A Doce Vida em Paris



A edição anterior da The New York Review of Books traz um artigo ótimo sobre o o ambiente cultural durante o regime de Vichy na França. Ian Buruma escreve um artigo sobre estes anos de ocupação alemã, afirmando que ao menos para uma fatia da classe média culta e privilegiada a opressão nazista era algo tão distante, que poderia-se quase dizer que nem sequer fosse sentida. Os cafés de Paris continuavam cheios, as pessoas continuavam impecavelmente bem vestidas, muitos artistas mantinham uma vida cotidiana normal, e até os bordéis de luxo continuavam operando de maneira satisfatória para a nova clientela alemã que circulava pela cidade em seus uniformes engomados.



A análise de Buruma não representa  nenhuma novidade conceitual, Robert Darton e o próprio Simon Schama já dividiam estes pontos de vista há pelos menos duas décadas. Mas é sempre interessante perceber como o autor, pautado em biografia sólida, vai desconstruindo um mito muito caro aos franceses de que todo o pariense fez parte da resistência. O argumento para sustentar seu ponto de vista é muito sólido e parte de uma premissa bastante irrefutável: a alienação da normalidade.

Por exemplo, nos diários da estudante de literatura da Sorbonne Hélène Berr e de suas cartas trocadas com seu amigo Philippe Julian, havia uma intensa troca de idéias sobre Dostoievski, Balzac, Proust, Valéry, mas não havia quase nenhuma referência à ocupação alemã a não ser quando se falava da comida escassa – fato que, com boas conexões e dinheiro, tudo podia ser resolvido.



Partindo do universo privado para o público, Buruma segue chutando as canelas dos mitos da resitência. Herbert von Karajan era o maestro principal da German State Opera em Paris, as peças de Cocteau foram encenadas durante todo o período, mesmo ele sendo homosexual, bem como as de Sartre – que contavam sempre com a presença da oficialidade alemã. O autor chega a dizer que Camus recebia patricínio de Gerhard Heller, chefe da propaganda alemã mesmo quando todos sabiam que Camus e Sartre escreviam e reviam artigos da resistência. Ou seja, viver em Paris era até bom!

Cocteau, por exemplo, se dizia ‘apolítico’ e beliscava verbas públicas para a motagem de suas peças – mesmo tendo se oposto a prisão de seu amigo Max Jacob, que acabaria morrendo na prisão. Com a mesa postura, o fotógrafo André Zucca clicava e vendia suas fotos livremente para as revistas da moda. Até o bordel de madame Billy, L’Etoile de Kleber, frequentado por Piaf e por razões etnográficas pelo próprio Cocteau, funcionava sem grandes problemas.



Voltando ao ambiente privado, os diário de Hélène Berr, revelam pouco a pouco as sutilezas da técnica imortalizada por Borges, de omitir a palavra e recorrer à suas metáforas e perífrases. Berr era judia. Sua família foi presa e deportada em março de 1944. Paris seria liberada em agosto. Mas Hélène já se encontrava em Auschwitz, sem saber ao certo do destino dos pais, que já estavam mortos. Meses depois, contrai tifo e morre.

Meses antes, ela transcrevera em seu diário um poema comovente de Keats sobre seu medo de sentir suas mãos frias:

This living hand, now warm and capable
Of earnest grasping, would, if it were cold,
And in the icy silence of the tomb,
So haunt thy days and chill thy dreaming nights
That thou would wish thine own heart dry of blood....






Naquele momento, ainda tinha esperança de encontrar seu namorado, o estudante de filosofia, Jean Morawiecki, que partira para a Africa a fim de unir-se à resistência.



Nos diários de seu amigo Philippe Julian, encontra-se as emoções extremas que o impacto da notíca de sua morte causou. Buruma, o autor, refuta o argumento da alienação de Hélène Berr. Para ele, ela tinha a plena consciência da precariedade de sua liberdade, mas por ingenuidade ou licença poética, preferia se manter positiva em relação à vida.



Este é um daqueles artigos bem escritos, que incomodam a memória quando se pensa que na anormalidade tudo é normal, e pior ainda, que na normalidade tudo está na mais perfeita ordem...



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