
Inúmeros filmes existem por existir. Rashomon de Akira Kurosawa, não, transcende. Nele há a dimensão de uma grande obra de arte que engloba vários formatos narrativos. O melhor de tudo está contido nele. Cinema, Literatura e História.
A dimensão literária está no argumento já que o filme é baseado em dois contos de Ryunosuke Akutagawa: Rashomon e In a Grove. A estrutura narrativa, absolutamente fantástica e original, na medida que várias testemunhas de um assassinato depõem numa espécie de juízo sobre o crime, sugerindo impossibilidade de obter a verdade sobre o evento da morte do samurai expondo os conflitantes pontos de vista do assassino, da viúva do samurai, e do lenhador que encontrou o corpo. A rara e precisa economia de cenários e a interpretação, ora no local do crime, ora nesta espécie de tribunal, onde as testemunhas falam diretamente para a camera, nos remete a uma peça de teatro transplantada para a tela grande.
A dimensão histórica é um caso a parte, e talvez mais clara em Os Sete Samurais onde o tm alegórico é menos presente que aqui, mas o fato é que o desenvolvimento do Capitalismo na Europa foi totalmente diferente ao do Japão. Enquanto na Europa a construção dos Estados Nacionais fortalece os laços comerciais e capitalistas e o sistema feudal se enfraquece. No Japão a coisa toda foi muito diferente. Em 1600 e alguma coisa, o Clã dos Tokugawas toma o poder feudal no Japão e reinstaura o shogunato concentrado o poder local nas mãos dos Daimiôs. Quando os Shoguns tomam o poder, não só não destituem os Damiôs tradicionais, como fortalecem seus laços com o poder imperial e distribuem terras. O Shogum vive em Edo e o Imperador em Kioto. E pode parecer contaditório para um ocidental, bicho homi e cabra macho pensar que a mulher mais velha de cada Daimiô, reside exatamente em Kioto, no castelo do Imperador, onde periodicamente os Daimiôs, vão ao castelo visitar suas mulheres, pagar os impostos e honrar com os laços feudais, as tais porras de laços sinalagmáticos, aos quais o Hilário Franco Junior sempre se referia e eu nunca entendera.
O Clã dos Tokugawas perdura até a Revolução Meiji – mas isso é outra história. O fato é que em Rashomon, o contexto de honra do shogum, fundamentado historicamente, é posto em jogo quando bandoleiro Tajomaru intercepta o samurai Kanazawa-no-Takehiro que conduzia sua esposa, montada num cavalo branco. A história se desvela em flashbacks em três dimensões a partir do momento em que Tajomaru convence ao samurai que deixe sua rota e vá com ele verificar a localização do esconderijo de espadas ancenstrais. No caminho Tajomaru imobiliza e amarra Kanazawa-no-Takehiro. Tajomaru, bandido safado, pilantra e ignóbil planejava estuprar a patroa do samurai. A princípio, ela tenta se defender, mas quando capturada, submete-se ao malandro na frente do marido. Esses são os elementos genéricos. Agora as dimensões em flashbacks de como tudo aconteceu:
Primeiro, sob uma chuva torrencial de verão, dois homens conversam olhando desolados para a destruição das pagodas a sua volta. Lamentam um acontecimento terrível ao qual ambos estavam ligados. O lenhador conta ao sacerdote a estória sobre como encontrou , três dias atrás, o corpo de um samurai e o chapéu de sua esposa abandonado no caminho. Enquanto o sacerdote conta-lhe que na estrada de Sekiama para Yamashina, vê uma mulher com um chapéu que corresponde a descrição feita pelo lenhador.
A segunda dimesão se dá pela ação dos fatos em si – se é que eles existiram num estado puro.... O filme descreve um estupro da mulher e o assassinato e Kanazawa-no-Takehiro pelo bandoleiro Tajomaru. Através dos relatos contraditórios e divergentes das quatro testemunhas, incluindo o próprio morto através de um médium, a história vai tomando forma. O problema é que cada um tem uma versão para o assassinato.
Finalmente, a terceira dimensão da narrativa está na sacada de Kurosawa em botar um flashback dentro de outro flashback, partindo do princípio que algumas das testemunhas mentem deliberadamente.
As versões sobre o crime.
Após o suposto estupro, coberta de vergonha, Masago, a esposa do samurai, implora ao bandido para duelar até a morte com seu esposo, para que a salve da vergonha. O bandido safado, pilantra e ignóbil, com grandeza de ânimo libertou o samurai para que então ambos pudessem duelar. No depoimento de Tajumaru eles duelam hábil e ferozmente, mas a mulher fugiu. No final da história, Tajumaru é perguntado sobre a adaga possuida pela esposa do samurai. Ele diz que, durante o combate e a fuga esqueceu completamente e que fora uma tolice deixar para trás tão precioso objeto. Mas isso é a versão de Tajumaru.
Masago, alega que depois que depois de estuprada implora a seu marido para que a perdoasse. Ela então o libertou e implorou para que ele a matasse, de modo que ela pudesse ficar em paz. Este simplesmente a olhou com frieza. A expressão penetrou em sua alma e ela implorou mais uma vez para que a matasse, sem prejuízo, e então ela desmaia com a adaga na mão. Ao depertar, encontrou seu marido morto com a adaga cravada no peito. . Mas isso é a versão de Masago.
Kanazawa-no-Takehiro, já morto, então incorpora, no jargão das ciências ocultas, num cavalo. Na cena de alta macumbaria, o samurai alega que após ter sido capturado por Tajumaru, assistir ao estupro e ao pedido de Masago para fugir com Tajumaru, presenciou o pedido de Masago para que Tajumaru matasse o matasse. Tajumaru podia ser bandido safado, pilantra e ignóbil, mas tinha hombridade. Chocado pelo pedido, agarrou-a, deu-a ao samurai para que a julgasse. A mulher fuge. Então Tajumaru liberta o samurai. O samurai então se suicida com sua própria adaga. Mas essa é a versão do cavalo que incorporou o caboclo Kanazawa-no-Takehiro.
Lá pelas tantas, o caboclo Kanazawa-no-Takehiro menciona que alguém removeu a adaga de seu peito. Ao ouvir isso o lenhador fica assustado e alega que o morto estava mentindo, porque ele foi morto por uma espada. Eventualmente, o lenhador volta a depor e afirma que ele mentiu por não queria se envolver, quando de fato, ao vencer o duelo, Tajumaru matou o samurai, uma vez que este tentava fugir para os arbustos. Ao avistar a morte de seu marido, a mulher grita aterrorizada enquento Tajumaru pega a a espada do samurai e saiu da cena mancando. Ou seja, a adaga, a arma do crime, estava lá. E alguém a levou.
Volta-se para a cena final, onde estão o lenhador, o plebeu e o monge. Ouve-se o choro de uma criança. O plebeu então, pega o quimono o rubi que serve de proteção para o bebê na cesta. O lenhador repreende-o, e o plebeu pergunta sobre a adaga da mulher. Este guarda silêncio. O plebeu, sacananmente faz pouco caso da bondade do lenhador e alega que todos os homens são egoístas, agem em proveito próprio e que a mentira e o falso testemunho faz parte da razão humana. Ao pegar o bebê nos braços e prontificar-se a levá-lo para junto dos seus outros seis, o lenhador adquire o beneplácito do monge, mas como diziam os latinos, a moral da história do alegar e não provar é o mesmo que não alegar, fica pairando no ar... pois no fim das contas, quem matou a porra do mané do maldito samurai?!