Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Asteya
Vou em frente. Chega de perder tempo com gente como o poeta escocês Robert Burns e Thomas Man. Poetas e escritores que já não me dizem nada e insistir em entendê-los seria roubar de mim mesmo algum tipo de energia, ou melhor, o tempo que não disponho mais na vida. Escritores e poetas com quem passo meu tempo são os que expandiram o limite de sua arte com inventividade e coragem, como os exemplos de João Cabral e Ivan Junqueira, e transformaram o conjunto de sua obra em algo imprevisto. Tão bom que me toca intimamente, a ponto de eu coçar minha cabeça e dizer, Isso é muito bom, por que eu nunca tinha lido antes. Por isso, um dia, espero que brevemente, lerei Joyce. E por isso que gosto do que Borges fez com a literatura contemporânea ao juntar literatura policial folhetinesca com a História e os arquétipos mais íntimos o ser humano; por isso considero a leitura de Balzac, Flaubert e Dostoievski como experiências tão necessárias a um homem como as de ler um livro com paixão, criar um filho, plantar uma árvore; por isso gosto de Pollock que me fez ver, pelos olhos de Giulio Carlo Argan os movimentos espaciais da cidade. Por isso, para mim, não seria um exagero incluir entre eles a inventividade de Tom Ze, a poesia de Tom Waits, os filmes do Kurosawa e do Vittorio De Sica, e a música de Brahms, e o Flamengo da década de 80 que vi jogar. Razão? Por que me causam paz e inquietação.
Na minha idade, já cansei de brigar com fatos. Interpreto-os e vou em frente. Com quase quarenta anos é muito fácil identificar uma derrota, mesmo que seja difícil admiti-la em público, já que como dizia Pessoa, difícil é encontrar um amigo que tenha levado porrada. Todos são campeões em tudo. E o que aconteceu ontem foi isso...
Tivemos o melhor time dos últimos 15 anos que em pouco mais de três jogos pôs por terra as esperanças contidas há quase 30 anos, desde aquele longínquo 1981. Penso que se eu escrevesse isso ontem usaria aquela sinceridade deseperada, desalentada e pungente da juventude, e me juntaria ao coro da torcida gritando FORA ADRIANO. Me senti mais revoltado e desrespeitado ao ver um time destes se esforçando ao máximo ganhar de um time mediocre do que com o desrespeito do goleiro Bruno mandando beijos para a torcida, num ato de ironia ignóbil. Mas, antes antes de um grito na laringe danificada, reflito hoje com ponderação. E o que realmente me revoltou em todos os jogos foram os primeiros tempos, geralmente já tendo tomado um gol e sendo obrigados a adquirir uma urgência desesperada para correr atrás do empate e da vitória, sempre sofrível. Ou seja, a falta e compromisso que inspirou a desconfiança a cada jogo.
Desconfiança esta, vamos ser sinceros, desde aquele empate com o Goias. Ganhamos o Campeonato Brasileiro com sorte, e convenhamos um pouco de corpo mole do Grêmio e do Corinthians. E nos iludimos, por que somos Flamengo. O problema é que agora chegamos ao fundo de um poço de vergonha. Não vencer um time fraco como Caracas, talvez mais fraco que qualquer time pequeno do Campeonato Carioca, é algo preocupante. O Botafogo, no último domingo nos respeitou mais, pois entrou em campo combativo desde o começo. O time do Caracas apenas ocupou os espaços de apatia deixados por nós em campo.
Não sei se precisamos de um novo técnico.
Andrade é meu idolo. Eu daria tudo para apertar a mão um dia na minha vida, mas ele fez várias mudanças erradas no time em jogos consecutivos; hesitou todos esses jogos em colocar o Pet; insistiu em jogadores medíocres como Juan, Kleberson e Toró; armou um esquema defensivo com 3 cabeças de área - com Angelin no comando. Cometeu um pecado tático nisso tudo com a falta de treino com falta combatividade de marcação homem a homem – parece que todos os adversários jogam contra cones, e o segundo gol do Caracas mostra isso. A finalizações inconclusas de ontem, com Adriano, Leo Moura e Love chutando bolas certas para fora, mostra bem meu argumento. Não sei se chegaria ao ponto de pedir sua saída, pois acho que ele é apenas um técnico conservador.
Entretanto, Certamente precisamos de um diretor de futebol competente e discreto, que tenha mais diálogo com o técnico.
Tudo que se viu até agora, foi exatamente o contrário, de imposições veladas contra Pet, a leniencia com Adriano, Love e o Comando da Chatuba. Por isso não concordo com as opiniões amenizadoras. Cabeças devem rolar. E muitas. No mundo do trabalho é assim, não rendeu, rua. Estou convencido que time com muitos astros, e outros que pensam sê-los, não é necessariamente um time bom – vários times europeus provam isso. O Flamengo não é um time bom é apenas um time com algumas estrelas - o melhor que tivemos nos ultimos 15 anos -, mas provou ser um time medíocre sob a égide de do Império de Adriano – um exemplo e homem e atleta medíocre e incompetente, que merece sair da história do Flamengo pela porta dos fundos e apenas ser esquecido. Um time aborrecido e com mesma ênfase dramática de um Montanha Mágica.
Faço um apelo para meus amigos flamenguistas que tenhamos um pouco de dignidade hoje e NãO TORÇAMOS PARA NENHUM TIME LATINO, pois passar provaria nossa insistência no mito de Asteya.
Na minha idade, já cansei de brigar com fatos. Interpreto-os e vou em frente. Com quase quarenta anos é muito fácil identificar uma derrota, mesmo que seja difícil admiti-la em público, já que como dizia Pessoa, difícil é encontrar um amigo que tenha levado porrada. Todos são campeões em tudo. E o que aconteceu ontem foi isso...
Tivemos o melhor time dos últimos 15 anos que em pouco mais de três jogos pôs por terra as esperanças contidas há quase 30 anos, desde aquele longínquo 1981. Penso que se eu escrevesse isso ontem usaria aquela sinceridade deseperada, desalentada e pungente da juventude, e me juntaria ao coro da torcida gritando FORA ADRIANO. Me senti mais revoltado e desrespeitado ao ver um time destes se esforçando ao máximo ganhar de um time mediocre do que com o desrespeito do goleiro Bruno mandando beijos para a torcida, num ato de ironia ignóbil. Mas, antes antes de um grito na laringe danificada, reflito hoje com ponderação. E o que realmente me revoltou em todos os jogos foram os primeiros tempos, geralmente já tendo tomado um gol e sendo obrigados a adquirir uma urgência desesperada para correr atrás do empate e da vitória, sempre sofrível. Ou seja, a falta e compromisso que inspirou a desconfiança a cada jogo.
Desconfiança esta, vamos ser sinceros, desde aquele empate com o Goias. Ganhamos o Campeonato Brasileiro com sorte, e convenhamos um pouco de corpo mole do Grêmio e do Corinthians. E nos iludimos, por que somos Flamengo. O problema é que agora chegamos ao fundo de um poço de vergonha. Não vencer um time fraco como Caracas, talvez mais fraco que qualquer time pequeno do Campeonato Carioca, é algo preocupante. O Botafogo, no último domingo nos respeitou mais, pois entrou em campo combativo desde o começo. O time do Caracas apenas ocupou os espaços de apatia deixados por nós em campo.
Não sei se precisamos de um novo técnico.
Andrade é meu idolo. Eu daria tudo para apertar a mão um dia na minha vida, mas ele fez várias mudanças erradas no time em jogos consecutivos; hesitou todos esses jogos em colocar o Pet; insistiu em jogadores medíocres como Juan, Kleberson e Toró; armou um esquema defensivo com 3 cabeças de área - com Angelin no comando. Cometeu um pecado tático nisso tudo com a falta de treino com falta combatividade de marcação homem a homem – parece que todos os adversários jogam contra cones, e o segundo gol do Caracas mostra isso. A finalizações inconclusas de ontem, com Adriano, Leo Moura e Love chutando bolas certas para fora, mostra bem meu argumento. Não sei se chegaria ao ponto de pedir sua saída, pois acho que ele é apenas um técnico conservador.
Entretanto, Certamente precisamos de um diretor de futebol competente e discreto, que tenha mais diálogo com o técnico.
Tudo que se viu até agora, foi exatamente o contrário, de imposições veladas contra Pet, a leniencia com Adriano, Love e o Comando da Chatuba. Por isso não concordo com as opiniões amenizadoras. Cabeças devem rolar. E muitas. No mundo do trabalho é assim, não rendeu, rua. Estou convencido que time com muitos astros, e outros que pensam sê-los, não é necessariamente um time bom – vários times europeus provam isso. O Flamengo não é um time bom é apenas um time com algumas estrelas - o melhor que tivemos nos ultimos 15 anos -, mas provou ser um time medíocre sob a égide de do Império de Adriano – um exemplo e homem e atleta medíocre e incompetente, que merece sair da história do Flamengo pela porta dos fundos e apenas ser esquecido. Um time aborrecido e com mesma ênfase dramática de um Montanha Mágica.
Faço um apelo para meus amigos flamenguistas que tenhamos um pouco de dignidade hoje e NãO TORÇAMOS PARA NENHUM TIME LATINO, pois passar provaria nossa insistência no mito de Asteya.
BBB79
Assisti a esse filme pela primeira vez há pelo menos 20 anos atrás e não me lembro bem por que razão não gostara. Ontem, revendo-o percebi que esse filme é ótimo. Quando assisti pela primeira vez, a Amazônia, ao contrário, já não era mais uma promessa e a Beth Faria já perdera a majestade para se não me engano a Gretchen ou a Sandra Brea, uma dessas aí. Ou seja, um filme datado. Além do mais, sempre quando se conversa ou se lê sobre filme brasileiro com alguém mais PhD. O cidadão vai falar da “questão” da Identidade “a nível de” Nação, e todas essas coisas que não me interessam e que para ser sincero me desestimulam numa discussão sobre cinema. Mas hoje em dia isso não importa, pois o que empolga neste filme é o inventário econômico e cultural de um país onde a nota mais alta tinha um Floriano Peixoto estampado na cédula cor de barro e a Beth Faria ainda era com toda a justiça um símbolo sexual. O filme se centra nos artistas mambembe da Caravana Rolidei e em sua peregrinação pelas fronteiras do norte e nordeste do país.
As fronteiras são claras entre um país tão imenso que praticamente não dialoga entre si. As fronteiras culturais são mais impressionantes ainda, pois com a advento da televisão a cultura levada pela Caravana praticamente fica batida. Cacá Diegues fez realmente um filme ótimo com atores fantásticos. José Wilker está simplesmente absoluto em seu papel de empresário cultural, meio cafetão, meio aproveitador, meio oportunista, enfim, um empresário cultural com é maiúsculo. E o Fábio Júnior até que se sai muito bem no papel de sanfoneiro apaixonado pela Salomé, interpretada pela Beth Faria. Um momento Cinema Paradizo, e que Cinema Aspirinas e Urubus tentou reproduzir de maneira não muito eficiente, acontece nesse filme, quando o inigualável Joffre Soares, interpretando Zé da Luz , vai pelo sertão exibindo o Ebrio por um sertão sem audiência interessada. Uma cena que podia ter feito até chorar, mas que Cacá Diegues preferiu deixar assim crua.
Se você hoje em dia for assistir esse filme com cuidado, percebe que o diretor fez de cada take uma crítica social embutida, mas sem aquela militância chata de filmes propagandistas. No filme, a ditadura existe, mas não afeta a vida de milhões, índio bebe coca-cola e quer voar de avião, sertanejo assiste televisão e gosta do seu poder hipnotizante, os artistas são analfabetos - como o prórpio Lorde Cigano revela a certa altura -, e o Brasil se torna moderno mas é de um atraso só. E o prórpio enredo é bem contado com uma estória de amor entre o Sanfoneiro e Salomé sem romantismo barato e sem idealismos de fanfarra. Filme clássico que, com o respeito ao tempo que sedimenta um monte de preconceitos, vale a pena ser revisto.
Efemérides do primeiro de Abril!
Só um lembrete, a história corrige a direção do silêncio, não esse o silêncio da ausência de ruído, mas o da mudez do silêncio feito de vibrações que se anulam umas as outras como quando da balbúrdia de gente nos ecos de um refeitório, onde apenas reparamos nas bocas que movem-se como aquelas dos tumultos íntimos dos mímicos, por esse mesmo silêncio pergunto, que espécie de perstígio podem exercer sobre nós túrbidos homens como o udenista Auro Moura, 46 anos atrás?
Não espanta em nada a satisfação do udenista Auro Moura ao declarar vaga a cadeira da Presidência da República, vindo de quem vem, logo ele, um homem que ainda jovem participa da rebelião de 32 e que mais tarde seria um dos organizadores da TFP, e que mais tarde ainda, quando o esmalte dos números do relógio que contava seu tempo já descascara, e quando os milicos já se sentiam confortáveis baixando o sarrafo na malta de comunistas, esquerdistas, sociedade civil & afins, ironicamente, quando ainda o relógio continuava movendo os ponteiros num tempo quando os esmalte dos números
descascados já não importava, os próprios imerecidos militares trataram de jogá-lo merecidamente para escanteio primeiro como embaixador na Espanha de Franco e mais tarde como aspone no Bando de Desenvolvimento de São Paulo. Ou seja, existem lugares onde ser golpista dá certo historicamente.
Não espanta em nada a satisfação do udenista Auro Moura ao declarar vaga a cadeira da Presidência da República, vindo de quem vem, logo ele, um homem que ainda jovem participa da rebelião de 32 e que mais tarde seria um dos organizadores da TFP, e que mais tarde ainda, quando o esmalte dos números do relógio que contava seu tempo já descascara, e quando os milicos já se sentiam confortáveis baixando o sarrafo na malta de comunistas, esquerdistas, sociedade civil & afins, ironicamente, quando ainda o relógio continuava movendo os ponteiros num tempo quando os esmalte dos números
descascados já não importava, os próprios imerecidos militares trataram de jogá-lo merecidamente para escanteio primeiro como embaixador na Espanha de Franco e mais tarde como aspone no Bando de Desenvolvimento de São Paulo. Ou seja, existem lugares onde ser golpista dá certo historicamente.
Aterro
Ultimos meses, falta de tempo absoluta que impõe ao blog uma espécie de silêncio estagnado. Mas. Fim de Semana em NYC. Casa de amigos. Evidentemente, como o tempo é curto para se ver tudo que se quer, quase nos deixamos levar pela pressa da cidade com seus taxistas em suas ansiedades dos javalis. Mas o que nos salva é que algumas ruas mostram ainda uma paz de roça, onde alguns vizinhos se conhecem, os cachorros fazem seu cocô tranquilos, e quase se pode ouvir um velho ofegante do outro lado da calçada a tossir com seus pulmões cheios de lodo.
No MoMA, um dos meus interesses numa cidade de muitos abismos, ao entrar, não consigo disfarçar minha cara de beduíno pasmado olhando para cima. Por absoluta falta de tempo, ainda não visitara o museu desde sua reforma. A arquitetura é magnífica, moderna, imponente, quadriculada, ampla, luminosa, um espetáculo por si só a ser adulado. Detalhe importante. Esse amigo tem um providencial membership do museu, o que nos permite entrar sem pagar e entrar sem filas. Me senti mais feliz que jogador de futebol em camarote do Sambódromo.
Por motivos de força maior, fui obrigado a voltar 3 vezes na exibição de Tim Burton. Eu ainda avisei pro cidadão que ele ia sonhar com aquelas porcarias, mas ele quis por que quis assistir aquele espetáculo de monstros psicodélicos. Conclusão, com quase cinco anos, tremendo homem feito, diz que sonhou com o monstro da boca grande e fez xixi na cama.
Infelizmente, por motivos de meltdown relacionados mais uma vez ao Burton, não consegui assitir com a atenção que eu queria a exibição de Picasso. Picasso: Themes and Variations. Eram mais de cem trabalhos entre xilos, carvão, aquarela que já estiveram parcialmente numa exibição da Aliança Francesa do Rio - no século passado. No MoMA havia alguns visíveis estudos das suas fases azul e rosa. Um deles, como nesse aqui abaixo, vê-se o acrobata, um dos personagens do quadro da Família de Saltimbacos da coleção da National Gallery of Art, e que no quadro aparece sem uma perna. Outras litogravuras lembram muito outros quadros famosos de Picasso, como uma série de estudos, onde o traço lembra muito o clássico Guernica, presente no Reina Sofia. Enfim, o que esperar de uma tarde de sábado num dos museus mais frequentados do mundo. O universo só podia conspirar, num museu abarrotado de gente falando alto e ciscando mais que galinhas em trovoada.
Para concluir, o que mais me espantou na imensa instalação da inflacionada artista Marina Abramovic´ - uma artista que está por meses sentada por horas do dia a fio em sua instalação sem se mover para nada - não foi o conceito de que entreouvi um casal, desses inteligentespracaramba, mas sim o tamanho de seu nariz. Uma coisa impressionante que me faz a cada dia implicar mais e mais não com pessoas de narinas grandes, mas com essa idéia de arte-instalação - a arte dos pulhas.
Já com comichão nas pálpebras cansadas, demos uma parada na Pasticceria Bruno perto do Village, numa padaria bonita, dessas de gente bacana, que vende tudo quanto é doce colorido - e que tem aquela gente que dá aquelas risadinha elegantes e faz pose enquanto o café esfria - mas que no fim das contas, não vende pão na chapa.
Música do dia. Feeling Good - Nina Simone, again.
ó pá, Camões puraqui!
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía.
ó pá, aqui quem fala é o homem do ríd espíquer,
sou de além-mar e queria dizer que esta voz com este
sotaque luso não é do Camões e muito menos do
Chico!
José Mindlin
Nunca tive a oportunidade de conhecer a José Mindlin, apesar de conhecer bem dois de seus amigos e uma meia dúzia de seus conhecidos - que já visitaram, ou pesquisaram em sua biblioteca. Sem dúvida, José Mindlin foi um cidadão brasileiro raro. Pelo que meus amigos, chefes e ex-chefes contam, o homem era uma espécie rara de brasileiro que combinava traços dimetrais facilmente discerníveis da natureza dos homens de sua classe social e de sua naturalidade. Foi uma espécie de self-made man, dono da Metal Leve, fato que por si só não empolgaria em nada nossos critérios indolentes de julgamento, pois destes exitem aos montes. Mas se destacava no mundo da cultura não apenas se tratar de um homem lido e discretíssimo, mas por seu extraordinário espírito filantrópico - este sim, raríssimo em seu meio empresarial brasileiro. Pelos idos de 2001, tive a felicidade de ser contemplado por uma bolsa da Fundação Vitae para fazer uma pesquisa. Devo à Vitae e indiretamente a Mindlin por isso. Certamente, visitarei sua biblioteca e sentarei, nem que seja por uma tarde, para ler ao menos algum trecho do Varnhagen.
The White Ribbon - A Fita Branca
Minha implicância com Haneke terminou ontem, domingo de carnaval, mais ou menos pelas sete da noite, pois The White Ribbon é uma contribuição crítica importante para o cinema. Cumpre ainda acrescentar que este é um ótimo filme sobre gente da roça. Não se enganem, é um filme surpeendentemente linear onde o narrador, um professor de escola primária numa fictícia vila de Eichwald, narra, em suas memórias distantes, fatos ocorridos entre julho de 1913 e agosto de 1914, quando uma cadeia de acontecimentos violentos sacode a rotina de um povoado pacífico de forma aparentemente incompreensível. Aparentemente incompreensível e misteriosa até mesmo para o narrador, que adverte o público desde o começo que desconhecimento das razões e causas exatas daqueles eventos permenecerão envoltas por uma cortina de fumaça para sempre.
A vila é regida por um barão e um pastor, que determinam os destinos do universo público e privado de praticamente todos na cidade. O puritanismo protestante é uma máxima em seus mais precisos detalhes. O médico trata da vila com dedicação. E as crianças vivem nesse universo lúdico...
Mas isso é apenas a superfície. Por ordem de bizarrices que acontecem na tentativa de mostrar o obscurantismo das formas e da vida rural, Haneke retrata o Barão que rege a vila, composta basicamente por forasteiros, com metaforicamente uma mão invisível porém pesada como o ferro. Para auxiliá-lo há a figura espiritual do pastor, um homem austero, que é responsável pela confirmação religiosa da rapazeada púbere da vila. Para preservar a pureza dessas moças e moços, é amarrada uma fita branca em seus braços como exemplo de sua diafaneidade. Quando o filho do pastor, por exemplo, revela ao pai que realiza sobre trabalhos manuais, diríamos, onanísticos, o pai não apenas passa-lhe não um sermão sobre olhos que caem, pulmões que se infiltram de líquido e almas que padecem de castigos eternos, como o humilha verbalmente levando-o às lágrimas por sua fraqueza moral e o castiga de maneira brutal surrando-o e amarrando-lhe as mãos todas as noites antes de dormir. Isso tudo, apenas na casa do pastor. Vejamos o médico: homem bom, viúvo, pai de dois filhos que trata as crianças da vila com amor e carinho, e que tem a ajuda de uma mulher que cuida das crianças e eventualmente trata de algum resfolego mais urgente do doutor. Essa também é apenas a superfície. Nos recônditos, o pai trata a empregada de maneira imprópria, sempre que pode humilhando-a, violentando-a fisica e verbalmente; abusa sexualmente da filha e tem uma relação ditanciada e fria com o filho menor.
A série de acontecimentos misterioso iniciam-se com um acidente. Um fio é amarrado entre duas árvores e o médico e sua montaria são gravemente feridos. Segue-se: nas festividades anuais, enquanto o bom barão abre a celebração regada a àlcool e comida, alguém vai até a plantação de repolhos do barão e a destrói, bem como rapta o seu filho e o espanca até a exaustão. Em virtude de tais acontecimentos, a babá do menino, Eva, é despedida por negligência. Sem ter a quem recorrer, parte para na casa do professor que a leva no dia seguinte à sua casa.
Nesse meio tempo, em meio a estupros, violações de menores, incestos, violência sobre os fracos e o rigorismo autoritário da moral protestante, há outras cenas mais chocantes. Sim. O filme está apenas no meio!
Uma outra série de eventos não necessariamente conectados ocorre. O estábulo do barão é incendiado criminalmente. O filho excepcional da empregada da casa do médico é violentado, amarrado a uma àrvore no bosque e tem seus olhos vazados. A empregada, desesperada, pede a bicicleta do professor emprestada pois afirma ter provas sobre a autoria da barbaridade com seu filho. A esta altura o professor já está totalmente envolvido emocionalmente com Eva – para a casa da qual se dirigia no momento de ser interpelado. Aos poucos o jovem vai ligando alguns fatos e levanta suspeitas sobre os filhos do pastor como os responsáveis pelo enfraquecimento espiritual da vila, ou seja, desconfia que os adolescentes estariam por trás da violação da criança. O pastor sabe que as acusações do professor podem ter um fundo de verdade, pois sua filha deixa seu pássaro de estimação morto com uma tesoura cravada no meio de sua escrivaninha. Entretanto, simula-se insultadíssimo, e adverte o professor que se ousasse uma vez mais acusar a algum de seus filhos seria obrigado a tomar medidas extremas que visassem seu afastamento – no caso o professor e narrador da estória, que jamais retornaria a Eichwald por questões não necessariamente relacionadas à suas acusações. E este grande filme termina no mesmo tempo do assassinato do arqueduque Francisco Ferdinando, conectando, com alguma pretensão do cineasta, um fato histórico com elementos ficcionais que poderiam guardar as chaves de explicações históricas sobre o porvir.
O filme em si é muito bem editado. Os cortes são tão cirurgicamente precisos que sustentam até o fim o enredo de indagações sem respostas. Haneke foi muito elegante ao deixar de fora as imagens violentas e apelativas. O cara evoluiu – esqueça o Sétimo Continente, filme realmente lamentável em sua carreira bem como o pretencioso The Piano Teacher - desde 71 Fragments of a Chronology of Chance. Entretanto, em seu Crepúsculo dos Deuses pessoal (ou em sua mistura de crônica material de Ovo da Serpente com o universo histórico de O Jovem Torless) Haneke propõe alguns pontos controversos e até mesmo pretenciosos. Haneke desfaz a velha dicotomia entre um provincialismo viciado no rigor moral protestante cercado de pessoas mesquinhas, hipócritas e medíocres, com um universalismo de propósitos interpretativos um tanto deficiente do ponto de vista histórico. A opção é intencional pois este é um filme não apenas para críticos e cinéfilos, mas alimentando-se das mais variadas correntes de pensamento, procura um público amplo e compreensivo. Algumas vezes a concentração nessas miudezas formais, e outros bizantismos de abrandamento do fosso que separa o campo e a cidade, inverte a ordem interpretativa corrente e talvez de difícil contestação de que a Banalidade do Mal, esta mesma que condescede com o sofrimento, a tortura e a própria prática do mal é um fenômeno anterior ao Fenômeno de Massas. Haneke evoluiu, mas eu ainda tenho sérias dúvidas sobre suas teses costuradas com os fios do maniqueísmo pelas beiras. Afinal, preciso muito mais do que imagens e um enredo bem amarrado para ser convencido de duas coisas. Primeiro, que o Mal é executado por pessoas normais. Segundo, que há uma distância imensa entre o Anschluss, o Nacional Socialismo e as práticas de manipulação política dos fenômenos de Massas.
Poema do dia:
A Cana-de-Açúcar Menina
A cana-de-açúcar, tão pura,
se recusa, viva, a estar nua:
desde cedo, saias folhudas
milvestem-lhe a perna andaluza.
E tão andaluza em si mesma
que cresce promíscua e honesta;
cresce em noviça, sem carinhos,
sem flores, cantos, passarinhos.
Escola de Facas. João Cabral de Melo Neto
Snowmageddon
Num dia assim. Como diria Lênin, Que fazer? Logicamente, assistir Tristan und Isolde: umas quatro horas garantidas...e olha que eu só assiti até o fim do segundo ato, quando Melot, melhor amigo de Tristão, lhe desfere - presumo que por questões paralelas - umas espadadas mortais no bucho quando o vê abraçado a Isolda . [amanhã: terceiro ato]
A traveler, by the faithful hond,
Half-buried in the snow was found.
H. G. Longfellow
O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada
Corria o ano de 1911. Vejam vocês: — 1911! O bigode do kaiser estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: — é impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos: — grande época! grande época! Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto unilateral de Mata-Hari, que nasceu o Flamengo. * Em tempo retifico: — nasceu a seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradição náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense Discute daqui, dali, e é possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: — cindiu-se o Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol. Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a torcida tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: — quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: — a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax e baços adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a ferocidade dos velhos tempos. Mas raciocinemos: — em 1911, ninguém bebia um copo d’água sem paixão. Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: — não se trata de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubronegro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um césar apunhalado. Também é de 911, da mentalidade anterior à Primeira Grande Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: — quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
[FLAMENGO SESSENTÃO Manchete Esportiva, 26/11/1955 .Nelson Rodrigues. A Sombra das Chuteiras Imortais]
[FLAMENGO SESSENTÃO Manchete Esportiva, 26/11/1955 .Nelson Rodrigues. A Sombra das Chuteiras Imortais]
O rio que passou...
O poeta Moacyr Luz lançou um livro fundamental. Não chega ao Nobel, mas é um desses livros tal como Minutos de Sabedoria. Abre numa página por dia, e apenas deixe-se tocar pela Luz.
Certa vez, numa entrevista, o jornalista faz uma pergunta filosófica ao ilustrador deste livro: Onde queres ser enterrado? Ele prontamente vira-se e responde. Quero ser cremado e que minhas cinzas sejam espalhadas por todos os bares que passei. Um infeliz diz lá de trás: vai faltar cinza! O entrevistado prontamente responde, completa com a de um cavalo velho.
Dica do grande Bruno Bastos.
Certa vez, numa entrevista, o jornalista faz uma pergunta filosófica ao ilustrador deste livro: Onde queres ser enterrado? Ele prontamente vira-se e responde. Quero ser cremado e que minhas cinzas sejam espalhadas por todos os bares que passei. Um infeliz diz lá de trás: vai faltar cinza! O entrevistado prontamente responde, completa com a de um cavalo velho.
Dica do grande Bruno Bastos.
Cherry Blossoms
A diretora Doris Dörrie aprendeu bem com o realismo italiano. Filme com criança, cachorro e velho sempre comove. Prova disso é que tudo junto e bem feito vira um clássico como Umberto D.. Cherry Blossom é um filme absolutamente comovente pois trata essencialmente da estória de amor entre Trudi e Rudi, ambos interpretados pelos impressionantes atores Hannelore Elsner e Elma Wepper. Melhor dizendo, o filme conta a estória de duas pessoas que dividem uma cama em comum por toda uma vida conhecendo-se apenas parcialmente. Pensamo que o filme começa quando Trudi descobre que seu marido, Rudi, sofre tem uma doença terminal. Ela decide não contar nada ao marido e fazer com que aquele homem metódico que pega diariamente o trem das 7:28 da manhã a estação de Weilheim para o trabalho, torne-se menos rígido e mais aberto aos ensinamentos que a vida possa lhe proporcionar. Rudi é duro. A princípio se recusa visitar os filhos. Preferia esperar mais um ano até se aposentar. No fundo, sabe que com o passar dos anos já não tem mais espaço na vida dos filhos: um deles, o mais novo Karl, vive em Tóquio, e os outros dois vivem em Berlim. O mais velho é casado e com dois filhos viciados em joguinhos eletrônicos. A do meio, Karolin é homosexual e cheia de estigmas apaziguados por sua companheira, a adorável Franzi . As suspeitas de Rudi sobre o descaso dos filhos se confirmam quando chega a casa dos filhos. Os velhos, nem tão velhos assim, se tornam um estorvo. Trudi tenta apaziguar o ambiente que nem chega a ser hostil. É pior. É apenas indiferente de ambas as partes. Assim o filme caminha por mais de 40 minutos. Pensei: Bomba. Tempo perdido.
Insisti. Ainda na casa dos filhos, Trudi tenta convencer o marido para que visitem o monte Fuji. Pede alto , mas apenas convence Rudi e ela que visitem o Báltico, lugar que nunca conheceram. Num desses dias, acontece algo inesperado que passa ser o ponto central da estoria. Com os filhos sem tempo nem paciência para os pais, Frenzi decide levar Trudi a uma apresentação de Butô - uma espécie de sonho e pequeno segredo que guarda em si. Rudi, duro, fica fora esperando e talvez pensando que aquela porcaria poderia terminar logo para irem ver a cidade. Trudi consegue ao menos ver uma performance de teatro Butô, que ela adora e Rudi não suporta. Dentro, Trudi e Frenzi se emocionam juntas com a apresentação. Na segunda viagem que ele aceita fazer com a mulher, ir a um hotel beira-mar no Báltico, acontece algo inseperado. Numa noite, após um sonho com uma dançarina mascarada de Butô, no hotel à beira do Báltico, Trudi morre. E neste momento o filme comeca.
A morte de Trudi torna Rudi um homem devastado pela perda e também por algo a meio caminho da culpa pela desatenção e pela solidão da viuvez. Ainda meio desorientado, chega a Tóquio para passar uns tempos com o filho. A vida num país onde não entende a língua e menos ainda os códigos, é difícil. Aliado a isso, o filho que trabalha muitas horas por dia, não tem tempo para o pai, que vive confinado num apartamento mínimo. Para não submergir no tédio e passar o tempo da melhor maneira possível, cozinha, limpa a casa, tenta fazer a vida do filho mais fácil, sem encontrar muita receptividade ou reciprocidade do rapaz. Rudi pouco pouco passa a deambular pela cidade como Ariadne, amarrando uns lenços em lugares estratégicos para saber o caminho de volta. Um momento emocionante é quando passa a usar as roupas da mulher na tentativa de mostrar-lhe o lugar onde sempre teve vontade de estar mas não pôde. Quando encontra Yu, uma artista de rua que executa Butô num parque cercado por cerejeiras, o homem seco e metódico se torna uma pessoa diferente que percebe aos poucos o quão estúpido foi por sua insensibilidade. Yu e Rudi mal conseguem se entender flaando um inglês pralá de sofrível. Mas o essencial sim, que é viuvo e que sente falta de sua mulher. Yu passa muitas horas do dia com Rudi. Leva-o para conhecer Tóquio, vê as fotos de Trudi caracterizada em Butô, almoçam juntos, passeiam e, religiosamente, no fim do dia ela o deixa na estação de trens para voltar para casa. Num desses retornos, Rudi decide não ir para casa e seguir Yu até sua casa, descobrindo que ela é uma espécie de mendiga, sem casa ou paradeiro.
Rudi dorme do lado de fora de sua barraca de camping, e é nesse dia então que decide acompanhá-lo a uma viagem ao Monte Fuji, o maior do Japão. Trudi revelara a Rudi, uma vez, que muito queria visitar a montanha. Yu decide acompanhá-lo. Instalados num hotel barato, ficaram vários dias esperando até que o Fuji ficasse visível por trás da névoa que o cobria. Numa noite de lua cheia, finalmente, o desejo de Trudi se concretiza. No meio da noite, Rudi se maquia, veste as roupas de Butô da mulher, sai do quarto que Yu e ele dividiam e vai até a beira do lago Kawaguchi. Encena passos alguns passos de Butô, cai e morre.
A grande, grande, grande sacada, dentre as muitas sacadas deste filme é o contraponto entre o encontro de Rudi com Yu sob um parque de cerejeiras, que somente floram por uma ou duas semanas no início da primavera, e o fim de tudo em frente ao monte Fuji: A esperança que sente ao encontrar Yu sob um jardim de cerejeiras, justamente as flores chamadas como “símbolos da impermanência,” e a morte frente a permanencia rochosa e monumental da montanha. Cidadãoquevaiescrevertese, pensa bem se não é isso?
O filme podia ter acabado ai, deixando esse tom sentimental no ar. Mas Doris Dörrie que aprendeu bem com o realismo italiano, deu um drible de classe no espectador emotivo acostumado com o neorealismo italiano. Corta e continua em Weilheim. Ultima cena. Após o enterro, os filhos se reunem ao redor de uma mesa e comentam o segredo que deveriam manter: a vergonha de ter um pai morto, num quarto de hotel do Japão, com uma jovem de 21 anos, e vestido de mulher. Pensando bem, um final ótimo. Essa Doris Dörrie é pessoa que causa constrangimento no meio cinematográfico, pois pensa bem, se a Sofia Coppola gastou 4 milhões de dólares para fazer uma bomba de filme sobre o Japão chamado Lost in Translation, e essa moça faz um filme ótimo - com atores conhecidos apenas na Bavária, cheios de contrapontos entre sensibilidade e imagens cruas - , quem no final das contas tem razão sobre essa ilusão que é o cinema?
Música do dia: Blue Alert. Madeleine Peyroux
http://www.youtube.com/watch?v=QMJMsIaRYDQ
(Este filme deve estar em cartaz longe se sua casa, num cineclube semi-falido e frequentado por gente do tipo inteligentepracarambacomóculosdearmaçãolaranja, portanto pare de ler agora, já que a título gracioso enchi o resumo de spoilers)
Insisti. Ainda na casa dos filhos, Trudi tenta convencer o marido para que visitem o monte Fuji. Pede alto , mas apenas convence Rudi e ela que visitem o Báltico, lugar que nunca conheceram. Num desses dias, acontece algo inesperado que passa ser o ponto central da estoria. Com os filhos sem tempo nem paciência para os pais, Frenzi decide levar Trudi a uma apresentação de Butô - uma espécie de sonho e pequeno segredo que guarda em si. Rudi, duro, fica fora esperando e talvez pensando que aquela porcaria poderia terminar logo para irem ver a cidade. Trudi consegue ao menos ver uma performance de teatro Butô, que ela adora e Rudi não suporta. Dentro, Trudi e Frenzi se emocionam juntas com a apresentação. Na segunda viagem que ele aceita fazer com a mulher, ir a um hotel beira-mar no Báltico, acontece algo inseperado. Numa noite, após um sonho com uma dançarina mascarada de Butô, no hotel à beira do Báltico, Trudi morre. E neste momento o filme comeca.
Rudi dorme do lado de fora de sua barraca de camping, e é nesse dia então que decide acompanhá-lo a uma viagem ao Monte Fuji, o maior do Japão. Trudi revelara a Rudi, uma vez, que muito queria visitar a montanha. Yu decide acompanhá-lo. Instalados num hotel barato, ficaram vários dias esperando até que o Fuji ficasse visível por trás da névoa que o cobria. Numa noite de lua cheia, finalmente, o desejo de Trudi se concretiza. No meio da noite, Rudi se maquia, veste as roupas de Butô da mulher, sai do quarto que Yu e ele dividiam e vai até a beira do lago Kawaguchi. Encena passos alguns passos de Butô, cai e morre.
A grande, grande, grande sacada, dentre as muitas sacadas deste filme é o contraponto entre o encontro de Rudi com Yu sob um parque de cerejeiras, que somente floram por uma ou duas semanas no início da primavera, e o fim de tudo em frente ao monte Fuji: A esperança que sente ao encontrar Yu sob um jardim de cerejeiras, justamente as flores chamadas como “símbolos da impermanência,” e a morte frente a permanencia rochosa e monumental da montanha. Cidadãoquevaiescrevertese, pensa bem se não é isso?
O filme podia ter acabado ai, deixando esse tom sentimental no ar. Mas Doris Dörrie que aprendeu bem com o realismo italiano, deu um drible de classe no espectador emotivo acostumado com o neorealismo italiano. Corta e continua em Weilheim. Ultima cena. Após o enterro, os filhos se reunem ao redor de uma mesa e comentam o segredo que deveriam manter: a vergonha de ter um pai morto, num quarto de hotel do Japão, com uma jovem de 21 anos, e vestido de mulher. Pensando bem, um final ótimo. Essa Doris Dörrie é pessoa que causa constrangimento no meio cinematográfico, pois pensa bem, se a Sofia Coppola gastou 4 milhões de dólares para fazer uma bomba de filme sobre o Japão chamado Lost in Translation, e essa moça faz um filme ótimo - com atores conhecidos apenas na Bavária, cheios de contrapontos entre sensibilidade e imagens cruas - , quem no final das contas tem razão sobre essa ilusão que é o cinema?
Música do dia: Blue Alert. Madeleine Peyroux
http://www.youtube.com/watch?v=QMJMsIaRYDQ
The Squid and the Whale
Tanto se fala do filme que envolve Lula, acabei assitindo um bom filme chamado The Squid and the Whale. Em meados de 1980, Bernard, professor universitário e supostamente um escritor brilhante, é casado com Joan. O casal tem dois filhos Walt, um adolescente, e Frank, recém chegado na puberdade. É uma típica família de classe média urbana americana. Os pais eloquentes, dialógicos, lidos... e os filhos com os mesmos problemas de todos os filhos adolescentes. Ou seja, tudo vai mais ou menos bem, tudo é mais ou menos sublimado, até que Joan decide se separar de Frank.
Recapitulando, vai mais ou menos bem, tudo é mais ou menos sublimado, até que Joan decide se tornar escritora e passa a adquirir relativo sucesso, enquanto Bernard amarga o posto de Creative Writting Professor num College. Bernard não suporta o sucesso da mulher e para acabar de entornar o caldo, Joan passa a sair com vários vizinhos e amigos – sem obviamente Bernard saber.
O roteiro é excelente. A composição que dá voz a cada um dos personagens. Sendo assim, a princípio, o filho mais velho é quem mais ou menos quem encarna as desilusões de todos com o Bernard. A princípio, Bernard era o modelo de pai para o filho, intelectual, snob, racional e ponderado. Na briga dos pais é Walt quem fica do lado do pai, enquanto para Frank Bernard ainda é a imagem de Creonte. Gradualmente, com a convivência, este vai se dando conta que o pai é uma pessoa mesquinha, ciumenta e egosísta. A descoberta é dolorosa para o rapaz e acontece de maneira inusitada. Para o pequeno Frank as coisas tampouco são boas. O menino começa a beber e a presenciar cenas da mãe com o namorado, seu professor de tênis.
Walt compõe músicas e toca violão. A canção que ele compõe para sua apresentação na escola , descobre-se depois, que é Roger Waters. Plágio e puritanismo não combinam mesmo em Manhattan. A farsa é descoberta e a orientadora educacional o encaminha a um terapista, achando que o rapaz anda mal da cabeça. Nesse meio tempo o pai, acaba se envolvendo com uma de suas estudantes, pela qual Walt também tem uma queda – chegando a deixar a namoradinha na esperança de que a namorada do pai lhe desse uma chance. Na frente do analista, Walt não está muito a fim de falar. O analista insiste. Walt conta uma estória sem pé nem cabeça sobre uma visita com sua mãe ao Museu de História Natural, quando ele tinha seis anos. No Museu havia uma enorme baleia devorando uma lula gigante. Contando a estória Walt se dá conta de que era a mãe que sempre estava com ele e consequententemente se dá conta de algo mais problemático que era a eterna ausência de um pai que ao sempre racionalizar cada passo de sua família acabou criando filhos sem muita conexão com o mundo. Se dá conta da ausência paterna em momentos fundamentais de sua vida. O analista não entende nada da estória, e só Walt e cada espectador do filme se dão conta do ápice da estória. A partir deste momento, Walt passa a encarar o pai com outros olhos e tudo piora quando pega Bernard forçando uma barra com a aluninha. Enfim, um filme bom com uma estória e roteiro bem amarrados. Eh filme que vale a pena ser assistido, pois fala de separação, ciúmes, filhos, guarda de filhos, recomeços e todas as mesquinharias que afloram na separação, mas sem as velhas conclusões pré-fabricadas. Pois no fundo, a grande sacada deste drama-comédia se centra na idéia de que mesmo que Bernad e Joan tenham se separado, não significa que nada deu certo Joan, Bernard,Walt e Frank.
Aliás, hoje é dia de Fellini de quem falo pouco, pois do sagrado é melhor mantê-lo. Se vivo, faria 90 anos.
Música do dia. La Strada. Nino Rota
Hedda Gabler
Hedda Gabler é mais uma das geniais peças de Ibsen que retrata a vida doméstica ao redor de famílias com mais esqueletos a esconder que closets a comportá-los. Hedda, a protagonista, é gente fina, moça de família boa, filha de um general aristocrata. Tudo bem, reconheço, a moça, casada com Jorgen Tesman, tem a cabeça meio fraca e fica claro desde o início que ela não o ama, continuando casada apenas por algum motivo relacionado a uma gravidez – ou por um compromisso moral decorrente de uma gravidez perdida, algo assim. Há uma diferença bastante sutil entre a peça escrita e a versão televisiva que assiti com Ingrid Bergman no papel de Hedda. A versão de 1963 que assisti sofreu algumas modificações pois Ingrid Bergman, ainda que exuberante, já estava com quase cinquenta (trema ou não) anos. Assim, a versão original de Hedda e Jorgen recém casados sofreu alterações significativas.
Tesman é um acadêmico que apesar de frágil e submisso, mantém boas relações em seu meio acadêmico. Isso abre as portas mas não o resgata de sua mediocridade e falta de talento. Ambiciona um passo adiante ao enquadramento da escrita monográfica, mas o que consegue é apenas o favorecimento pessoal no seu meio viciado e corporativo graças a sua boa relação com o juiz Brack, velho amigo da família. Casada com um banana, Hedda Gabler vive num vazio sem fim até que o retorno de Ejlert Lovborg a Oslo, traz esperanças a sua vida e um certo tormento para a vida do casal. As recentes publicações de Lovborg trazem-lhe sucesso e prestígio. Parte deste sucesso se deve a Thea Elvsted, amiga dos tempos de escola de Hedda. Thea havia deixado seu marido para viver com Lovborg e o estigma de divorciada a tornava mais obstinada na procura pela perfeição de seu amante, por isso além de ser sua mais competente e crítica revisora, é a mulher que maternalmente mantém Ejlert na linha. O retorno de Ejlert Lovborg traz um duplo tormento ao casal pois por um lado, tudo sugere que Ejlert e Hedda haviam sido amantes - peça sugere que isso ocorrera após o casamento de Hedda com Jorgen -, e por outro, Ejlert com suas publicações passa a ser um competidor natural de Jorgen pela vaga de professor universitário, que já contava como garantida até a chegada daquele. Hedda, como já dito, é fraca das idéias, inconstante, irascível, mas não é tola. Está ciente de que caso o marido não consiga a vaga, não poderá manter a vida confortável e estável que o marido proporciona. Conhecendo a queda de Ejlert pela birita e ciumenta da relação deste com Thea, convida-os para a um “chá”. Papo vai papo vem, estão presentes Thea, Jorgen, e o juiz Brack.Thea exalta as qualidades dos manuscritos e os chama a produção intelectual conjunta, como a concepção de um filho. Pintando um clima entre Ejlert e Hedda, esta enciumada da influência de Thea na produção de Ejlert, provoca-o a provar seu amor e relembrar o passado tomando uma dose, dessas que não fariam mal a ninguém caso não fosse Lovborg um ex-alcoólatra. Hedda ainda exerce ascendência sobre Ejlert Lovborg e sabe que na mesma noite ele iria apresentar seu manuscrito numa reunião com os amigos. Conclusão: Ejlert Lovborg perde o prumo, enfia o pé na jaca, enche a cara, perde o manuscrito no meio da sala e fecha a noite indo parar no bordel da cidade. Ibsen é dramaturgo que não se contenta com a ruína moral e psicológica de seus personagens, pois caso fosse, daria-se por satisfeitíssimo em expor a degradação moral de Ejlert na frente do juiz Brack – peso importante na decisão da vaga universtária. Mas, Ibsen opta pela tormenta. Ejlert Lovborg, aparece no dia seguinte na casa dos Tesman derrotado e resignado. Ainda numa àgua de dar dó, pensa que perdera os manuscritos, sem saber que Jorgen Tesman os encontrara e os mostrara a Hedda. Esta por sua vez mantém o segredo e em vez de os devolvê-los a Ejlert, não apenas entrega-lhe uma das armas herdadas pela família, como reenforça a falta de sentido que seria viver naquele universo de derrota, sem a vaga universitária, sem a publicação que transformaria sua vida , e sem o amor de sua vida, no caso, ela mesma Hedda Gabler. Ele parte. Ela queima os manuscritos.
O final… Assita a peça.
Recentemente, Karl Erik Schollhammer da PUC do Rio de Janeiro, organizou um livro interessante sobre o impacto da obra de Ibsen no Brasil. Alguns artigos mostram o peso e o impacto das primeiras montagens de Hedda Gabler no Brasil retratando a protagonista ora como uma Minerva vingativa, ora como uma das primeiras protagonistas representantes do feminismo. Na primeira montagem brasileira de 1907, Eleonora Duse encara o papel de Hedda no Teatro Lírico na rua da Guarda Velha - atual Avenida 13 de Maio. Havia uma série de fatores que faziam de Ibsen persona non grata no ambiente intelequituau do Rio de Janeiro. No fundo o que fica claro é que podiam vir as atrizes italianas que fossem, encenar os clássicos que fossem, o público carioca gostava mesmo é da opereta que adaptava Rigolettos e Mme. Butterflies para a solução fácil da vida cotidiana. Montadores e diretores modificavam as cenas que ferissem os costumes. Críticos queriam peças com princípio meio e fim e de preferência que criasse estereótipos de fácil assimilação. Uma dessas críticas ferozes à obra de Ibsen vinha de outro dramaturgo, Artur Azevedo. Para Azevedo, a abundância de diálogos, no final, por exemplo, de Casa de Bonecas – montada em 1899, no Rio de Janeiro -, criava dificuldade de assimilação para o público. Evidentemente, que o criador de personagens memoráveis como o fazendeiro mineiro Eusébio, pai da moça enganada que sai do mundo ingênuo rural para o imoral e corrompido mundo urbano do Rio de Janeiro ( e de outros personagens que atendiam pelo nome de “o proprietário,” “o gerente,” Lola, a família do interior de Minas que chega a A Capital Federal a procura do rapaz que prometera casamento à filha...), é ainda hoje é lembrado e encenado pela profundidade de sua obra. Enquanto esse tal de Ibsen deve amargar algum panteão de literatos imortais lá naquele cafundó do Judas que é aquela Noruega, terra de exportadores de bacalhau e maus dramaturgos. Em seu brilhantismo crítico, um outro crítico, o republicano histórico Alfredo Pujol, põe os pingos nos is! Hedda Gabler não passa de uma desequilibrada [sic], uma delinquente capaz de desestruturar lares [sic]. Os personagens e Ibsen são degenerados mentais [sic], histéricos [sic], dementes senis [sic], e essas tristes enfermidades da vida conteporânea, mais cedo ou mais tarde comprometeriam o público [sic]...
Tudo bem, eram tempos de Spencer, Sarcey, do Naturalismo e até de um certamente condenável mas presente eugenismo nas formas de ver o mundo, mas tanta confiança no próprio valor nacional e na infalibilidade das regras importadas de um Taine e de um Comte, fez com que os críticos expusessem seu exagerado cheiro de mofo.
A Doce Vida em Paris
A edição anterior da The New York Review of Books traz um artigo ótimo sobre o o ambiente cultural durante o regime de Vichy na França. Ian Buruma escreve um artigo sobre estes anos de ocupação alemã, afirmando que ao menos para uma fatia da classe média culta e privilegiada a opressão nazista era algo tão distante, que poderia-se quase dizer que nem sequer fosse sentida. Os cafés de Paris continuavam cheios, as pessoas continuavam impecavelmente bem vestidas, muitos artistas mantinham uma vida cotidiana normal, e até os bordéis de luxo continuavam operando de maneira satisfatória para a nova clientela alemã que circulava pela cidade em seus uniformes engomados.
A análise de Buruma não representa nenhuma novidade conceitual, Robert Darton e o próprio Simon Schama já dividiam estes pontos de vista há pelos menos duas décadas. Mas é sempre interessante perceber como o autor, pautado em biografia sólida, vai desconstruindo um mito muito caro aos franceses de que todo o pariense fez parte da resistência. O argumento para sustentar seu ponto de vista é muito sólido e parte de uma premissa bastante irrefutável: a alienação da normalidade.
Por exemplo, nos diários da estudante de literatura da Sorbonne Hélène Berr e de suas cartas trocadas com seu amigo Philippe Julian, havia uma intensa troca de idéias sobre Dostoievski, Balzac, Proust, Valéry, mas não havia quase nenhuma referência à ocupação alemã a não ser quando se falava da comida escassa – fato que, com boas conexões e dinheiro, tudo podia ser resolvido.
Partindo do universo privado para o público, Buruma segue chutando as canelas dos mitos da resitência. Herbert von Karajan era o maestro principal da German State Opera em Paris, as peças de Cocteau foram encenadas durante todo o período, mesmo ele sendo homosexual, bem como as de Sartre – que contavam sempre com a presença da oficialidade alemã. O autor chega a dizer que Camus recebia patricínio de Gerhard Heller, chefe da propaganda alemã mesmo quando todos sabiam que Camus e Sartre escreviam e reviam artigos da resistência. Ou seja, viver em Paris era até bom!
Cocteau, por exemplo, se dizia ‘apolítico’ e beliscava verbas públicas para a motagem de suas peças – mesmo tendo se oposto a prisão de seu amigo Max Jacob, que acabaria morrendo na prisão. Com a mesa postura, o fotógrafo André Zucca clicava e vendia suas fotos livremente para as revistas da moda. Até o bordel de madame Billy, L’Etoile de Kleber, frequentado por Piaf e por razões etnográficas pelo próprio Cocteau, funcionava sem grandes problemas.
Voltando ao ambiente privado, os diário de Hélène Berr, revelam pouco a pouco as sutilezas da técnica imortalizada por Borges, de omitir a palavra e recorrer à suas metáforas e perífrases. Berr era judia. Sua família foi presa e deportada em março de 1944. Paris seria liberada em agosto. Mas Hélène já se encontrava em Auschwitz, sem saber ao certo do destino dos pais, que já estavam mortos. Meses depois, contrai tifo e morre.
Meses antes, ela transcrevera em seu diário um poema comovente de Keats sobre seu medo de sentir suas mãos frias:
This living hand, now warm and capable
Of earnest grasping, would, if it were cold,
And in the icy silence of the tomb,
So haunt thy days and chill thy dreaming nights
That thou would wish thine own heart dry of blood....
Of earnest grasping, would, if it were cold,
And in the icy silence of the tomb,
So haunt thy days and chill thy dreaming nights
That thou would wish thine own heart dry of blood....
Naquele momento, ainda tinha esperança de encontrar seu namorado, o estudante de filosofia, Jean Morawiecki, que partira para a Africa a fim de unir-se à resistência.
Nos diários de seu amigo Philippe Julian, encontra-se as emoções extremas que o impacto da notíca de sua morte causou. Buruma, o autor, refuta o argumento da alienação de Hélène Berr. Para ele, ela tinha a plena consciência da precariedade de sua liberdade, mas por ingenuidade ou licença poética, preferia se manter positiva em relação à vida.
Este é um daqueles artigos bem escritos, que incomodam a memória quando se pensa que na anormalidade tudo é normal, e pior ainda, que na normalidade tudo está na mais perfeita ordem...
Genial
Alexander Nevsky
Eisenstein foi um grande diretor. Produziu uns quatro ótimos filmes até 1927 (nominadamente A Greve, Outubro: os dez dias que abalaram o mundo; incluo o Que viva México e o inigualável O Encouraçado Potemkin), nesse meio tempo foi para Hollywood onde conheceu Chaplin e tentou fazer alguns filmes com os suínos capitalistas bebedores de coca-cola. Mas sua carreira não decolou por motivos que intuo estarem relacionados com a mitologia em torno a seu nome.
Depois dessa fase, Eisenstein virou um daqueles diretores com o que eu chamo de Complexo de Norma Desmond. Ou seja, funciona sem audio. Prova disso é o seu Alexandre Nevsky, que revi há poucos dias para refrescar a memória. Revi, por que há dias atrás me caiu nas mãos uma transcrição de um dos discursos do nosso Guia Genial dos Povos, de novembro de 1941. Meses antes, em junho, a Alemanha, no contexto da Operação Barbaroxa, atacara a União Soviética, anexando parte do territorio polones, na esfera de influência russa desde 1939. A Alemanha supostamente era signatária do pacto Pacto Molotov-Ribbentrop de não-agresssão, mas o rompeu corda dando o primeiro passo para a derrota.
Depois dessa fase, Eisenstein virou um daqueles diretores com o que eu chamo de Complexo de Norma Desmond. Ou seja, funciona sem audio. Prova disso é o seu Alexandre Nevsky, que revi há poucos dias para refrescar a memória. Revi, por que há dias atrás me caiu nas mãos uma transcrição de um dos discursos do nosso Guia Genial dos Povos, de novembro de 1941. Meses antes, em junho, a Alemanha, no contexto da Operação Barbaroxa, atacara a União Soviética, anexando parte do territorio polones, na esfera de influência russa desde 1939. A Alemanha supostamente era signatária do pacto Pacto Molotov-Ribbentrop de não-agresssão, mas o rompeu corda dando o primeiro passo para a derrota.
No tal discurso, o grande Stalin, Guia Genial dos Povos, falava para o Conselho do Povo na Praça Vermelha. Evocava, neste que seria o 24 aniversário da Revolução de 1917, os tempos mais difíceis, como em 1918, no primeiro aniversário da Revolução, quando ¾ de todos domínios russos estavam nas mãos de intervencionistas; quando tinham perdido a Ucrânia, o Cácaso, a Asia Central, os Urais, a Sibéria, e o este distante; quando nao tinha a Red Squad nem a Red Brigade. Era 14 Estados conta a Russia. [sic]
O estrategista falava: […] Hunger and poverty reign in Germany. In four and half months of war, Germany has lost four and a half million soldiers. Germany is bleeding white; her manpower is giving out. A spirit of revolt is gaining possession not only of the nations of Europe under the German invaders’ yoke, but of Germans themselves, who see no end to the war.
E fechava com a evocação que me fez rever este filme de Eisenstein:
Be worthy of this mission! Let many images of our great ancestors - - Alexander Nevsky, Dimitri Donskoi, Kusma Minin, Dmitri Pzharski, Alexander Suvorov, Mikhail Kutuzov inspire you in this war!
Let the victorious banner of the great Lenin fly over our heads!
Utter destruction to the German invaders!
Death to the German armies of occupation!
[…]
Minha ignorância sobre a história russa é brutal, mas no fim do discurso Stalin evoca o príncipe Alexander Nevsky, um herói russo da alta idade média – lembrei na hora do filme do Eisenstein que assisti na época de faculdade.
Muitos dizem que o filme de Eisenstein era propaganda anti-nazista de Estado. Há algo sim. Alexander Nevsky é o grande líder que atende os anseios da população de Novgorod para que este expulse os Cavaleiros Teotónicos. O maniqueísmo é evidente. O bispo dos Cavaleiros Teotônicos, usava claramente uma suástica. Os cavaleiros Biotônico Fontoura, são barbudos e maus, e em contrapartida os russos são bons e dignos de atitudes grandiosas. Prova disso é que os Teotônicos, comandados por Hermann von Balk, o Grão mestre da Ordem Teotônica, são aprisionados por um Alexander após perderem a batalha sobre as águas geladas do Lago Chudskoe e recebem o beneplácito de Alexander, que liberta os prisioneiros e deixa o povo deliberar sobre o destino do general inimigo. A patuléia, evidentemente, opta pelo linchamento.
O filme pode até ter sido usado como propaganda pelo DIP de Stalin, mas cronologicamente o filme é terminado antes do Pacto Molotov-Ribbentrop. Das duas uma, ou Eisenstein tinha poderes premonitórios, ou tinha informação privilegiada sobre as cláusulas secretas do acordo que envolviam a Polônia.
Em todo o caso, é impressionante como nada empolga nesse filme de culto a personalidade. O roteiro, apesar de bom é ufanista. O audio horrível. As legendas, requerem quase um exercício de intuição metafísica do primata que decide assitir este filme. A edição patética. Nem sequer a música de Sergei Prokofiev empolga. Evidentemente, que eu digo isso por que eu não vivo na Rússia de Stalin. Eu lá sô bobo!
Música do dia: Piano Concerto No. 3 in C major, Op. 26
http://www.youtube.com/watch?v=M47voXICiNg
Música do dia: Piano Concerto No. 3 in C major, Op. 26
http://www.youtube.com/watch?v=M47voXICiNg
Nunca disse que o homem cordial é bonzinho - Sergio Buarque
Como no jogo do bicho, vale o que está escrito. No Haiti, já se fala em 30 mil mortos.
Interessante acompanhar o que está escrito nas manchetes dos jornais e comparar, por exemplo o enfoque que o New York Times dá à tragédia e o que O Globo prioriza.
O NYT fala na devastação do país, na busca de desaparecidos haitianos, nas vítimas haitiana, nos esforços conjuntos para reconstruir serviços básicos do Haiti, como hospitais e até mesmo a torre de navegação do aeroporto de Port-au-Prince...
Interessante acompanhar o que está escrito nas manchetes dos jornais e comparar, por exemplo o enfoque que o New York Times dá à tragédia e o que O Globo prioriza.
O NYT fala na devastação do país, na busca de desaparecidos haitianos, nas vítimas haitiana, nos esforços conjuntos para reconstruir serviços básicos do Haiti, como hospitais e até mesmo a torre de navegação do aeroporto de Port-au-Prince...
... e O Globo, na versão online, também fala do Haiti, mas de outra maneira...(a versão em papel é algo pior)
As vezes a teoria do homem cordial - que de cordial tem quase nada - do Sergio Buarque de Holanda, me causa certa acidez de estômago, e chega a me dar vergonha de ter de explicar a amigos estrangeiros essas coisas que passam quase despercebidas...
Nota. O site da Cruz Vermelha Internacional está aceitando doações.
Telefone 1-800-733-2767.
Revanchismo ou Revisionismo
A atual discussão em torno ao Programa Nacional de Direitos Humanos, que determina a criação até abril de 2010 de uma comissão suprapartidária para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas pela repressão militar de 1964 a 1985, está interessante. O problema é que em 28 de agosto de 1979 o presidente Figueiredo – diga-se tristemente: o terceiro presidente de que tenho memória política – sancionou a Lei da Anistia colocando uma pedra jurídica pesada no assunto.
De uns anos para cá a sociedade civil se mobilizou no sentido de mover essa pedra. O Presidente da República anterior bem que tentou. Criou uma forma de compensação monetária para as vítimas. Como tudo que envolve o tema gera um debate muitas vezes irracional, aceito até que se discuta sobre valores e montantes, jamais sobre os méritos. Jamais sobre os méritos. O desdobramento lógico da questão é a abertura ampla dos arquivos e a investigação da Comissão Nacional da Verdade. Obvio.
Não sei se Darcy Ribeiro estava certo ao dizer que o Brasil é um país aos trancos e barrancos. Mas sei que se estivesse vivo diria que esta Lei de Anistia junto à emenda Dante de Oliveira foi nosso Pacto de Moncloa aos trancos e barrancos, pois em 1979, na ocasião do sancionamento, não houve desmantelamento dos órgãos de repressão, e além disso, muito pior, criou-se logo uma democracia às pressas, rapidinho, pois alguém decidiu que o Brasil não tinha mais tempo de olhar para trás. Como bem disse Daniel Aarão Reis, foi o que foi possível ser acordado.
Posso estar enganado, mas o debate delicado que nos acompanhará até abril, ou até a caída de algum Ministro, se centra em duas correntes. Uma que dá conta de que a Lei de Anistia era uma lei recíproca, ou seja, ‘beneficiava’ – perdoem pelo eufemismo - torturadores e torturados, igualando vítimas e algozes de maneira desonesta. A outra, que a lei não previa explicitamente a anistia dos torturadores já que estes juridicamente não sofreram condenação formal.
No fundo, os historiadores sabem que revanchismo e revisionismo, por seus extremos absolutos, são dois elementos perigosos em se tratando de História. O primeiro, por razões óbvias, cria distorções sérias. O segundo implica numa forma bastante parcial de história que inclui no estudo do campo os vícios e distorções da prática do agency, muito cara à historiografia americana.
Posso estar enganado, mas o debate delicado que nos acompanhará até abril, ou até a caída de algum Ministro, se centra em duas correntes. Uma que dá conta de que a Lei de Anistia era uma lei recíproca, ou seja, ‘beneficiava’ – perdoem pelo eufemismo - torturadores e torturados, igualando vítimas e algozes de maneira desonesta. A outra, que a lei não previa explicitamente a anistia dos torturadores já que estes juridicamente não sofreram condenação formal.
No fundo, os historiadores sabem que revanchismo e revisionismo, por seus extremos absolutos, são dois elementos perigosos em se tratando de História. O primeiro, por razões óbvias, cria distorções sérias. O segundo implica numa forma bastante parcial de história que inclui no estudo do campo os vícios e distorções da prática do agency, muito cara à historiografia americana.
Em todo o caso, uma entrevista elucidativa do Miguel Conde.
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/01/09/historiadores-discutem-revogacao-da-lei-de-anistia-255996.asp
Assinado no último dia 21 de dezembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa Nacional de Direitos Humanos determina a criação até abril de 2010 de uma comissão “plural e suprapartidária (...) para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto de repressão política” de 1964 a 1985. Além disso, ordena também a criação de projetos de lei propondo a “revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações”. Os comandantes militares pressionaram o presidente para rever os dois pontos do Programa, em particular o último, interpretado como uma brecha para uma possível revogação da Lei da Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente Figueiredo. Lula deixou a decisão para depois das férias, mas a discussão chegou às páginas de jornais e divide opiniões, inclusive entre pesquisadores do tema. Dois dos principais estudiosos da ditadura brasileira, os historiadores Daniel Aarão Reis e Carlos Fico têm opiniões divergentes sobre uma possível revisão da Lei de Anistia. Para Reis, a lei já foi revista em vários pontos, e os militares que participaram de políticas de repressão e extermínio devem agora ser processados, principalmente pelo efeito pedagógico que isso teria para a sociedade brasileira. Já Fico diz que iniciativas como a Lei dos Desaparecidos, de 1995, foram uma ampliação e não uma revisão da Lei de Anistia, e que processar os agentes da ditadura seria tentar refazer a História. Ambos defendem, no entanto, a abertura dos arquivos da ditadura (em particular os dos órgãos de inteligência militar) e são favoráveis a outros pontos do Programa Nacional de Direitos Humanos, como a criação de uma Comissão Nacional da Verdade — com a ressalva de que ela deve ter uma orientação pluralista.
Ex-integrante do grupo armado MR-8, como historiador Reis tem trabalhado para desfazer a imagem romântica dos grupos revolucionários de esquerda, sublinhando que seus projetos eram ditatoriais. Apesar disso, ele e Fico concordam que a ditadura poderia ter combatido as ações armadas dentro da lei, e que não o fez porque tinha um plano mais amplo de repressão.
O Brasil deve rever sua Lei de Anistia?
DANIEL AARÃO REIS: Em primeiro lugar, cabe uma avaliação da Lei de Anistia. Há muitos que sustentam que a Lei é recíproca, e há outros para quem a Lei não prevê explicitamente a anistia dos torturadores. Penso que a Anistia, embora não em seus termos jurídicos, politicamente foi uma lei que abrigou tanto os opositores da ditadura quanto os que em nome da ditadura praticaram atos criminosos. Foi o que eu chamaria de um pacto de sociedade que houve em 1979, uma conciliação apoiada pela imensa maioria, ainda que não de maneira satisfatória para muitos. Alguns setores mais radicais, dos quais eu fazia parte, exigiam uma anistia ampla, geral e irrestrita, e também o desmantelamento dos órgãos de repressão, mas esse programa não foi contemplado pela Lei. Desde então colocou-se o problema da revisão da Lei de Anistia.
CARLOS FICO: A Lei de Anistia foi o principal componente da transição brasileira para a democracia. Havia consciência clara entre os parlamentares que a menção aos “crimes conexos” era sim um perdão aos torturadores. Considero que essa menção foi posta ali de maneira dúbia para resguardar não só os torturadores, mas todos os militares, inclusive os generais, que foram responsáveis por uma série de graves irregularidades. O regime militar não teria aceitado de maneira nenhuma a não inclusão desse perdão.
Vocês dois enfatizam a ideia de uma negociação, e de que a Lei foi então o acordo possível naquele momento...
REIS: (Interrompendo) Eu queria fazer uma retificação, Fico. Você usou a palavra perdão. Acho que a palavra mais adequada é esquecimento.
FICO: É, sim.
REIS: Por que você pode esquecer sem perdoar. Nesse sentido, o pacto de sociedade propunha o esquecimento...
FICO: A anistia mesmo. Mas o dado curioso é que você não pode anistiar quem não foi condenado. O curioso nessa história é que a anistia aos torturadores é completamente exótica, porque eles não foram jamais presos ou condenados.
Completando a pergunta: os dois dizem que a Lei foi o acordo possível naquele momento. Nas circunstâncias atuais, ela deve ser revista?
REIS: A partir da aprovação da Lei começou a luta pela revisão da Lei, e ela já foi revista em muitos de seus aspectos. Os presos que já tinham sido julgados não eram contemplados pela Anistia. Então reviu-se a Lei de Segurança Nacional e reduziu-se drasticamente as penas para que todos saíssem, o que já foi uma forma de revisão. Depois em 1988 a Constituição, e finalmente as Leis da Reparação, com o Fernando Henrique Cardoso. A Lei já foi revista aqui, como em outros países da América Latina. O argumento de que isso poderia desestabilizar o país é falso. O importante neste momento é ver até que ponto a revisão da Lei deve incluir uma discussão sobre a adoção da tortura como política de Estado. Aqui eu marco minha diferença com os ministros Paulo Vannuchi e Tarso Genro, que fazem questão de não implicar as Forças Armadas na política de tortura. Eles dizem sempre que foram algumas dezenas de militares que praticaram excessos. Isso é uma distorção da História. O valor da revisão atual está na possibilidade de a sociedade discutir a adoção da tortura como política de Estado no Brasil. Isso abre uma discussão mais geral sobre a história do país. Em 50 anos, esse país teve dois regimes usando tortura como política de Estado. Pouca gente fala que isso aconteceu no Estado Novo. E eu temo que daqui a 30 anos pouca gente esteja falando que a ditadura brasileira fez isso.
FICO: Concordo que não há a menor chance de uma desestabilização do regime. A discussão sobre a Lei de Anistia já está acontecendo. Há no Supremo Tribunal Federal uma ação iniciada pela OAB que mais cedo ou mais tarde será julgada. Há a proposta de interpretar a Lei não contemplando os torturadores. É com essa interpretação que eu não concordo. E acho isso ineficaz do ponto de vista de enfrentarmos a verdade sobre a ditadura. Há muitos caminhos possíveis, eficazes, legítimos, que podem ser trilhados. Nós temos que nos empenhar por exemplo em conseguir que esses comandantes militares sejam enquadrados diante da lei e obrigados a transferir para o Arquivo Nacional os três arquivos que faltam, do CIE, Cenimar e Cisa (siglas dos três centros de informações militares). O Brasil tem o maior acervo documental dos países do Cone Sul em relação à ditadura, mas ainda faltam esses três, que são os essenciais. E nós temos quase certeza que eles existem, por uma série de razões. Esse tipo de questão é muito mais importante.
Mas o projeto não fala exatamente em outra interpretação da Lei de Anistia. Ele cria um grupo de trabalho para discutir com o Congresso Nacional “legislação propondo a revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 contrárias à garantia dos Direitos Humanos”.
FICO: O projeto é ambíguo. Ele propõe a remoção do entulho autoritário, mas lá pelas tantas menciona a possibilidade de propor a discussão de leis que contrariem normas internacionais, que é o principal argumento de quem quer rever a Lei de Anistia, já que a tortura é um crime imprescritível. Ele deixa margem para dúvida.
O senhor fala da Anistia como uma coisa que passou e por isso não deve ser alterada...
FICO: (Interrompendo) Passou não, a Anistia é um processo. Eu aliás diria que houve uma ampliação, e não uma revisão da Anistia.
Mas eu queria enfatizar uma diferença nas argumentações dos dois. O senhor usou a expressão “refazer a História”, dando a ideia de uma coisa que já foi feita e na qual não se deveria mexer. Já o Daniel enfatizou uma permanência, a permanência da tortura como política de Estado no Brasil...
FICO: (Interrompendo) Eu não acho que não se deva mexer, pelo contrário. Acho que o caminho mais adequado são outros. Por exemplo, a abertura dos documentos. Os governos do Fernando Henrique e do Lula foram fundamentais. O Fernando Henrique com a criação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, e o Lula que fez com que o Brasil se tornasse o detentor do mair acervo documental sobre as ditaduras na América Latina. Temos avançado, e um caminho legítimo é o dessa Comissão de Verdade. Especialmente se ficar claro que não se trata de revanchismo. Muitas comissões de verdade se chamaram comissão de verdade e reconciliação.
REIS: Em 1979, a Lei de Anistia foi expressão de um pacto de sociedade. Mas a partir daí se dá uma transição que não tem regras, não tem padrões. Você tem certos países em que essa comissão de Justiça, ou Verdade, é imediata. Caso por exemplo do regime do apartheid na África do Sul. Já a França levou quase 50 anos para começar a admitir que o colaboracionismo com os nazistas tinha sido amplo. Isso foi muito doloroso. Não há um procedimento usual. Os pactos de sociedade evoluem com o tempo. O pacto de 1979 envelheceu. Era compreensível naquele momento, em função do pensamento predominante, mas me parece que hoje a sociedade brasileira é capaz de enfrentar essa questão.
Vocês concordam sobre a importância do acesso aos arquivos, mas discordam quanto a processar os militares. Por que os julgamentos são importantes, na sua opinião?
REIS: Para mim, a questão central é discutir a política como tortura de Estado, fazer a sociedade brasileira pensar nisso. Mas me parece também importante processar os torturadores. Porque eles cometeram crimes contra a Humanidade, e esses crimes são imprescritíveis segundo tratados que o Brasil assinou. Revanchismo é um termo que se aplicaria se alguém quisesse pegar os torturadores e fazer com eles o que eles fizeram com os opositores da ditadura na época. Não conheço ninguém em sã consciência que proponha que eles sejam presos, não sejam julgados. O que se está propondo é esclarecer a situação, dando a eles todo direito de defesa. Mas eles não podem ser comparados aos torturados. Os torturados foram perseguidos, presos, condenados, mortos, exilados, enquanto eles não sofreram nada. É preciso julgá-los. É isso que se quer agora, seria pedagógico para a sociedade brasileira, para que essas coisas não se repitam. A melhor maneira de ser capturado por uma tradição é não compreendê-la.
FICO: Os comandantes militares estão cometendo um erro enorme persistindo nessa atitude acovardada, defensiva, de não reconhecer o erro, ficar retendo documentos. Eles deveriam reconhecer em termos institucionais e históricos esse erro, e se desculpar por ele. Isso seria um passo importante para tornar as Forças Armadas mais dignas diante da sociedade brasileira. O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade em relação a esses crimes de tortura e assassinato, mas as Forças Armadas até hoje não reconheceram.
O GLOBO fez uma pesquisa no site perguntando aos leitores o que eles achavam dessa discussão. A opção mais votada era favorável à revisão, desde que fossem processados também os grupos de esquerda. O que vocês acham disso?
REIS: É fundamental informar a essas pessoas que os grupos de esquerda já foram processados. E muitos militantes, sobretudo os que foram presos, foram torturados e mortos. Reabrir o processo das pessoas que já foram processadas? Se alguém ainda falta ser processado nesse país são os torturadores.
FICO: Muita gente embarca na história contada pelos militares segundo a qual a polícia não tinha condições de enfrentar os grupos armados. Isso é conversa fiada. As pesquisas históricas mostram que o regime tinha toda condição de enfrentar as ações armadas dentro da legalidade. Por que isso não foi feito? Porque essa repressão violentíssima, de tortura e extermínio, não visava apenas as ações armadas urbanas e a Guerrilha do Araguaia, muito menos passeata estudantil. Foi um processo repressivo com uma abrangência muito maior.
REIS: Uma das justificativas das Forças Armadas para fazer a repressão foi que o Brasil vivia uma guerra, uma guerra suja onde não havia leis etc. Mas é evidente que o Brasil não viveu uma guerra. Aquilo fazia parte das expectativas de grupos revolucionários, dos quais eu participei, mas que em nenhum momento alcançaram ressonância social. O governo brasileiro tinha todas as condições de debelar aquele surto revolucionário sem recorrer à tortura como política de Estado. Tivemos no Brasil grupos que tentavam derrubar a ditadura não com ideais democráticos, mas para instaurar uma ditadura revolucionária. É bom que isso volte ao debate. Como também é importante que se diga que os integrantes desses grupos já foram julgados, condenados e torturados.
Nota. Tenho um carissimo amigo que sempre fecha seus emails com uma frase que não me saiu da cabeça hoje, desde que passei os olhos na entrevista: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos" (Simone de Beauvoir).
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