Cooper


Em 1959, data da caricatura acima, Gary Cooper tinha acabado de filmar Man of the West e saía da segunda cirurgia contra um câncer no estômago. O que mais me marcou nas atuações de Cooper foi sempre a sua solidão permeada por um silêncio lacônico. Quem viu High Noon, que se eu não me engano o português chamou Mataire ou Morreire, vai saber do que estou falando. Foi casado com Sandra Shaw que, assim como ele era atriz e ficou conhecida como uma daquelas moças que o King Kong jogou de um dos prédios no início dos anos 1930. Depois disso fez dois ou três filmes e virou esposa de Cooper - que dizem as línguas hollywoodianas passou a ser a encarnação da Amélia, não por vontade própria, mas pela competência de Cooper que era imbatível na arte do adultério.
Mais? Dá uma olhada no "Gary Cooper: An Intimate Biography" do David Brooks.
A ilustacao vem d'O Cruzeiro - 10 de outubro de 1959 - assinada por Carlos Estevão.

Machado de Assis e Eça de Queirós


Das coisas que se procura em vão na web, nem sempre o que debalde se encontra é o que infrutífero resulta.

Por diletantismo apedeuta, próprio da minha pesssoa, já tinha percebido alguma semelhança entre dois personagens do Lima Barreto - Isaias Caminha e Policarpo Quaresma - e o personagem Ivan Petrovitch Goliadkin, protagonista de O Duplo, uma das primeiras novelas de Dostoievski. Melhor dito: alguma ilusão de semelhança. Entretanto, não ousaria dizer que era uma imitação, pois a razão da insanidade de Quaresma, por exemplo, passa longe da alucinação persecutória e do espirito obsecado de Goliadkin. Lembro sim que havia algo de similar tanto nas troças que os companheiros de trabalho faziam de Caminha, quanto naquelas que os de Goliadkin faziam dele; na semelhança da condição profissional; numa certa mania de perseguição com pessoas que os tentam ofender, prejudicar, vilitendiar; e por fim o isolamento de ambos num hospital de alienados...

Mas taí uma coisa que desconhecia aventada pelo Machado de Assis: O Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l'Abbé Mouret... Me senti o maior do imbecis constrangidos, ao ver que no google tem um monte de picaretas falando desta semelhança que eu desconhecia, sem a humildade de afirmar que nunca leram ao Zola.

Enfim, falando em reinvenções, meu amigo Rodrigo Patto foi quem me chamou atenção certa vez para o fato de que o Memórias Póstumas de Brás Cubas lembrava muito, ao menos no estilo, uma história escrita por Lawrence Sterne algumas décadas antes chamada Life and Opinions of Tristam Shandy. Acabei indo conferir a estória numa edição de 1832. Não sei se pelo inglês casto, provavelmente não, mas achei um livro chatissimo. Acho que isso se deve a leitura previa do Memórias, que para mim sempre foi o melhor livro, impressão corrigida pelo Dom Casmurro que passou para a minha lista incompleta dos melhores 100 livros da minha vida. Enfim, como bem lembrou meu camarada, lembrar desses detalhes é sempre fundamental para evitarmos a velha patriotada marota.
Então, seguindo a lógica do Lavoisier (aquele do 'nada se cria, nada se perde, tudo se transforma', que foi guilhotinado pelos franceses, não pela sentença cinicamente pertinente, mas pela raiva que todo o serumanu sente da Receita Federal ou IRS - ou seja la que nome essa merda tenha -, da qual ele era arrecadador), o fato de Eça usar traços de Zola, Machado se inspirar em Sterne, Rubem Fonseca melhorar em muito a John O'Hara, nos dá a certeza, que talvez nem venha ao caso aqui, de que fomos engalbelados pelos modernistas ao transformarem uma caracteristica nata do escritor - a angústia da influência, da qual Bloom fala, e que por um passo em falso cai no plágio - num adágio de literatura nacional.

Crítica de Machado de Assis
Publicada na revista O Cruzeiro, 16 de abril de 1878.

Um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa, o Sr. Eça de Queirós, acaba de publicar o seu segundo romance, O Primo Basílio. O primeiro, O Crime do Padre Amaro, não foi decerto a sua estréia literária. De ambos os lados do Atlântico, apreciávamos há muito o estilo vigoroso e brilhante do colaborador do Sr. Ramalho Ortigão, naquelas agudas Farpas, em que aliás os dois notáveis escritores formaram um só. Foi a estréia no romance, e tão ruidosa estréia, que a crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome do autor na primeira galeria dos contemporâneos. Estava obrigado a prosseguir na carreira encetada; digamos melhor, a colher a palma do triunfo. Que é, e completo e incontestável.
Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho real do autor? O Crime do Padre Amaro revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir. Se fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo a peito dizer-lhe francamente o que penso, já da obra em si, já das doutrinas e práticas, cujo iniciador é, na pátria de Alexandre Herculano e no idioma de Gonçalves Dias.

Que o sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l'Abbé Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título. Quem os leu a ambos, não contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de Queirós, porque ele a tinha, e tem, e a manifesta de modo afirmativo; creio até que essa mesma originalidade deu motivo ao maior defeito na concepção do Crime do Padre Amaro. O Sr. Eça dc Queirós alterou naturalmente as circunstâncias que rodeavam o padre Mouret, administrador espiritual de uma paróquia rústica, flanqueado de um padre austero e ríspido; o padre Amaro vive numa cidade de província, no meio de mulheres, ao lado de outros que do sacerdócio só têm a batina e as propinas; vê-os concupiscentes e maritalmente estabelecidos, sem perderem um só átomo de influência e consideração. Sendo assim, não se compreende o terror do padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe nasce um filho, e muito menos se compreende que o mate. Das duas forças que lutam na alma do padre Amaro, uma é real e efetiva - o sentimento da paternidade; a outra é quimérica e impossível - o terror da opinião, que ele tem visto tolerante e cúmplice no desvio dos seus confrades; e não obstante, é esta a força que triunfa. Haverá aí alguma verdade moral? [...]
Croqui de Henrique Bernardelli, Coleção Oliveira Lima

Paulo Francis Again




"É TRISTE ENVELHECER LONGE DOS AMIGOS." PAULO FRANCIS, NUM MOMENTO DE GUARDA BAIXA, EM ENTREVISTA NO PARANÁ

Paulo Francis, 10 anos depois

Imponente. À proporção que a vida avançava, Francis, fraco e delicado como era, ia sendo assumido por ela e pelas circunstâncias, fingindo sempre o contrário, enfunando o peito, olhando de cima, impostando arrogância. Nos últimos 10 anos tinha crescido uns 10 centímetros. Eu olhava e dizia: "Quem não te conhece é que te compra", pois não apenas no fundo, freudianamente, mas logo abaixo da superfície, era uma alma carente, comprável por um afago verdadeiro, tipo, creiam... familiar. Quem leu sua semibiografia verá isso presente na figura de Irene. Irene, a mãe. A falta angustiada da proteção essencial. A eterna busca. A perda irredimível. Tudo, claro, dolorosamente camuflado.
O sucesso foi uma substituição insuficiente para essa sua ânsia, jamais revelada, revelo-a eu agora, esperando com isso iluminar de modo mais belo essa personalidade que de público cortejou sempre o gosto de chatear, criar adversários, até mesmo alimentar ódios, ser insuportavelmente odioso. Diante de alguns de seus acessos – comigo jamais demasiados – eu zombava, parodiando, comicamente, o Horácio final do Hamlet: "Dá-lhe, sweet prince!".
Fallstaffiano na forma e no conteúdo, ampliava o que sabia, o que lia, o que via, enquanto o tempo, esse marcador de vidas do qual ninguém escapa, nos mostrava que não era suficiente para que lesse tantos livros, visse tantos filmes, fosse a tantas exposições, escrevesse tanto. Mas quando, no calor de uma conversa, surgia qualquer assunto, o último livro, a última polêmica internacional, a última exposição no MoMA, as contas que fazíamos de seus exageros morriam. Ele expelia nomes e conceitos, citava autores e fofocas políticas, com justeza e propriedade, sem possibilidade de consulta, ao sabor do momento. Calava-nos. Calávamos.
E zombávamos também, os amigos, por trás ou pela frente, dos seus erros de observação, factuais ou de avaliação. Mas ele assumia o exagero, dava como desprezíveis as próprias incongruências, assim como assumia o grotesco na televisão, chutando as canelas dos "rivais", e cantando com voz roufenha e razoavelmente desafinada o Summertime ou, quem não viu não verá mais, a chiquita bacana lá da Martinica. E foi assim que criou um tipo, que ocasionalmente passou a imitar, antes que outros cômicos o fizessem.
De uma pessoa de tanto sucesso e tão disposta a atacar, justa ou injustamente, tabus nacionalistas, feministas, literários e que tais, com a capacidade intelectual amedrontadora que ele tinha, é muito brasileiro – será só brasileiro? – duvidar da masculinidade. Francis não escapou dessa. Mas eu conheci, estou contando nos dedos, mais de uma mão de mulheres belas e intelectualmente respeitáveis – combinação não muito comum, não sei se sabem – com quem ele se envolveu de maneira intensa e algumas vezes dramática.
Falando apenas do sucesso, sem discuti-lo, não conheço outro jornalista que tenha tido o que ele teve. Foi sempre visível, desde o tempo de suas impiedosas críticas teatrais, passando pelo Pasquim, Folha de S.Paulo, O Globo, TV Globo, e nesta, ultimamente, fazendo o que ele sabia fazer como ninguém – entrevistar personalidades famosas. Em inglês. Tudo a bom preço, que fazia questão de ostentar, materializando, nos grandes hotéis do mundo, na primeira classe dos aviões, nos carros com motorista, no seu ato existencial de todo dia, o "Sorry Periferia", do outrora Ibrahim.
Tinha, na sua profissão, chegado ao máximo, como repercussão, como compensação, como satisfação. Não podia ir mais longe. Me despedi: "Good night, sweet prince".



Veja de Ontem.

Sugerido pelo Pedro Junqueira, grande admirador e diriamos herdeiro novaiorquino do Francis...

My Funny Valentine

Pal Joey é um filme seco. Não é necessariamente ruim, mas cheguei a me perguntar no meio que se não fosse pelo Sinatra, fazendo o papel de um cantor sem muito escrúpulo, da Rita Hayworth, voluptuosa, apesar de já visivelmente vincada pelo peso dos quase quarenta anos, e da Kim Novak, o filme teria me causado a mesma sensação. Afinal, com eles ou sem eles, poderia ter sido um filme melhor contado.

Joey é um cantor de relativo sucesso. O cara é simpático, canta bem – afinal é o Sinatra - engraçado, talentoso e dono de um humor seco e cortante. Numa de suas apresentações encontra um antiga corista, agora viúva de um milionário chamada Vera Simpson – Rita Hayworth. Vera se apaixona por Joey, mas a recíproca não parece ser tão evidente, já que em matéria de sinceridade, não se poderia dizer que o cantor fosse tão transparente quanto os olhos de Vera quisessem ver. Mesmo assim romance se encaminha redondo na fase do encantamento - tem musiquinha no pé do ouvido, olho no olho, o risinho da paquera, Vera ofendida esbofeteando a cara de Joey, o beijo desmaiado que se segue, enfim e tudo mais que não se pode ver. Sinatra era o cara perfeito, cínico, engraçado, talentoso, dono de um humor seco e cortante e além de tudo cantava bem. Vera passa a abrigá-lo em seu barco e financiar uma casa de espetáculos que este teria o privilégio de dirigir. But.... tinha a Linda - Kim Novak - que nas palavras de Vera era o "mouse on the line". Linda era uma mulher, como se diz no filme, como se não houvesse amanhã. Uma típica menina de interior, submissa e apaixonada por Joey.

Ele a traz para o espetáculo que estava montando na casa financiada pela amante, que já se considerava titula do coração de Joey. O problema é que Vera, como ex-frequentadora da noite, não estava disposta a ver sua grana sendo torrada com um camarada sem escrúpulos, e muito menos financiar os casos dele com outras vedetes. Portanto, para se livrar de Linda, Joey sugere, pensando que por escrúpulos esta negaria, que ela fizesse o número de streap tease. Ela aceita, para ficar não apenas no espetáculo, mas perto de Joey – que tem ascendência sobre ela.

Nesse momento Joey põe o sonho a perder, pois ainda nos ensaios interrompe o número e desencadeia a crise que levaria ao fechamento da casa, sem nem ao menos ter sido inaugurada. O xeque-mate dado por Hayworth - ou Linda ou o sonho da casa de espetáculos e todos os benefícios adjacentes – acabou definido a estória que não conto o final, pelo final ser absolutamente dispensável (pois no fundo isso é Hollywood).

Particularmente, eu tinha gostado do roteiro sem saber de quem era. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que tinha sido de John O'Hara. Esse camarada tinha escrito o roteiro de um outro filme muito bom que tinha asssitido há um tempo com a Elizabeth Taylor – em seus aureos e voluptuosos tempos – chamado BUtterfield 8. O roteiro também girava em torno do meio artísitico. Uma modelo que, para a mãe, se fazia passar por atriz, mas que no fundo era uma espécie de scort-girl que alimentava a esperança de casar com um milionário por quem se apaixonara. O filme tinha algo de soup-opera, é verdade, mas tirando o arrependimento e aquele choro de desespero dramalhão de Taylor ao revelar para mãe sua vida dupla, que a fez ganhar o Oscar, o roteiro é bom.

Brevemente pegarei algo do John O'Hara para ler. Afinal um cara que é definido pelo John Updike como tão importante quanto Checkov, deve ter algum mérito – ainda que inflacionado. Dizem, também, que era absolutamente controverso. Na coluna que assinou por anos na New Yorker por anos, tinha opiniões bastante conservadoras. Além disso, dizem que era um mestre sem escrúpulos da auto-promoção. Enfim, vou tentar ler o Appointment in Samarra e algo mais dessa figura.

Musica do dia: My Funny Valentine

My funny Valentine
Sweet comic Valentine
You make me smile with my heartY
our looks are laughable
Unphotographable
Yet you're my favourite work of art

Is your figure less than Greek
Is your mouth a little weak
When you open it to speak
Are you smart?

But don't change a hair for me
Not if you care for me
Stay little Valentine stay
Each day is Valentine's day...

You get mistaken for strangers by your own friends

Pustulamente reproduzo o email que o João enviou hoje pela manhã, dia seguinte do show do The Nationals, uma banda do Brooklyn. Bem que ele insistiu para que fossemos.... c'est la vie.



Prezados remelentos,

Perderam um showzaco ontem. O national e uma banda para sentir ao vivo, de som atonal e intelectual com fortissimos emocionantes no fim das musicas. Eles brincam com suas expectativas musicais introduzindo melodias belas e quebrando-as esmagandoas e reconstruindo-as em trilhos diferentes. A musica deles comeca um pouco marcial e serena e ansiosa como a expectativa da batalha, prossegue em trilhos ordenados como nas regras de engajamento, ganha energia e perde a ordem terminando em catarsis, nos gritos de morte morrida do vocalista epiletico. A banda agora traz ao vivo o violinista que parece um filosofo italiano aos 60 anos. Ele sola num violino melodias belas e invulgares. The rosebuds, a banda de abertura (da carolina do norte) foi excelente aperitivo e tocou um roque pop lirico e energetico. Ontem eu me lembrei de emocoes estranhas que ficam esquecidas na rotina e que so a boa arte consegue despertar.

João

Para maiores informações, plezz crique no som Fake Empire e Mistaken for Strangers - uma musiquinha que todo o jovem recém saido do College deve escutar com um certo rancor...
http://www.myspace.com/thenational

Ser moderno por engano

A crônica de hoje do Veríssimo, particularmente a de hoje, me fez pensar que o cronista voltou aos seus bons e velhos tempos. A crônica que a principio nem era tão excepcional, pois era na verdade era uma espécie de fragmento de duas crônicas diferentes sobre o mesmo tema. Mas eu gostei um montão pois o Veríssimo fala exatamente exagero e do auto-engano. Fala do que todos acreditam ser realidade, das frases que pensamos terem sido ditas e imortalizadas, em peças de teatro ou filmes, mas que na verdade foram proferidas noutras circunstâncias totalmente diferentes - ou que nem serquer foram ditas.

De uma só porrada, uma crônica bem leve me trouxe uma série de dúvidas sobre diálogos em filmes que assisti e livros que li.

Por exemplo, sobre famosa ‘toque outra vez, Sam’, que todos juram ter ouvido em Casablanca, é fato que nunca saiu da boca de Bogart. Isso eu me lembro. Na verdade, isso foi uma invenção muito bem bolada do Woody Allen - segundo o Millor o infeliz que deu certo - num filme de 72 chamado exatamente Play it Again, Sam.

O Verissimo não se lembra exatamente se a frase “é preciso mudar para que as coisas continuem como são” foi dita pelo principe de Salinas ou se pelo seu sobrinho Tancredi na versão de Il Gattopardo do Lampedusa que Luchino Visconti plasmou na tela.

Na verdade, eu tambem não chego a me lembrar exatamente quem disse a frase, mas ouso pensar sem certeza que foi dita pelo patriarca cínico, irônico e resignado interpretado pelo Burt Lancaster. Lembrar, não lembro. Lembro, sim, uma da mais bem boladas cenas que ja vi no cinema. A cena com o Burt Lancaster fazendo a barba na frente do espelho quando o Alain Delon chega e começa um diálogo por trás dele, ambos olhando para o espelho e consequentemente um para o outro e conjecturando sobre como seria o futuro se as tropas de Garibaldi obtivessem sucesso. Explico: O 'novo' Alain Delon às costas do 'velho' Burt Lancaster. Ambos olhando para a frente e vendo suas imagens refletidas, e se abusássemos do intelectualismo barato, invertidas.

Depois da tremenda sacada de Visconti muita gente usou essa metáfora ‘do olhar a frente mirando o espelho', para expressar que de fato o que se enxerga no espelho somos nós mesmos dentro de um contexto qualquer olhando para trás, enfim, para o passado.

Muita gente usou essa idéia concebida na ficção e transplantada no cinema, para explicar o caráter conservador das ondas de modernização nos países da península ibérica e na América Latina nos últimos 50 anos. Varios foram buscar as origens da Dependência no Pacto Colonial, sem explicar a vergonha histórica do nosso velho eufemismo de espelhos. Ou seja, a idéia de que 'ao se mudar sem mudar muito', salvo ledo engano, sempre esteve um pouco além da ficção e um tanto aquém da realidade - tanto na Italia do conde de Salinas e no Brasil dos Luzias e Saquaremas.

É por isso que eu gosto desse jeito de quem não quer nada do Verissimo. Sempre tranquilo, mas sempre dando suas estocadas - metaforicamente falando de cinema e literatura - até quando não quer. Como hoje.

Cabra-cega - Carlos Nascimento Silva

Alguns motivos me levaram a ler Cabra-cega. Um deles, erroneamente, foi o de ter sido um livro premiado com o Jabuti. Outro motivo, um tanto controverso também, foi o de falar dos anos 60, mas sem invocar os heróicos e teratológicos feitos daquela geração como se as seguintes e anteriores não existissem ou tivessem importância menor. Sei que é pouco, mas assim mesmo foi um dos motivos que me fez tirar o livro das estantes.

O enredo transcorre entre o dia 15 de julho de 1964 e os dias atuais. Começa com um assassinato de Sue Anne num lugar chamado Clipple Creek pelo jovem John Boy e termina nos dias atuais, com personagens, que ainda que nao presentes na cena do assassinato estavam ligados a ela por motivos inexplicaveis, já sexagenários e cheios de marcas, dessas que a vida deixa. Mesmo sem saber, quatro personagens alheios a cena, no Brasil e nos Estados Unidos, passam a ter seus destinos envolvidos por esse episódio. Ainda jovens, John Inward Jr ( um cientista e acadêmico americano), Marcella(uma mulher enigmática que procura a todo custo não se envolver emocionalmente com Jonas) , Ronaldo e Tangjo (Uma coreana casada com o português Carlos Augusto que conhece nos tempos de universidade nos EUA), passam a ter sensações estranhas, espécies de Déjà Vu, como se fossem testemunhas involuntárias do assassinato. Essa ligação extra-sensorial acaba acompanhando-os por toda a vida como uma metáfora de cabra-cega – aquele joguinho infantil onde uma delas, a cabra-cega, tem os olhos vendados e procura agarrar uma do grupo.

Carlos Nascimento escreve muito bem. Envolve o leitor com sua maneira precisa de narrar e pereceber detalhes da alma humana (o medo do desconhecido, o inusitado da amizades entre estranhos, a carga de sedução que há nas relações humanas, as pequenas perversidades que envolvem o amor, as esperanças perdidas de uma geração idealista, a incomunicabilidade básica e o mal estar com individualismo, enfim a procura às cegas de amizade, amor, companheirismo ou cumplicidade), mas a estória para mim deixou de se tornar interessante no momento em que essa incapacidade básica do serumãnu em se comunicar plenamente pela voz, palavra e gesto vaza na possibilidade da comunicação extra-sensorial – chave com que fecha os dilemas dos personagens.

Tudo bem, há até uma tentativa do autor em demonstrar a frustração e o dilema do jogo de cabra-cega nos personagens que mesmo tirando a venda negra e utilizando a internet para os aproximarem, continuam a não se enxergarem ou compreenderem totalmente nas beiras do século XXI - e para mim esse foi um dos pontos altos do livro. Mesmo assim acho que o livro perdeu um pouco no final. Não sei bem explicar essa minha frustração com a frustração dos personagens. Talvez esse tenha sido mesmo a intenção do Carlos Nascimento – que segundo o Umberto Eco em Interpretacao e Superinterpretação continua sendo o velho dilema do intentio auctoris e do intentio operis. Talvez, lamentavelmente para mim, um cara cheio de manias com o que consigo ver e desconfianças com o que não consigo enxergar, seja por miopia ou ceticismo, eu não tenha entrado nessa extra-sensorialidade toda do intentio auctoris . Mesmo assim um livro com sacadas geniais tais como as citações que fazem o leitor viajar antes de cada capítulo, e particularmente os diálogos entre Jonas e Marcela!!

Spellbound

Spellbound não é um dos melhores thrillers psicológicos de Hitchcock, mas ainda assim vale a pena ser assitido com atenção. A bem da verdade, Freud, Adler, Jung, Fromm e Lacan devem estar se revirando no túmulo, e suponho que um monte de psicanalistas devem igualmente ter engulhos ao ver o filme, mas como não sou psicanalista e não tenho compromisso mínimo com certezas, falseamento de hipóteses ou conclusões sobre o que quer que seja, gostei das linhas gerais e do argumento do filme. Parece até que Hitchcock persuadiu pessoalmente David Selznick a comprar os direitos do livro de John Palmer, The House of Dr. Edwards, por 40 mil dólares. Não me lembro bem se esse é um daqueles filmes que Hitchcock estava obrigado, por um contrato assinado com Selznick no início dos anos 40, a cumprir. Em todo o caso o filme parece que foi feito meio aos trancos e barrancos entre a negligência de Hitchcock e a obsessão de Selznick

Porém, nada explica tamanha animosidade dos psicanalistas. Principalmente por que estes certamente não tomaram ciência do nome que o português deu ao filme: “Quando o Coração fala mais Alto” ou algo assim. Isso sim, digno de indignação!! Até por que o nome original poderia ser um jogo de palavras com o sentido de iludido, encantado ou fascinado; ou num trocadilho slang, spell binder, poderia ser uma espécie de orador envolvente. Seja como for, algo muito mais pertinente que “Quando o Coração fala mais Alto”! Né não?

Para resumir, Ingrid Bergman, em seu papel de mulher independente e desejável, é uma jovem psicanalista que trabalha na clínica Green Manors. Por sua crença na ciência, a jovem doutora Constance Peterson nunca havia deixado a paixão interferir em seu trabalho. Entretanto, quando futuro diretor do lugar, Dr. Edwards (Gregory Peck), chega, suas certezas se abalam.

O tom de mistério começa quando Dr Edwards começa a agir de maneira estranha, expondo os efeitos avassaladores de sua amnésia e expondo suas fragilidades aos seus pares e pacientes. Seus pares, passam a perceber os lapsos de memória e chegam a assumir que o Dr. Edwards possa não ser aquela figura que ali se apresenta, principalmente baseados na negação de que o doutor Murchison tenha encontrado Dr. Edwards antes. Um dos primeiros a desconfiar do jeito esquisitão de Edwards é exatamente o mentor intelectual da doutora Constance Peterson, Dr. Brulov, interpretado por Michael Chekhov. Dr. Brulov acredita que algumas pessoas vivem socialmente em constante estado onírico (ãh, hã..), e inclusive o camarada até lembra um pouco o semblante do Freud.

Então, a doutora Constance Peterson, percebendo o comportamento vacilante do doutor Edwards tenta ajudá-lo a provar que ele é ele mesmo, tentando resgatar seu passado atormentado.

O fato é que o verdadeiro Dr. Edwards não está na clínica e está provavelmente morto. Então as perguntas que se seguem são. Onde está o Dr. Edwards? E quem é aquele camarada que se faz passar pelo Dr. Edwards?

Nesse momento o filme degringola um pouco numa espécie de psicanálise primitiva e nem Hitchock consegue contê-lo. Em parte por que Hitchock delega as imagens do inconsciente do Dr. Edwards a Salvador Dalí em sequências pra lá de surreais. As portas que se abrem no beijo de Constance e Edwards, os sulcos que Edwards vê no tailler de Bergman, enfim, uma série de imagens que supostamente seriam o retrato da mente conturbada de Edwards que não me convenceram. O produtor , o todo poderoso Selznick, chegou a contratar um terapeuta para orientar as gravações, o que levou a Hitchock ironizar “my dear, it’s only a movie!”
Uma curiosisdade. Muita gente criticou a sequência idealizada por Dalí para Spellbound. Muita gente também disse que Dalí não entendia nada de cinema. O que não é de todo verdade já que ele e Bruñuel haviam escrito Un Chien andalou e L’Âge d’or no final dos anos 1920.

A dúvida sobre se Dalí entendia mesmo de cinema ou não é irrelevante, mas o fato de Dalí saber que Bruñuel era cineasta do bons e e se calar ao saber que este passava os maiores perrengues em NY no início dos anos 40 trabalhando para Museu de Arte Moderna como dublador para a Warner Bros mostrava a animosidade sintomática entre ambos. Aliás a divergência entre ambos começou em L’Âge d’or, após uma série de desentendimentos entre Bruñuel e Gala – mulher intransigente de Dalí e que consta que Bruñuel tenta estrangular durante as filamgens de L’Âge d’or - , e que duraria para toda a vida. A divergência se concretiza quando Bruñuel edita o filme na França e não dá os créditos a Dalí. Dalí, então, magoado, escreve no início dos anos 40, A vida secreta de Salvador Dalí, e expõe os detalhes dos bastidores do filme, bem como as simpatias comunistas de Buñuel. Em virtude da cachorrada, Bruñuel perde o ganha pão do MoMA em 1943 e o filme Spellbound tem suas sequências oníricas realizadas não pelo melhor cineasta, mas pelo camarada bom de marketing que deu uma imagem ao inconsciente, e transformou essa imagem em mercadoria, e à mercadoria da imagem um fetiche para pendurar na sala de jantar.

Last but not least, o culpado da morte do verdadeiro Dr. Edwards não era o ‘Dr. Edwards’ que lembra finalmente de sua identidade. Isso não o livra do xilindró, pois junto aos fatos do passado, as lembranças revividas revelam os detalhes sobre o acidente que ocasionou a morte do irmão – detalhe que torna o suspense da trama tesa até a penúltima cena, já que a última é a do beijo, pois como diria David Lynch isso é Hollywood.



Bacana também são as piadinhas calhordas do Dr. Alex Brulov: “Good night and sweet dreams… which we’ll analyze in the morning” ou “ women make the best psychoanalyst until they fall in love. After that they make best patients”