza como rochas, montanhas, fins de tarde, mares revoltos, e de como as escolhas das cores influenciavam na profundidade da recepção de suas obras de arte. Ontem foi a vez de Joseph Mallord William Turner, pintor inglês, que teve dentre seus quadros mais representativos, na visão de Schama, o retrato da tragédia de um naufrágio negreiro nos mares caribenhos: The Slave Ship: Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying, Typhoon Coming On.
A tragédia do navio Zong, ocorrera, na verdade em 1780, quando seu capitão, vendo uma tempestade se aproximar, toma a decisão de se livrar de parte da carga de escravos, que tragicamente seria lançada ao mar.

No caso específico deste pintor, Schama dá algumas pistas de sua metodologia na escolha dos autores. Schama afirma que Turner era um pintor caracteristicamente de estúdio, que raramente pintava, in loco. Essa escolha, associada a suas leituras da tradução de 1840 da THEORY OF COLORS de Goethe, sugere que havia na sua arte uma elaboração muito mais profunda, condicionada, porém refletida, que fazia de seus quadros não apenas uma forma de fruição romântica, mas uma conexão entre sequências históricas e emocionais. Havia também um aspecto político, pois 1840 era o período onde os debates em torno da proibição do tráfico negreiro foram mais intensas e antecipando as pressões para a aprovação do Bill Aberdeen em 1845.
Tanto o artista quanto o historiador, suspeito que, na visão de Schama, são seres que resgatam o substrato, as forças históricas inexploradas e inexplicadas que ficaram a deriva ao longo dos séculos, e que através da combinação de erudição e auto-controle crítico expressam em imagens os juizos e valores históricos.... à guisa de uma crônica, talvez.



Enfim, mais um grande documentário. E que venha Rothko!


http://www.pbs.org/wnet/powerofart/?campaign=pbshomefeatures_5_simonschamaspowerofart_2007-07-24






Música do dia: Natura, festa do Interior, Música do Interior, Egberto Gismonti.
O título do post vem do Manoel de Barros


Assisti ao Me and You and Everyone We Know saido do forno. Numa tarde de domingo. Ano passado, talvez. E Street, certamente, pois não há outro local. Por que só agora escrevo sobre esse filme? Sinceramente, não sei. Mas, algumas passagens do filme me vieram a mente minutos depois de ter com meu camarada Rodrigo Patto e sua incansável tentativa de encontrar un sentido na solidão americana. O filme trata das estórias de Christine, uma artista plástica iniciante - e desconfio não muito talentosa - que vive uma constante oscilação entre fantasias diversas e realidade, quer na sua arte quer na sua própria vida; e de Richard, um vendedor de calçados numa loja de departamentos, separado e pai de dois rapazes. Do encontro dos dois poderia-se esperar muito, principalmente por ele, pensando que estava sempre preparado qualquer acontecimento inusitado, deixa, não sem pânico, a espontânea Christine entrar na sua vida. Poderia-se esperar ao menos que da falta de rumo na vida de ambos surgisse algo mais que uma espécie de amizade onde um passa a depender do outro, sem saber ao certo quem teria ascendência sobre quem. Mas eu acho que é exatamente essa falta de perspectiva, essa obliquidade para onde a solidão os empurra, e o consequente retraimento involuntário que Miranda July, protagonista e diretora, quis impor ao roteiro, pois senão veja, todos os demais personagens vivem os efeitos dessa poética e penetrante condição da realidade americana moderna. Os exemplos? Robby, filho de 7 anos de Richard, mantém um romance internético com uma desconhecida, que não revela nem para seu irmão mais velho, que por sinal, vive em sua sanha onanistica a procura das meninas da rua para ‘iniciar-se’ – deixemos assim nesses termos ambíguos.

Enfim, todos, a seu modo, procuram laços de união. Mas ai tudo acaba degringolando.... O que prometia ser um bom filme acabou frustando totalmente. O que tinha tudo para ser um filme doce, divertido e sensivel sobre destinos desamparados a procura de laços que os unissem, virou uma estória desiteressante, onde a amiga secreta de Robby, filho de Richard, é a dona da galeria de arte onde Christine, amiga de Richard, deseja expor. E o filme acaba. Assim. Com todos solitarios, não mais solidários, novamente.

Não lembrei de falar desse filme na conversa do almoço com o Rodrigo, estudioso do comunismo brasileiro, mas também não sei se ele entenderia – como eu, a muito mais tempo aqui, não entendo - que para haver entendimento sobre solidão americana é necessário compreender que mesmo num filme eufemista há uma emanação realista dele todos os dias assim que se sai de casa pela manhã em direção ao trabalho. É só imaginar. Por isso não acho nenhum filme extraordinário como os criticos babacas do CityPaper me enganaram na época.
Preferimos falar da sua pesquisa, da constrangedora constatação de que as universidades brasileiras tiveram um boom de crescimento durante a ditadura, das recentes memórias de Jorge Amado, dos inumeros processos contra Enio Silveira da Civilização Brasileira - e minha alusão sobre o filme the apartament que só nós saberemos a que se refere - e do republicano espanhol Max Aub, ou seja preferimos falar de nós e de alguns que conhecemos, no que fizemos muito bem.

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