Sou um
leitor compulsivo. Dentro de minha patologia, uma das alterações morfológicas
mais evidentes pode ser vista em minhas prateleiras de livros: as biografias.
Leio biografias de vivos e mortos. Em ambas há um interesse mórbido, no caso
dos mortos, ou uma intenção no mínimo prosaica de especular sobre a vida
alheia, no caso dos vivos. Mesmo nesse caso, não procuro o meramente factual na
cara amassada do biografado acordando as 6.30 da manhã para trocar a fralda dos
filhos, ou o cotidiano de uma entrega ao alcoolismo, mas aquela dose de
criatividade, de fantasia, de porosidade por onde o cotidiano é filtrado na
criação literária de um texto talentosamente bem escrito. Por isso acompanho com alguma dose de
curiosidade esse debate sobre a polêmica das biografias, num país onde é comumente
dito que o público e o privado vivem de maneira
promíscua.
Na minha
estante, há biografias autorizadas e não-autorizadas. Tenho biografias de D. João VI, escrita pelo
Oliveira Lima, à biografia de Bogart, escrita Sperber e Lax, de Patápio Silva, à
várias do Sinatra, Clarice Lispector, Billy
Wilder, Vargas, Coltrane, Rio Branco, Balzac, Garrincha, David Selznic, Tim Maia, e até as não autorizadas do Roberto
Carlos e do Noel Rosa. Portanto, ler biografias não-autorizadas não está em minhas preferências, ao menos
estatísticas. O interesse que me levou a ler a biografia escrita por Lord Roy
Jenkins, não foi o mesmo que me levou a ler a biografia do Zico, evidentemente.
Um fumava charuto, prevaricava todo o tempo e tratava socialistas como scumbags, o outro sonegou o fisco no
Japão e na Itália, mas nem por isso, ou talvez por isso mesmo, nunca deixou de
ser meu maior ídolo no esporte.
Ainda nesse
tema sobre o direito que me pertence como leitor ao ler uma biografia, assisti
a uma palestra de Paulo Cesar de Araújo em New Orleans, há uns anos. O rapaz se
emocionou ao falar da biografia que escrevera e que se encontrava proibida de
circular. Se emocionou não pelo dinheiro
que deixou de ganhar numa dedicação de mais de 20 anos de pesquisa, mas pela
frieza com que O Rei o tratou na Corte, cara a cara, afirmando que só que tinha
o direito de escrever sua – do Rei -
biografia seria ele próprio.
Sentimetalismo
à parte, o que está em jogo hoje é a
biografia como ativo comercial. Todos querem ganhar. De um lado editoras -
argentárias sim. De outro, artistas, esposas de artistas, advogados, proles, ex-esposas
de artistas, encabeçando um grupo de interesse pecuniário chamado Procure
Saber. Há um terceiro lado, que é o do biógrafo, mas esse não conta, por se tratar
de um trabalhador braçal, aquele que só deseja segurança para realizar seu trabalho e paz para se
dedicar a sua escrita. Parafraseando o pai de um dos personagens envolvidos na
polêmica, mais uma vez vivemos a velha dicotomia de Raizes do Brasil, entre o aventureiro e o trabalhador . O primeiro,
aquele que ignora as fronteiras e, onde quer que se erija um obstáculo a seus
propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos
espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes. Assim como o
aventureiro, o artista também é desejoso dessas novas sensações e por
consequência a consideração pública, pois no fundo é um homem público. Impedir
um trabalhador de narrar feitos, sucessos e fraquezas de um biografado é um desconforto para o
leitor contemporâneo.
E o
pior é que me foram incomodar até o François Dosse lá na École des Annales, para
receberem uma resposta óbvia e desconcertante.