The Visitor


Você chega à casa tarde da noite. Abre a porta e ainda com a casa as escuras pousa as chaves na mesinha. De repente percebe uns ruídos, percebe que há alguma coisa estranha, que há flores frescas na jarra da sala, que pela luz nas fresta da porta alguém está no teu banheiro tomando banho. Abre a porta do banheiro e realmente há uma mulher lá, fecha a porta num ato reflexo e logo aparece um homem te agredindo.... Parece um filme...

Em The Visitor, filme de Tom McCarthy, Richard Jenkins é Walter Vale, um homem de 62 anos, um professor de economia em Connecticut, viúvo e sem paciência para seus alunos e amigos da universidade. Num certo dia é praticamente obrigado pelo chefe de departamento de sua faculdade a apresentar uma conferência em NYC sobre um paper em que ele é co-autor – caso típico, mas dexapralá. Chegando a seu apartamento, que visita raramente, descobre, Tarek e Zainab. Tarek, percursionista, é Sírio, e Zainab, artesã, é senegalesa. Ambos vivem por alí há mais de dois meses sem serem incomodados. Após esse breve desentendimento, ambos decidem partir na mesma noite. O professor acaba propondo abrigo temporário para eles em seu apartamento e, aos poucos, vai se envolvendo com problemas que jamais imaginaria. Um deles é a quase imperceptível xenofobia pós-11/9... e outro são os delicados procedimentos dos departamentos de imigração americanos....

Nesse universo urbano e multiculturalmente idílico, Walter aos poucos vai se envolvendo com o universo de Tarek. Aprende percussão, larga definitivamente o piano e adia mais e mais a volta a Connecticut. Das aulas nasce uma espécie de amizade – pois é difícil dizer já que Walter é um homem contrito, eloquentemente sucinto, meio depressivo e quase monossilábico. Da amizade, diga-se de passagem um tanto rápida demais, nasce uma espécie de hipnose pela vida livre de Tarek.

Até o dia em que Tarek é preso no metrô, por um engano, na frente de Walter. Por não ter documentos é transferido a uma casa de detenção no Queens. Zainab, muito mais reservada que Tarek, decide partir. Sem notícias há vários dias, a mãe de Tarek, Mouna Khalil, interpretada pela belíssima atriz palestina Hiam Abbass, chega de Michigan para procurar o filho e fazer a vida de Walter mais complicada e interessante. Ambos se unem para tentar, em vão, soltar o rapaz. Como seria natural entre duas pessoas maduras, envoltas em experiências similares, ambos se sentem atraídos. Mouna confessa a vontade de assitir ao Fantasma da Ópera, que Walter galantemente convida-a para assistir. Enfim...

Não. Mouna e Walter, ambos viúvos, não começam um romance, mas Tom McCarthy roda uma cena daquilo que Nelson Rodrigues definiria, à sua maneira, como amor. O anjo pornográfico dissera que “[...] qualquer mulher nasceu para um só homem, qualquer homem nasceu para uma só mulher. Quando, por sua desventura, o homem e a mulher separaram o sexo do amor, começou o martírio de ambos.”

Não houve sexo na última noite em que Mouna passa no apartamento de Walter, antes de retornar a Síria, para esperar por seu filho, definitivamente deportado dos EUA. Mouna, no meio da noite vai ao quarto de Walter, deita-se em sua cama, pede para que ele a abrace e começa a chorar lamentando-se pelo destino do filho. Walter e Mouna dormem abraçados numa cena mais tocante que a da despedida de ambos no Aeroporto de JFK. Posso estar ficando velho e piegas, mas acho que isso também é uma forma de amor. Mas isso também pode ser ilusão.

http://www.thevisitorfilm.com/

O Atraso de Mefistófeles


Em 2008 Cristovão Tezza levou todos os prêmios. De Jabuti a Portugal-Telecom. “O Filho Eterno” é sem dúvida, um livro bem escrito, mas agora que a poeira em torno ao livro abaixou, vamos aos fatos, às linhas que alinhavam o enredo. Escrevendo uma narrativa auto-reflexiva, realista e pouco dinâmica, Tezza criou sobre um personagem com Síndrome de Down, uma mãe ausente, uma filha de poucas aparições e a figura de um pai acidental: o protagonista é um escritor que de golpe em golpe recebido vai se tornado um fracassado resiliente. Um escritor eterno: o pai eterno.'

Já se disse que o estilo é parecido ao de Coetzee. É bem verdade, a história é narrada em discurso indireto livre, em terceira pessoa do singular, bem ao estilo do sulafricano. O narrador é distanciado e racional em demasia, não sugerindo em momento algum empatia ao leitor. Diga-se de passagem, afirmo que o Tezza é escritor dos bons, pois sustentar o ambiente de desilusão de um personagem ressentido com o mundo e consigo é algo que imagino requeira um esforço descomunal, pois até agora só lera em escritores como Roth e Coetzee tal ausência de compaixão com seus protagonistas, suas criaturas. Tezza ousa. O seu personagem inominado quase chega perto da complexidade resignada de Seymour Levov ou da frieza contrita de David Lurie. Quase.

A idéia da paternidade de um filho com Síndrome de Down cai-lhe como uma bomba ferindo o orgulho, frente aos parentes e amigos, com a idéia da paternidade fracassada. Por ela, e somente por essa razão, aquela espécie de jovem pequeno-burguês - com aventuras ilegais em Portugal e na Alemanha, que prolonga a adolescência de boemia até os 28 anos – com complexo de superioridade suficiente para iludir-se quanto ao pragmatismo da vida, esfacela-se. Transforma-se numa pessoa mal resolvida. A paternidade em tais termos, condena o protagonista a ter contato com um mundo de hospitais públicos, gente pobre – à qual despreza - e médicos insensíveis ao seu problema que concebe como lotérico. Talvez por isso, chegue a pensar, nem tanto como nos devaneios de Cronos que devora os filhos, que seria bom se o filho morresse cedo - talvez de acidente, ou por um acaso lotérico tal como aquele que o fez cair nos braços daquele pai. Pensar se pensar isso é moral ou não, deixo para que outros decidam. Só sei que, ainda que de forma bastante episódica no livro, nosso pequeno Mefistófeles, baseado nessa esperança, tenta escrever um grande poema sobre suposta morte trágica do filho, e tenta publicá-lo. Arrepende-se logo em seguida. Enfim, há algo de culpa cristã no personagem. Tezza, dessa forma, cria um protagonista de frieza analítica, aliada a empáfia niilista, que revela, em sua arrogância intelectual, o que quer ver de errático na natureza dos fatos, tal como um David Lurie.

É um livro de saltos grandes no enredo. Dos exercícios motores da infância, aos primeiros anos na escola, passando pelas aulas de fonoaudiologia, pelas tentativas de alfabetização, pela certeza de que aos 8 anos Felipe não poderia frequentar a escola até nascimento da segunda filha – esta sem Síndrome – há elipses no enredo. A filha nunca aparece. A mãe das criancas, por sinal, aparece para parir, sustentar a casa e desaparecer novamente. Todos os personagens secundários, incluindo o filho eterno, me passaram a impressão, apesar de serem peças chave na narrativa, de frequentar a estória apenas para tornar a luta por projeção do pai, escritor mediocre e acadêmico inexpressivo, numa luta épica pela recuperação da idéia de paternidade.

Pouco menos de um quarto para final do livro, a estória esgota certas possibilidades de distanciamento e dá uma certa virada para recortes cotidianos mais sentimentais que mostram um pai mais maduro, adaptativo e sociável. Certo dia Felipe desaparece. O pai se desespera e enquanto procura pelo filho é tomado por uma sensação de vazio. Felipe já com quase 20 anos ainda não lê nem escreve, mas consegue ter noções de tempo pelos prazos dos jogos do Campeonato Brasileiro, usa internet, cria e nomeia pastas no computador. Este episódio da perda do filho poderia incorrer num aspecto redentor do pai. Mas Tezza toma extremo cuidado com essa armadilha que poderia transformar o livro numa bomba, pois seria muito fácil transformar este enredo numa série de fatos sentimentais encadeados em torno à culpa, à compassividade, ou à redenção do pai - temas que Tezza, como grande escritor, evita cuidadosamente.

Não quero tocar no aspecto auto-biográfico da obra de Tezza que certamente uma boa estratégia de marketing criou em torno ao "O Filho Eterno", pois este certamente não foi o motivo que me levou a lê-lo - - já que lera "Trapo", um livro de enredo mais vibrante e rico. Muitos disseram que este foi o livro do ano, que foi um livro corajoso da parte do autor. Esta é uma decisão que deixo para que outros a tomem. No fundo no fundo esta é a estória ficcional, mais que de um filho - como o título do livro nos leva a crer -, de um pai. Como ficção, é a estória de um homem que virou homem um pouco tarde, acreditando que sempre há tempo para esse tipo de coisa. Como "auto-biografia" - e duvido que seja - , elas por elas, melhores são as do Rui Castro. Como ficção, ótimo livro.
Música do dia. Franz Schubert - Death and the Maiden - III.Movement Excerpts

Samba e Alteridade

s. f., Filos.,
fato ou estado de ser um outro (por oposição a identidade);
qualidade do que é outro ou de uma coisa diferir de outra.
Musica do dia. Sinfonia no. 1 em D maior. D 82: II. Andante. Franz Schubert. Orquestra Filarmonica de Berlim.

De Chinese muur

Aagt

"The Chinese Wall', (Netherlands, 2002), 10 min., foi nominado como o melhor curta metragem do Dutch Film Festival em 2002 – além disso levou uma penca de outros prêmios. A diretora Sytske Kok e a roteirista Rosan Dieho realizaram um trabalho de grande sensibilidade ao transportar as inquietações, frustrações, e as ilusões perdidas durante toda uma vida de uma mulher madura – por volta dos 60 anos, ligeiramente auto-inflictiva e adoravelmente sarcástica -, esperando pelo almoço num restaurante chinês em Amsterdã, para um diálogo interno cheio do que o filósofo William James chamaria de “fluxo da consciência.”

Aagt (Celia Nufaar) é uma mulher madura e solitária. Maltratada pela vida, perdera o amor de sua vida por influência dos pais, teve um único filho que voltou-se contra ela, por influência da nora, e seu marido morreu numa cadeira de rodas ao seu lado. Num dos almoços em seu habitual restaurante chinês, sentada à sua habitual mesa, pedindo seu habitual prato com uma porção extra de frango, a conhecemos e conhecemos boa parte de sua vida através de seus pensamentos e julgamentos precipitados refletidos nos outros comensais, ao vislumbrar nestes sinais particulares de episódios chaves em sua vida.

Três mesas estavam ocupadas. Numa mesa – que chamo de mesa 1 - vemos um grupo de cinco jovens, num aparente almoço de escritório, onde alguns se sentiam desconfortáveis com ascensão de um deles sobre os demais, mas uma das jovens olhava-o atentamente com admiração, dando, numa prosaica maneira de dizer, o maior mole pro cidadão ( dali vieram-lhe os pensamentos da juventude, do amor perdido por Aagt). Na mesa do canto – a mesa 2 - , uma família, pai, mãe e um filho adolescente, aborrecido e constrangido com a presença dos pais que o tratam com um relativa condescendência e pudor (desta, a lamentação por ter perdido o filho). Na terceira mesa – mesa 3 - , à sua frente, Aagt tem um casal. Uma mulher apática, sendo servida pelo opressivo marido, que com certa autoridade e arrogância pedira a comida e o segundo copo de cerveja, de forma arbitrária, pré-julgando seu gosto pela comida ( desta, o alívio por não ter mais um marido). Mas o porquê de tais diálogos internos, naquele dia específico: aquele era o dia de seu aniversário que solitariamente queria manter em segredo.
Mesa 3

Já no fim de seu almoço, tendo deixado boa parte da comida, Aagt é indagada pela dona do restaurante se não gostara da comida. Ela então, inadvertidamente, revela a importância pessoal da data. Inesperadamente arma-se um carnaval - nem tanto no estilo do surreal e antológico “Salvador Janta no Lamas” de Victor Giudice. A gerente aparece com um bolo. Aagt entra em pânico - um pavor interno a bem da verdade - ao ver-se analisada pormenorizadamente por todos. Ser o centro das atenções naquele dia solitário e meio amargo não estava em seus planos. Quando Aagt oferece parte do bolo aos demais comensais, a gente decide juntar as mesas do pequeno restaurante. Frustração, alegria e esperança se encontram. A mãe do adolescente (Mesa 2), então, empurra feliz a cadeira de rodas do rapaz para junto da grande mesa; o grupo de jovens (Mesa 1) da aula semanal de patinação no gelo é alegre e é o primeiro a tomar a atitude de juntar as mesas; e a até então infeliz mulher(Mesa 3) anima-se e manda seu irmão indiferente e ansioso em terminar o almoço com a irmã, juntar também a mesa dos dois à dos outros. Simples. Emocionante. Surpreendente.
Música do dia. Complexo de Épico. Tom Zé

Invernos ou verões, já nem sei mais...

"Em um dia do homem estão os dias
do tempo,desde o inconcebivel
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história universal.
Do fundo da noite vejo a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia."

J.L.Borges

Nota: Lembrança do meu chapa Ednelson Jesus, chapa velho, irmão, comparsa e amigo de anos com quem comparto diferenças, semelhanças e o prazer de cada nota do Coltrane, além das muitas coisas que consigo ver, por ele ter me ensinado a ver certas coisas onde minha torpeza me impede.

Moartea domnului Lăzărescu

Moartea domnului Lăzărescu é um filme longo. Duas horas e meia de uma combinação estranha de risos e agonia. Dante Remus Lăzărescu (Ion Fiscuteanu), um tipo que certamente você já viu passando pela tua rua, é um excêntrico e rabujento engenheiro aposentado. Sua única filha vive em Toronto, no Canadá. Sua irmã em Targu-Mures, algum lugar da Romênia. Portanto, no dia-a-dia Lăzărescu vive sozinho. Ou melhor, vive com Mirandolina, Muso e Fritz seus três gatos num pequeno apartamento de Bucareste. Chegado numa birita caseira chamada Mastropol, vivendo em sua solidão, sofre uma queda doméstica, bate com a cabeça e chama uma ambulância, mas quando se torna evidente que a ambulância não vem, ele pede ajuda aos vizinhos. Para piorar sua situação, não tendo o medicamento correto, seus vizinhos lhe dão uma medicação errada para parar com a náusea. Após vomitar sangue novamente, os vizinhos decidem chamar a ambulância novamente. Quando a ambulância finalmente chega, a enfermeira, Mioara (Luminiţa Gheorghiu) aposta em outro tipo de diagnóstico. A enfermeira suspeitar que ele tem câncer e, após informar sua irmã, que vive noutra cidade, que sua condição que poderia se agravar e que ela deveria visitá-lo no hospital, a enfermeira decide levá-lo para um hospital. O filme propriamente dito começa agora, com a pregrinação do pobre do Lăzărescu e sua enfermeria por vários hospitais de Bucareste.

O filme classificado como humor negro, é bem mais que isso. Pensado pelo diretor Cristi Puiu como uma tetralogia dos subúrbios de Bucareste, o filme é um retrato do que poderia ser a rede pública do Rio de Janeiro. Quem ja precisou de um Salgado Filho, um Getúlio Vargas ou Miguel Couto, sabe muito bem do que eu estou dizendo. O filme segue a jornada Lăzărescu através da noite e de como ele é levado de um hospital para o outro. Nos primeiros três hospitais, os médicos, depois de muita enrolação, relutantemente aceitam cada um a sua maneira fria e distanciada examinar Lăzărescu. Todos, apesar de considerarem sua condição gravíssima, necessitando de uma cirurga com urgência, recusam-se a mantê-lo em seus hospitais, pois por infelicidade, as vítimas de um grande acidente de ônibus não param de chegas às emergências. Por isso decidem mandá-lo embora. Entretanto, sua saúde se deteriora rapidamente, sua fala falha, balbucia lentamente, seus reflexos diminuem, vai perdendo os movimentos dos membros direitos.

As razões para o descaso vão desde a negligência ao cansaço, ou simplesmente a recusa a atender um velho manguaça. Durante a noite de procura por alguém que o atendesse, sua agonia aumenta. Sua única protetora é a enfermeira que prestou os primeiros socorros, aguentando firmemente todas as humilhações e arrogância dos médicos. Finalmente, no quarto hospital, os médicos aceitam Lăzărescu para uma operação de emergência para remover um coágulo no cérebro. De todas as maneiras, tal como um dos médicos disse, livraria-se do tumor, mas não da cirrose.

Nos extras, Cristi Puiu dá uma entrevista interessantíssima. Segundo ele, o filme foi inspirado intelectualmente na série dos Six Moral Tales do cineasta Eric Rohmer. Na prática, numa experiência pessoal em 2000, quando teve de ser levado às pressas, vomitando sangue, à emergência de um hospital. Seu caso, não fora grave, mas a experiência o marcou com sérias crises de hipocondria. E costurou todos esse fatores com uma notícia de jornais dando conta do abandono de um velho doente pela paramédica que não conseguia um hospital para interná-lo. A paramédica, que abandonou o doente à sua sorte, foi a única condenada num processo de negligência - algo que Puiu recusa-se a aceitar. Daí o filme.

O diretor aceita a tarja preta do humor negro. Aceita mas não concorda, pois suspeito que este seja, sem sentimentalismo barato, um filme de resgate do humanismo. Ou parafraseando Brás Cubas que disse, ainda que de maneira sacana, que seu emplasto era " o alívio da nossa melancólica humanidade" esse filme é de uma maneira bem sacana uma espécie de "alívio para" - e não "de" - "nossa melancólica humanidade".






Música do dia. A Banca do Distinto. Billy Blanco

Dia de Merda

"Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebivel
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história universal.
Do fundo da noite vejo a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada,Inferno e Glória.
Dá-me Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia."

J.L.Borges

E na gente deu o hábito de se esconder nas trevas, de viajar entre as telas

O pai do [ me nego ao adjetivo ] que sai, criou em 1988 o National Film Preservation Act. Por ele a Biblioteca do Congresso, em nome de seu diretor, James H. Billington, seleciona anualmente os 25 filmes cultural e esteticamente relevantes para a história do cinema. Neste ano a lista completou 500 filmes.

Não levo muito a sério essas listas, mas fato é que dentre os selecionados neste ano estão - dentro do esquemão americano de cinema - realmente alguns de minha predileção e alguns deles até ja resenhados neste espaço de ilusões: The Asphalt Jungle (1950); A Face in the Crowd (1957); In Cold Blood (1967); The Killers (1946)- baseado num conto do Hemingway e tendo como atriz principal "o mais belo animal do mundo", Ava Gardner, perfeitamente definida por Cocteau, que tomava banhos na piscina da casa cubana de Hemingway nua, deixando-o louco, antes de Sinatra, a quem também deixaria louco poucos anos depois do filme em questão; e o The Pawnbroker (1965) - um dos melhores filmes que já assiti na minha vida, com uma das mais perfeitas atuações de Rod Steiger no papel de um duro sobrevivente do Holocausto e dono de casa de penhores no ghetto de NY, que impõe as mais diversas humilhações aos seus devedores e a seus empregados.

Os outros filmes devem ser importantes por algum outro motivo:

1. The Asphalt Jungle (1950)
2. Deliverance (1972)
3. Disneyland Dream (1956)
4. A Face in the Crowd (1957)
5. Flower Drum Song (1961)
6. Foolish Wives (1922)
7. Free Radicals (1979)
8. Hallelujah (1929)
9. In Cold Blood (1967)
10. The Invisible Man (1933)
11. Johnny Guitar (1954)
12. The Killers (1946)
13. The March (1964)
14. No Lies (1973)
15. On the Bowery (1957)
16. One Week (1920)
17. The Pawnbroker (1965)
18. The Perils of Pauline (1914)
19. Sergeant York (1941)
20. The 7th Voyage of Sinbad (1958)
21. So’s Your Old Man (1926)
22. George Stevens WW2 Footage (1943-46)
23. The Terminator (1984)
24. Water and Power (1989)
25. White Fawn’s Devotion (1910)

Musica do dia. Rosa dos Ventos. Chico

O peso de uma pedra, como se diz

Não que fosse totalmente desconectado com a realidade. Claro que admitindo isso significaria ter que confessar que o fim trágico de Agladze, o protagonista de “There Once Was a Singing Blackbird”, filme de Otar Iosseliani, não foi obra de um ardil secreto. As sutilezas, que muitas vezes tentamos negar, sobre o total desconhecimento das ações e acontecimentos que determinam nossas vidas, iludindo-nos que um fim pré-determinado, ou um fim já traçado, exista, leva-nos a crer que a fatalidade da morte de Agladze estivesse talvez em conexão com alguma forma de acaso ou destino a prazo fixo. Me recuso a aceitar isso pelo simples fato de que se assim fosse, uma discussão sobre a responsabilidade de nossos atos seria superflua. Para todos os efeitos, Agladze, como músico levava de certa forma uma vida lúdica, como num desenho mágico, com um andar tímido e displicente de um sábado pela manhã, e portanto, muitas vezes sua vida poderia ser encarada encarada com inútil - o que é um detalhe que passa longe da solução que Otar impôs ao seu filme. Sendo assim, admitindo que sua vida não valia nada, a morte de Agladze, tal como Àlvaro de Campos dissera pelo aniversário da morte de Sá Carneiro, não despertaria a mágoa dos outros, pois por ele poucos chorariam já que não faria falta a ninguém.



Alguns detalhes tornam sua inutilidade mais complexa. Agladze é um músico jovem e mulherengo, uma espécie de Don Juan moderno, que seduz pelo jogo de seduzir e em seu rastro deixa alguns corações partidos. Nem por isso as mulheres o reprovam. Simplesmente, elas não o levam a sério. Os amigos tampouco. Apesar disso, apesar de levar uma vida boêmia, de ter muitos amigos, é um tanto desconectado com a realidade. O que torna a personagem muito simpática é sua maneira de levar a vida de forma irônica flanando pelas ruas de Tbilisi com um passo bêbado, flertando com as mulheres com um olhar contrito porém sagaz, encontrando-se com amigos distantes da realidade enrijecida e erudita do conservatório. Na orquestra onde toca é um músico que mescla insegurança e displicência. Erra nas marcações da partitura deixando o austero maestro impaciente por conta de sua conduta descuidada. Quando não está no conservatório, esta as voltas com os amigos, namoradas, casos e ex-namoradas. Topógrafos, relojoeiros, vizinhos amantes de futebol e jovens operárias. Esse era o universo de Agladze. A sua conduta profissional, se espelhada em sua vida, revela muito, pois vive sem responsabilidades maiores, ainda sob o teto de um quarto de dormir - que é estúdio, escritório, e quarto de costura já que além de tudo tem dotes de - na casa da mãe.

E foi assim, sem sentido que no dia anterior a sua morte, após visitar seus amigos na relojoaria, pregar um prego na parede para que o relojoeiro pudesse pendurar sua toca; após encontrar-se com uma ex-namorada; após visitar uns vizinhos do apartamento da frente que se reuniram para assistir um jogo, ir até a varanda conversar com o menino com dotes de inventor e olhar pelos telescópio em seu predio os vizinhos, sua casa, sua mãe; retira-se. Aparentemente não se interessa por futebol – um grave erro desse rapaz. Vai para casa. Dorme. Desperta no dia seguinte com a insatisfação cotidiana. Caminha com seu passo bêbado para o seu destino. Flerta com uma moça como se fosse a única. Atravessou a rua com seu passo desconectado. Atravessou a rua entre os carros. E ouve-se o ruído de freios. E acaba no chão como um pacote tímido.

Ou seja, com ou sem destino, morre na contramão atrapalhando o tráfego. Sem dúvida, apesar do tom cômico, um dos filme mais trágicos da juventude de Otar.
Nota. Titulo em francês. "Il était une fois un merle chanteur"

Música do dia. Construção. Chico

Golias – (Davi) = ?

Desde o dia 17 de dezembro, por razões ligadas ao rompimento da trégua entre Hamas e Israel, ou entre Israel e Hamas - já que nesse caso a ordem pode implicar em favorecimento de um em detrimento ao outro - , iniciaram-se os bombardeios israelelnses a ‘alvos oficiais’ palestinos na Faixa de Gaza.

No total, a Faixa de Gaza tem registradas, como refugiadas, 750 mil almas. Estas almas, respectivas a cada corpo, já não recebiam a comida fornecida pelos caminhões de ajuda humanitária das Nações Unidas, retidos pelas autoridades israelenses, desde fins de Novembro. Mas isso são apenas palavras sobre fatos e estatísticas que virão a ser História, e que por ventura esta mesma História, dependendo de quem a escreva, redimirá os algozes de suas responsabilidades históricas, culpando as vítimas por sua falta de sorte. Nesse caso, importante são as imagens...



Os cadáveres de cinco irmãs palestinas de 4 a 17 anos mortas no bombardeio noturno israelense a uma mesquita do campo de refugiados de Yabalia. Publicada no El País - 27-12-2008

Feliz 2009.

Glória a todas as lutas inglórias

A Emory University disponibilizou este ano uma base de dados completa sobre o que chamam de Trans-Atlantic Slave Trade. A base mostra as rotas de mais de 10 milhões de africanos que foram obrigados a rumar para Europa e Americas, nos mais de três séculos de escravidão.

No caso do Brasil, é possível obter o nome das embarcações, nome do capitão, ano e porto de saída e porto de destino. Em alguns casos é possível inclusive obter o nome, a idade e a altura do indivíduo.

http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces

Sem dúvida, uma contribuição marcante para o que ainda há de vir.

Música do dia. Mestre Sala dos Mares do insuperável Aldir Blanc.

O Homem que Calculava

Desde fins junho assisti em video uns 55 títulos no NetFlix - incluindo filmes, documentários, series e pelos ossos do ofício, filmes infantis. Alguns foram revistos repetidamente, mas pouco importa, pois em números frios a média é de quase um filme a cada 3 dias. Foram mais ou menos uns 70 filmes. 70 filmes. Um a cada três dias. É pouco, mesmo considerando que dormindo uma media de 5 horas por noite, tendo um trabalho de 8-9 horas diárias, e ainda reservando tempo para minhas leituras, considero pouco, pois a meta era o de um filme por dia e um livro a cada 4 dias.

Nas estatísiticas dos números a frio não incluo os assistidos na tela grande nem os assistidos num canal que faço questão de assinar, o Turner Classis Movies - que os mafiosos da Comcast comandados por Edward G. Robinson fazem questão de me arrancar os olho da cara -, pois aí a média aumentaria. Familiares e amigos dizem que isso é patológico - mas continuam conspiradoramente dando corda, pois acabo de ganhar da megera de minha sogra mais uma assinatura de seis meses do NetFlix de presente de Natal. Agora, tenho direito a 5 filmes em video por semana.

No fundo, eu sei que isso é um problema. O pior é que eles não sabem que muitas vezes acordo no meio da noite para rever muitos destes filmes, repetir as cenas, parar, voltar, atentar para os diálogos, tomar notas... e se sou pego em delito flagrante, finjo, para nao piorar minha situação perante a família, que estou dormindo com a televisão ligada... enfim... agravando ainda mais esse meu problema que tende a piorar em 2009 pois em minha lista consta 475 filmes a serem assistidos ou revistos. Um absurdo. Uma utopia.



1. 71 Fragments of a Chronology of Chance
2. The Death of Mr. Lazarescu
3. Avenue Montaigne
4. Our Town
5. Four Films by Otar Ioselliani: Disc 2
6. Four Films by Otar Ioselliani: Disc 1
7. Rodin: The Gates of Hell
8. Il Grido
9. Famous Authors: John Steinbeck
10. My Life and Times with Antonin Artaud
11. A Brief Vacation
12. The Diving Bell and the Buterfly
13. Tempest
14. The Damned
15. Margarette's Feast
16. The Bicycle Thief
17. Ratatouille
18. The Passenger
19. The Virgin Suicides
20. Sculptures of the Louvre: Disc 1
21. Sculptures of the Louvre: Disc 2
22. Maria Full of Grace
23. Mirror Andrei Rublev
24. The Long, Hot Summer
25. Cars
26. The English Masters: Constable
27. L'Avventura
28. Who's Afraid of Virginia Woolf?
29. Down by Law
30. The Louvre
31. La Notte
32. Umberto D.
33. There Will Be Blood
34. Permanent Vacation
35. The Nude in Art: Disc 2
36. Stranger than Paradise
37. Dead Man
38. Once in a Lifetime
39. Night on Earth
40. Shadows
41. Curb Your Enthusiasm: Season 6: Disc 1
42. Curb Your Enthusiasm: Season 6: Disc 2
43. La Notte
44. Ossessione
45. The Aura
46. 2 Days in Paris
47. Human Nature
48. The Man Who Copied
49. Confessions of a Dangerous Mind
50. Cinema, Aspirins and Vultures
51. Eternal Sunshine of the Spotless Mind
52. Being John Malkovich
53. Durval Discos
54. The Loves of Emma Bardac
55. Story of a Love

Mais Otar

Pastoral (1976) é um filme de roteiro simples, talvez se eu pudesse ousar afirmar sem a sofisticação onírica da obra de Tarkovski. Um filme russo com legendas em francês pode intimidar, mas não este. Como aos poucos descubro, os filmes de Iosseliani são filmes sem palavras quase, portanto quase sem legendas, e por isso percebe-se que o que conta mesmo são os gestos, as relações entre pessoas, a sensorialidade dos sons. São filmes com princípio meio e fim.
Pastoral conta a historia de um grupo de músicos que por alguma razão burocrática e muito estranha é mandado de Tbilisi para um retiro de veraneio numa comunidade rural. Uma das musicistas do quarteto parece ter alguma relação de parentesco com os donos da casa, dada a calorosa recepção. Parece pois no fim paga pela estada. Na casa habita uma grande familia composta pelos avos, pais e netos.

O calor das boas vindas logo se desfaz, pois por alguma razão a sofisticação da música e dos ensaios, não altera a rotina dos moradores. Estes apenas acham estranha a música, tocada pelo quarteto, que de longe chega aos seus ouvidos, mas seguem suas vidas com a lida do campo, com a ordenha das vacas e o pastoreio das cabras. A azáfama do campo revela que os moradores da vila não tem tempo para aquela estranha e sofisticada música e aos poucos são os músicos que revelam-se envoltos pelas questões locais, como as brigas de vizinhos pelo desvio água que corre num dos córregos de uma propriedade, pela janela que um constrói de frente para a casa do outro, pelos pequenos golpes que um dos vizinhos pobres dá para sobreviver, enfim, pelas questôes cotidianas que fazem realmente sentido para os que vivem ali.

A vida calma, vista pelos visitantes como bucólica, é corroída não por determinação governamental autoritária, mas pelos desentendimentos cotidianos, pelas controvérsias locais, ou mais que isso, simplesmente pelo tempo. A única conexão entre os dois grupos, os moradores e os músicos, é dada pela ação de uma adolescente, um tanto sonhadora, que durante o dia cuida dos irmaos menores da casa e ainda encontra tempo para ler durante a noite e ter aulas de piano. E aos poucos tanto os músicos quanto os expectadores, vamos nos transformando em antropólogos relutantes tentando encontrar os sentidos funcionais da comunidade e do país inteiro na resolução dos pequenos conflitos, que nem de longe tem desfechos sentimentais.
Aos poucos, dependendo dos olhos de quem assiste, surge um possível envolvimento entre um dos músicos e a jovem da casa; ou dependendo dos olhos de quem se distrai, as nuances dos Kulaks e dos Kolkhoses vão surgindo, quando um dos capatazes impede que um velho colete pasto para seus cavalos, tomando-lhe a foice, ou melhor dizendo, em linguagem mais revolucionária expropriando-lhe o instrumento de produção. Enfim, um filme que de cacos e de reconstituição de lacunas, levanta imensas dúvidas aparentes na tentativa de sinalização dos contraste entre um universo de origem dos músicos, urbano, e um universo remoto, o campo. Uma das últimas cenas, quando a menina veste-se com a melhor roupa e arranja uma cesta de maçãs para a despedida dos músicos, é tocante. Quando a cellista chega a casa, com seus pais e avó tem-se a impressão de que todos aqueles do campo estão arqutipiticamente ali, no momento em que o pai pega uma das maçãs da cesta e a come, ao som do cello da filha. Uma cena de pura poesia. Uma poesia sem palavras quase, portanto quase sem legendas, onde o que conta mesmo são os gestos, as relações humanas com princípio meio e fim.

La Pianiste


Erika eh uma balzaquaquiana professora de piano. Rigida e refem de um pretenso conservadorismo criado em parte pela aura de pianista classica num conservatorio de musica vienense, sente um secreto prazer em torturar psicologicamente seus pupilos. Usa seu poder para manipular alunos adolescentes inseguros. Ironicamente, perto de 40 anos ainda vive com a mae, por quem sente uma raiva impotente, que misturada ao temor torna a relacao das duas uma convivencia azeda e explosiva que lhes transforma a indole. Sexualmente, se satisfaz colecoes de revistas que para seu mundo seriam proibidas, com idas furtivas a cabines de filme porno e passeios a pe por cines drive-in a procura de distracoes voyeristas.

Seu mundo encantado minuciosamente costurado com ordem, metodo e a falsa sensacao de ascendencia sobre todos que a rodeiam, passa a se desorganizar quando conhece a Walter, um estudante de engenhaira de 17 anos, que presta exames para o conservatorio. Ela se sente atraida por ele, ainda que o interesse juvenil de Walter pareca mais impetuoso que o dela - controlado e indiferente. Perante os pares desmerece as qualificacoes do rapaz, quando este executa obras de Schumann e Schubert inferindo que as pretensoes profissionais do rapaz sao ambiciosas ja que uma carreira profissional de pianista deve se manifestar mais cedo.

Em pouco tempo sua atracao pelo rapaz passa de uma pretensa ascendencia dominante a possessividade e a uma contraditoria relacao de passividade que somente Leopold von Sacher-Masoch explicaria. Essa transformacao fica clara quando conduzida pelo ciume doentio que passa a sentir por Walter Klemmer, poe vidros quebrados no bolso do casado de uma de suas alunas, Anna Schober, por esta contactar Walter numas das audicoes. Quando procurada pela mae da aluna – tao intransigente quanto sua propria mae - , Erika forja compaixao. Consola-a de maneira a nao deixar duvidas sobre seu papel de mentora.

No frigir dos ovos, Walter Klemmer, como todo o bom adolescente, eh um rapaz fissurado na professora enigmatica. A professora, sexualmente reprimida, tem uma longa lista de exigencias sadicas e masoquistas expressas por carta ao rapaz, que comeca a desconfiar de sua sanidade e se decepciona, desistindo da relacao. Ela insiste, procura-o, e na hora da cama – ou do vestiario de hoquey – nada pintou direito. No novo encontro, Klemmer invade o apartamento da moca, espanca a mae, violenta e humilha a filha. Ela sente que a realidade eh um pouco diferente daquela que assiste nas cabines de filmes ‘proibidos’. Um filme que combinaria mais com uma trilha de Wagner ou Xitaozinho e Chororo, mas como foi Schubert, pareceu-me ateh nem tao violento quanto vulgar. No final, a trilha sonora eh o que importa.
Musica do dia: Tom Waits. Bottom Of The World. Orphans: Brawlers

April


Uma especie de segunda-feira de manhã. Uma cidade antiga desperta lentamente. As janelas dos sobrados vao se abrindo pouco a pouco. Por tras das janelas, os moradores, a maioria deles musicos, despertam a cidade com recitais. Um casal jovem imensamente apaixonado nao consegue encontrar um espaco para namorar, pois ha uma imensa mudanca na cidade. Carregadores passam todo o tempo com moveis e caixas por todos os lugares em que o casal decide pousar organizando a mudanca para um complexo habitacional nas cercanias da pequena cidade. A paixao dos dois eh tamanha que sua energia faz a aguas das torneiras correrem soltas, as bocas do fogao e as lampadas do novo apartamento onde vivem acenderem.

O filme April (1961), de Otar Iosseliani, tem alguns aspectos ainda mais surreais. Apesar do filme de apenas 45 minutos ser quase todo mudo, ha uma sonoplastia estranha. Os instrumentos musicais nao emitem seus sons originais, a agua nao faz ruido de agua saindo da torneira e portas que nao rangem como deveriam ranger, por exemplo. Por esse amor ser tao forte e nao permitir que os instrumentos funcionem e as luzes acendam, a vida cotidiana vai se transformando num tormento. Subitamente, aquilo que parecia um sonho passa a se transformar, sob o mesmo cenario de sons de natureza metalica, num pesadelo.

Otar Iosseliani eh georgiano – por acaso a terra natal de Stalin. Este foi o terceiro filme da carreira de Iosseliani, e um de seus muitos filmes banidos pelas autoridades do Partido Comunista, sob a alegacao de extremo formalismo. Desapontado com as decisoes, decidiu trabalhar embracado por dois anos e depois como metalurgico. Apenas em 1966 retorna a sua carreira, com Falling Leaves, um filme onde o contraste entre os valores tradicionais e modernos esta presente de maneira marcante. Um tanto mais real e oficialesco, e muito menos lirico que Pao de Manuel de Oliveira, Falling Leaves, conta historias estanques ao redor do quotidiano de dois jovens homens, um idealista e outro ambicioso e oportunista, que comecam a trabalhar numa fabrica de vinhos, onde aos poucos o quotidiano dos trabalhadores, que repetem os mesmos gestos mecanicos ao produzir o vinho, mostra a diferenca essencial dos niveis hierarquicos e das herancas filiais. Um filme um tanto longo e desconjuntado que mescla imagens documentais e narrativa filmica, numa gramatica nem sempre compreensivel como em April - uma especie de pequena obra-prima.

"For me, the best film -- the true film -- is the kind which requires no translation."
Otar Iosseliani , Georgian filmmaker

The Last Days of Judas Iscariot


A montagem de “The Last Days of Judas Iscariot”, em cartaz no Forum Theater, é prova da maturidade do teatro de linguagem ágil na área do drama bíblico, pois é fácil lembrar o quanto um espetáculo com esse grau de exigência pode incorrer em tendência a pasteurização e a banalidade.

Fui assistir à peça tal como um viajante medieval: sem guias impressos ou informações prévias sobre o destino. Sabia das informações de praxe sobre o escritor, Stephen Adly Gurgis, e do diretor original, Philip Seymour Hoffman, mas nada sobre John Vreeke, diretor dessa montagem. Importava que Adlly Gurgis é um escritor jovem que escreve há muito para o grupo LAByrinth de NY com incursões na tv e no cinema. Em 2004 ganhou uma bolsa do Sundance Screenwriter’s lab e já escreveu episódios do NYPD Blue e Sopranos. Acho que para mim bastava.

Stephen Adly Gurgis teve uma sacada otima. Como se sabe é mais do que sabido que o texto do era baseado na vida de Judas Iscariotes, um dos escolhidos, um dos 12 apóstolos de Jesus Cristo. Na versão de Stephen Adly Gurgis, Judas, remoido pela consciencia por ter vendido Cristo por 30 moedas de prata, comete suicídio. Morto, aguarda julgamento no purgatório que, à guisa de tribunal, conta com um juiz, Judge Littlefield, a advogada de defesa Fabiana Aziza Cunningham, o promotor Yusef Aziza Cunningham e dez jurados de um juri popular. O cenário todo é adaptado num num tribunal. E a obstinada advogada de defesa Fabiana Aziza Cunningham chegas as raias do descontrole emocional na defesa de seu cliente – que só ela e Borges, que não aparece na peça acreditam se tratar Judas de um inocente.

A montagem é limitada, mas funciona. Cinco jurados sentados frente a frente; o juiz e os dois advogados; Judas no centro do palco; e as aparições eventuais de Satanás. Todos os atores (jurados) trocam papeis o tempo todo. Por exemplo, o personagem de Freud, passa a ser São Tomás, e um soldado romano; Santa Monica – interpretada pela excelente Veronica del Cerro – passa a ser um soldado; e o Juiz Littlefield inverte os papéis com um dos Caifás presentes no julgamento de Jesus organizado pelo Sinédrio. Os papéis e indumentárias são trocados no palco, assim que os atores atravessam o palco e se sentam na cadeira vaga de um dos jurados. Um jogo interessante que funciona bem para um teatro pequeno e um palco de poucos recursos, onde os jogos de luzes fazem recuar a narrativa em flashback par aa infância e juventude de Judas.

Mas a sacada cênica de Stephen Adly vai além. Consiste em mostrar um cara que, antes de se tornar iníquo e infiel, e de ser malhado pela molecada suburbana em Sábado de Aleluia, fora encarregado das financas da trupe que rodeavam Cristo. Como controlava a grana, passou a adquir poder. Mas Stephen Adly mostra também que os fatos não estavam pre-determinados, apesar da rapazeada do grupo já desconfiar dele, Judas, desde a fraqueza demonstrada na cena da unção com óleo perfumado em Betânia, onde o cara provara que estava mais apegado ao dinheiro que os sectos lançavam que às palavras de Cristo, propiamente ditas.

A experiência não é catártica como no conto de Borges Tres versiones de Judas, onde uma das versões dá conta que Judas é o verdadeiro salvador da humanidade – por ter tornado Cristo o traído, já que aquele também renunciara à glória, à honra, à paz e ao reino dos céus. Stephen Adly Gurgis recua. Torna o final, um final banal, com Judas encontrando um personagem secundário num bar, o alcoólatra Butch Honeywell, que se lamenta por ter deixado sua vida familiar escapar-lhe pelas mãos ao trair sua mulher e suas filhas, e consequentemente ter se entregue à birita. Ou seja, uma liçãozinha de moral básica sobre a prescindibilidade dos julgamentos: sejam eles grandiosos como o daqueles que julgaram Judas, ou elementares como aqueles que julgam o infeliz do Honeywell. Mas de tudo, o final é o que menos importa.

Gastaldi veio ao mangue:ô my god ai, que bode que vai dar...

O cartografo italiano Giacomo Gastaldi foi um revisor do Atlas de Ptolomeu e responsavel, segundo dizem, por uma de suas mais compreensiveis adicoes, particulamente por introduzir partes da America, ate entao desconhecidas. A edicao preparada em 1548, analisada em retrospectiva, batia a dos alemaes, belgas e holandeses – ases na arte da confeccao de mapas. Nomeadamente a do alemao Martin Waldseemuller - que sugeriu o nome de America para esse cantinho onde vivemos, em homenagem ao Americo Vespucio - Geographia ode1513 e a do belga Abraham Ortelius Theatrum de 1570.

Giacomo nao tinha sido o primeiro a falar da America. Pierre Decellier, em 1546, ja havia tracado aspectos geograficos e antropologicos da America, mas por pertencer a Escola de Dieppe, a patriotada marota encalacrada nos Institutos Historicos e Goegraficos da Vida o desconsidera - bem como a Giacomo e a Ortelius que somente viria a publicar o seu Mapa da America ou do Novo Mundo em 1587 – valendo para razoes ufanistas apenas as contribuicoes de Diogo Homem, cartografo portugues que trabalhou na Antuerpia e Veneza.

Giacomo era Piamontes e jamais pisou no Brasil. Ate ai tudo bem, pois nao era pratica dos cartografos europeus iram a America, e por isso apareciam os monstros marinhos, os fenomemnos teratologicos de gente comendo gente no sentido lato do termo. Mas o feito do Giacomo foi importante pois publicou em 1965 Nella Stamperia de Giunti, onde entre outros detalhes percebe-se indios trabalhando inocentes, praticando escambo com portugueses voluntariosos, e...




...copulando...

Musica do dia: Mingus samba(Guinga - Aldir Blanc)
Balangandã da baiana...Maracanã do Carvana...deixa a Chiquita bacana voltar!Mane Garrincha sacana...tá bem, nós somos bananas mas não é preciso se embananar.Mingus veio ao mangue:ô my godai, que bodeque vai dar...Mingus com seu somvai botar o mingaua knockdown.Mingus, senta o pauque o pitecantropustem que mamáMamba, Mingus,mani-pi-cao!Mingus me sacudiu:tchan, tchau!Ô, ô, morena faceira,ai, ai, cubana mañera,hoje é do Mingus o meu carnaval.Ai, caboclinha, me aqueçatransforma a quinta e a terçaem feriados, do-Mingus de sol!Ai, que mistura que dá...ôi, zum-zum-zum resedá...Vou com o Mingus e um primo do Neino domingo pra Piabetá.Ai, ai, Iaiá de Ioiô,Mingus te manda um helloJá tomamo umazinhae há o bafo da onça na onda que eu vou...Mamba, Mingus,mani-pi-cao"Mingus samba e pingajazz de coringa na geral!

O ponto em que a vertical de um lugar vai encontrar a esfera celeste acima do horizonte

Almoçei com a Patricia.
Retornei a minha mesa. Li um conto. Acho que somente eu, ela e mais uns poucos amigos saberão do que se trata.

Era um rapaz passivo. Aceitava tudo o que vinha dos chefes. Porém, como era bajulador, incomodava.
Cortaram-lhe a língua: deixou de elogiar.
Depois cortaram-lhe os dedos. Deixou de escrever textos laudatórios.
Foi num desses dias que, com a cabeça a bater numa mesa - em código morse - ele disse, para os seus chefes:
Mais uma como essa e perdem um amigo.

(Conto, O Amigo, do livro "O Senhor Brecht" - Gonçalo M. Tavares) Este conto envolvendo o singelo tema do "kiss up, kick down".


Hans Henze

Funeral blues
W.H. Auden

Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.

Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.

[…]
The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.

Este poema foi recitado pelo personagem Matthew no filme Four Weddings and a Funeral, exatamente no funeral de Gareth. Um filme bacana, um filme de geração que não deveria ter sido tão banalizado. Quando Quico escreve dando a noticia da morte do Hans Henze, no último sábado, senti uma coisa muito ruim, muito ruim mesmo, uma sensação que a vida é reles pois a mão, débil e senil, que sustenta seu fio não é fiável: treme a todo o instante. E lembrei deste poema.

Ter o Hans ao nosso lado, mesmo que distante, nos fazia bem: Tê-lo vivo nos fazia bem. Antes do ataque cardíaco que o deixou esculhambado e falando mole, sempre nos reuníamos no apartamento do Quico e Hans tinha a incrivel capacidade de transformar nossa atmosfera num daqueles filmes de Denys Arcand, frequentando os mundos de Pedro Juan Gutiérrez.

Com carinho, em memória do nosso amigo Hans Henze, que morreu no ultimo fim de semana no Rio de Janeiro.