Em 1973 era publicado O Caso Morel. Rubem Fonseca tinha então 48 anos. Esta era a primeira novela de Fonseca. Publicar tão tarde uma novela despertou desconfianças da crítica especilizada. Para muitos, como o crítico Gerald Moser, a ousadia representou um desperdício. As palavras de Moser eram duras: In the end, the reader is left with a feeling of utter emptiness, however. It is a sad reflection on the life and literature of our times that a good writer would misuse his talent in this fashion. Provavelmente Moser e outros esperavam mais daquele que já havia escrito brilhantes livros de contos como Os Prisioneiros, A Coleira do Cão e Lúcia McCartney. Curioso é que não parece longe o tempo em que estes críticos estabeleciam moldes rígidos e exigiam critérios opostos de julgamento dos tipos poéticos e prosaicos de literatura. Estes perdendo-se pelo abuso e os primeiros pelo desuso.
Goste ou não, a estética de Fonseca é esta, e continua sendo a de um guia para quem quer conhecer uma cidade com seus persnagens neuróticos e violentos. Sua escrita tem uma visão de mundo pessoal, tão íntima das ruas do Rio de Janeiro que é capaz de traduzir a naturalidade de seus personagens. Tradução que encontra reflexo na mesma intimidade e semelhança que os respectivos personagens guardam com aqueles lidos em Vila-Matas e Montalban e que caminham pela Rambla, ou por aqueles que se escondem na sombria Praga de Kafka, ou pela européia Buenos Aires que Borges tentava ressuscitar nos sonhos de suas invenções.
O Caso Morel, conta a estória de Paul Morel, um fotógrafo preso pelo suposto assassinato de uma jovem de classe média carioca. Vilela, un doublé de detetive, escritor e ex-policial, é chamado por Matos pois recebe a incumbência de transcrever e organizar o livro que Morel pretende publicar contando a verdade sobre o ocorrido. Todos os capítulos são organizados basicamente por diálogos entre estes três.
Vilela, por razões pessoais, por um passado estudantil em comum com Matos, conhecendo seus princípios evasivos e sua lógica rígida, renega-se a dar-lhe a ler os manuscritos de Morel, pois sabe que a informação contida nos manuscritos dão conta de um protagonista cínico e neurótico entregue aos prazeres da vida a ponto de seu exagero hedonista levá-lo à degradação. Fatos que Matos jamais entenderia.
Em toda a sua narrativa, Morel mente, ou omite, ou dissimula. É um artista renomado, vive num meio de artistas, inveja e vaidade. Dissimular é quase que uma auto-defesa para uma personae como Morel. Interessante é que na forma como Fonseca conduz a trama, é possível com alguma imaginação perceber quando Morel advertidamente tenta iludir na tentativa de chocar seus futuros leitores. Nos seus escritos, Morel não esconde nada de sua relação com suas mulheres. Em sua tentativa de quebrar tabús, de ter todas as suas mulheres, concebe o projeto de viver com todas juntas num velho casarão em Santa Teresa. A tentativa de viver com todas sob o mesmo teto, definiu como família. Quase pareciam uma família. Jantavam, dividiam tarefas, faziam jogos, gravavam tapes com suas aspirações, cuidavam do filho de uma das moças como se fosse o filho de todos... uma família.
Uma de suas amantes mais difíceis, e pela qual Morel, talvez, esteja mais apaixonado é Elisa, uma socialite que apenas visita a casa sem necessariamente viver lá, pois apesar de extremamente insatisfeita com seu casamento, procura nas inúmeras relações amorosas, um sentido para a sua vida. A recusa de Elisa faz Morel sofrer. Numa cena meio patética, ainda no início da relação Morel contrata um amigo cineasta fracassado, para se fazer passar pelo astrólogo Khaiub e intermedia o encontro deste com Elisa. Ela percebe a farsa e deixa Morel só em seus pensamentos. Acreditando-se rejeitado por Elisa, Morel tece um dos mais cruéis pensamentos que eu já li.
Fiquei bebendo cerveja e depois fui para a cama. Quando Elisa ficar velha ela vai sofrer muito, pensei com satisfação. Resolvi saborear a minha longa vingança: a Grande Dama envelhecendo, as pernas afinando, enquanto aumentava a rotunda da flacidez abdominal; Elisa perde o equilíbrio e desaba na rua de pernas para o ar; vejo cair o cabelo ralo e seco pelo uso da tintura e surgirem rugas, queixo duplo, sebo nos seios, olhos empapuçados, burrice, medo, rancor, inveja, desespero, mesquinhez, mofo no hálito; ovário avariado; a enfermeira tira a dentadura de Elisa com medo de que ela a engula, na infecta cama do hospital de velhos; a catarata não a deixa ver os antigos retratos gloriosos; a memória de Elisa dói de maneira insuportável e ela sente frio nos pés. Dormi satisfeito.
E ela sente frio nos pés...
Uma das amantes de Morel, Heloisa Weidecker, aparece morta na praia da Barra da Tijuca a vinte de setembro de 1972. A vítima alimentava um diário onde narrava sua compulsão masoquista em detalhes. O diário, que vai parar nas mãos da polícia, entregue por uma das amantes, só complica ainda mais a situação de Morel, pois numa lógica meio tosca os investigadores, amigos e outras amantes, assumem que Morel, por seu comportamento violento, seria o natural assassino da amante. Morel em seus manuscritos cheios de sexo, mistério, alucinação e desespero, narra a cena duas vezes. A ambiguidade dos relatos de Morel, a recusa de Vilela entregar os manuscritos a Matos, a desatenção na leitura do laudo cadavérico, as falhas na investigação... todos os detlhes juntos fazem com que Paulo Morais, verdadeiro nome de Morel, pene. Mas graças à mórbida atração pela estória de Morel, inclusive chegando a penosamente admirar sua coragem afetiva, Vilela consegue ligar os fatos.
Marçal Aquino considera Rubem Fonseca um dos maiores escritores brasileiros vivos. Para mim, um entre alguns poucos. Fonseca certamente sabe ser funcional. Sabe controlar a linguagem, como diz e quando diz, como poucos, usando artifícios de diários, sonhos, flashbacks, transições... Em suma escreve bem demais. Tem um ritmo tão sincopado e uma velocidade de ação tão precisa que sua escrita é quase cinematográfica – curiosamente, as adaptações de sua obra sempre rendem filmes máomeno ineficazes.
Curiosidade: Alvaro Pacheco, na primeira edição de O Caso Morel, dá conta que “no momento [o autor] está trabalhando em outro romance denominado “A Nova Revolução” que a Artenova publicará em dezembro próximo. O romace seguinte de Fonseca só foi publicado em 1983, chamava-se A Grande Arte. Neste meio tempo, Fonseca só publicou, salvo engano, dois impressionantes livros de contos, Feliz Ano Novo e o Cobrador. Nesse meio tempo muita coisa aconteceu... Rubão, que entende de marquetingliterário literatura como ninguém, sabiamente recuou. Afinal, melhor o lombo que a posteridade. Prova isso a cada livro! (risos) Hoje em dia já até se deixa fotografar!
Foto: O riso sacana de Fonseca foi na International Book Fair de 2007, em Guadalajara.