O que não se faz com uma corda.





“Teses sobre um homicídio” é um filme quase bom. Tem todos os elementos de um filme de suspense dos bons. Tem o mestre experiente duelando com o aluno talentoso, num ambiente acadêmico sem os expedientes de baixaria e puxada de tapete típicos do círculo. O grande Ricardo Darín encarna Roberto Bermúdez, um advogado, professor universitário respeitado, mestre experiente que recebe um novo aluno bem talentoso para um de seus seminários. O aluno é Gonzalo, filho de um casal amigo de diplomatas de longa data de Bermudez. O jovem, antagoniza com o mestre um intrincado jogo psicológico.

Gonzalo é um solteirão inveterado. Goza de uma posição acadêmica estável, e para um homem em sua posição, não é difícil conseguir arrastar uma aluninha ou outra, alpinista social, para o acalento de seu bureau. Seu ceticismo, marca talvez mais da carreira de advogado criminalista que da personalidade, transparece por completo em sua pratica docente. Fato é que, durante uma das aulas, o corpo de uma moça é encontrado no estacionamento da faculdade, aparentemente colocado de forma que Roberto pudesse avistar de sua janela e se importar com a investigação do crime.

Pouco a pouco, o professor descobre que a vítima era uma garçonete de um restaurante do qual costumava frequentar. Entre idas e vindas, Roberto é levado a crer no envolvimento de Gonzalo com o crime. Ao mesmo tempo, o rapaz tenta se aproximar de Bermudez sugerindo uma disputa velada, deixando uma série de sinais, pistas e frases, onde a vaidade perpassa a força bruta, nesse jogo de quebra-cabeça psicológico. Ao mesmo tempo em que tenta desvendar a autoria do crime, Bermúdez inicia uma relação  protetora e obcecada com Laura (a bonitinha Calu Rivero), a fragilizada irmã da vítima.

Bom, mas vamos lá. Vamos dar uma renegada básica a condescendência da empolgação  e vamos supor que um estudante, não dois, apenas para provar a si mesmo que pode cometer o crime perfeito, desafia os amigos e o professor, e resolve convidá-los para uma reunião no apartamento dele, e serve a comida em cima de um baú onde está escondido o corpo da vítima. Pois é, quem pensou em Patrick Hamilton, ou melhor em Rope, ou melhor, O Festim Diabólico, ganhou duas balas Juquinha. O filme tenta ousar na construção da trama, fugindo exatamente do pastiche do filme do Hitchcock, mas deixa um pouco a desejar nas resoluções das pequenas tramas.

Música do dia: Choro Triste – Rogério Souza. Violão Brasileiro.

Na Fronteira da Tarde


“O mundo é guiado pelo acaso, a contingência nos persegue todos os dias de nossas vidas...” Comprado em Manaus numa livraria de qualidade duvidosa de uma loja de departamentos , que em nada se parece com a papelaria do Mr. Chang, o livro que acabo de ler me aproxima um pouco do protagonista Sid Orr. O Livro: Noites do Oráculo do Paul Auster. O Acaso: dias antes estava eu numa reunião com o dono das lojas tratando dos princípios fundamentais dos grandes sistemas do marketing, do mercado, da produção, da distribuição, do consumo, da comunicação, dos partidos políticos, da eleições, onde o que estava em jogo, na verdade era o lucro. Fecha parênteses.

Em Setembro de 1982 o escritor Sidney Orr entra numa papelaria de um chinês do Brooklyn e compra um bloco de notas azul português. O dia é quente, abafado, como um dia normal da época das chuvas em Manaus.  A chegada à papelaria quase se poderia dizer que foi uma saga. Sidney, recém saído de um estado de convalescência, dá pequenas saídas à pé, sente-se inseguro, fraco e suas caminhadas são medidas como os passos de que reaprende a andar. Sid entra na papelaria de Mr. Chang e fica fascinado por um caderno de capa azul, que lhe tira da passividade. Traz de volta a vontade de escrever, depois de tantos meses parado. No momento em que o compra e trava um estranho diálogo com Mr. Chang, Sid não sonha que a sua vida começa naquele momento a perder, gradualmente, consistência. A sua mulher, Grace, começa a ter um comportamento incomum, passando por estados de extremo laconismo, seguidos de edulcoradas declarações de amor, que o deixam um confuso e em estado de pânico. Seu medo é  perder a pessoa mais importante da sua vida.

Nos nove dias que se seguem, tudo parece estar estranhamente vinculado ao caderno de notas, e no que nele é rabiscado. Parece que tudo que escreve no tal caderno ganha um peso sobrenatural de premonições, ou de apenas alucinações. Em todo o caso os acontecimentos são desconcertantes. Como aqueles em que você cruza com a mesma pessoa estranha duas ou três vezes num mesmo dia, em lugares completamente diferentes. Você nunca viu a pessoa, não sabe quem é, e imponderável e desnecessário  é procurá-la no facebook. No caso de Sid, os acontecimentos minam seu casamento com Gracie, que segundo ele passa a se comportar de maneira muito estranha. Mais uma vez, Auster constrói uma rede de narrativas em que personagens e situações se espelham e se sobrepõem. Na mesma semana em que adquire o tal caderno, o chinês fecha seu estabelecimento de forma absolutamente inusitada.

No caderno, Sid começa a escrever a estória de Nick Bowen, um editor que tenta se livrar de seu passado, e recomeçar a partir do zero num lugar onde ninguém o conhece – e claro que isso é uma metáfora em se tratando de Auster, pois o Eldorado nova-iorquino não existe. Bowen é casado com Eva. O casamento já tem cinco anos e entra numa redução em primeira marcha, com a falta de estímulo, e acaba estacionando no cotidiano. Nick prefere ficar numa oficina mecânica em Tribeca montando e desmontando um velho carro. A medida em que as estórias de  de Sid e de Bowen vão sendo contadas temos a impressão de que são paralelas. Numa sexta à tarde um manuscrito inédito de Sylvia Maxwell cai em sua mesa. O título da obra é Noite do Oráculo. Nela um  escritor que vê a sua filha morrer afogada e que faz uma ligação improvável entre o que aconteceu e aquilo que tinha escrito, deixa de escrever, pois "as palavras podiam alterar a realidade e, portanto eram demasiado perigosas para serem confiadas a um homem que as amava acima de tudo."
As estórias de Auster não necessariamente têm finais felizes – como no caso do aborto de Grace -, não necessariamente se encaixam, e  felizmente tudo parece humano demasiadamente humano onde as verdades são aquelas ilusões das quais falavam Nietzsche, que esquecemos serem ilusões - abre parênteses - contidas nos oráculos que imitam a vida.  

2012, a eternidade, a amizade e outras vagas noções da vida

 
Hamlet disse: Give thy thougths no tongue, Nor any unproportioned thought his act. Be thou familiar, but by no means vulgar. Those friends thou hast, and their adoption tried, Grapple them to thy soul with hoops of steel.

Pois então, duas dessas grandes amizade que que gostaria de agarrar, tal como queria o príncipe da Dinamarca,  à minha alma com mãos de aço:

Um é Thiago de Mello, a quem tive o imenso prazer de conhecer em Manaus e com quem passei uma tarde impressionante falando de poesia, Machado de Assis, Flaubert, Balzac e sobre uma infinidade de detalhes do Estatuto do Homem, dos detalhes de sua amizade com Bandeira e Neruda, e Miró e Benedetti... Thiago de Mello,  que um dia em Silêncio e Palavra escreveu... Estimo o velejar fácil de barca singrando o rio sem qualquer ânsia de porto. No singrar já se compraz. Em 2013, se a vida e o trabalho me derem um descanso, prometo injuriar a eternidade e visitar Thiago em sua casa na selva, nem que seja por um fim de semana.

Outro é o inigualável Simão Pessoa, com quem tive a honra, o prazer e a ajuda das Moiras, de trabalhar - além de derrubar hectolitros de Red Label em rodas de poetas e sindicalistas. Autor de quem Millôr um dia escreveu... Livro sincero, a começar pelo título. Um prêmio a quem encontrar uma linha politicamente correta. Obra-prima do gênero. Dei uma gargalhada por página... Assim é Simão, um homem que como todo o grande gozador é um cara sério. Para tanto se você colocar o ouvido direito no seu peito de Simão, ouvirá nitidamente uma grande algazarra. São vozes do Marques de Sade, Jacques Munier, Ovídio, Nabokov... pô Nabokov com certeza, vai quase prestidigitar as páginas do Diário de Dom Rigoberto do Vargas Llosa, orquestrados na clave daquele biriteiro que bebe ao nosso lado em qualquer botequim da vida... isso, claro, quem frequenta esses tipos de lugares, entenderá de que autores eu falo.

 
Música do dia: Fly me to the Moon. Do disco It Might as Well be Swing de Frank Sinatra and Count Basie, arranjado por Quincy Jones.

o gAtO biGodUDo

Guilherme: o nome do meu amigo que "transa vídeo", e que está por trás do O Bigode do Gato. Trata-se de uma série de entrevistas,  visões etnográficas, vastas impressões, estudos de representação dos hábitos, pensamentos imperfeitos, documentários, ou sei lá o que, mas que é muito bom.

As entrevistas são ótimas, os entrevistados melhores ainda. Na edição, capítulo à parte, Guilherme mostra toda sua habilidade. Recentemente, tive o imenso prazer de trabalhar e de dividir vários churrasquinhos de gato - perdão pelo paralelismo - nas noites intermináveis das edições. Enquanto uns editavam outros - me incluo neste grupo - tiravam um cochilo no imenso, confortável e horroroso sofá marrom da ilha de edição. As circunstâncias do trabalho, claro, não permitiam, mas o cara sempre tinha camisas de estampas interessantissimas e gestos elegantes, para além dos cinco ou dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém no tipo de trabalho, com o tipo de gente  que éramos obrigados a conviver.

Qualidades pessoais à parte, bom mesmo era ver o cara editando, mexendo nos controles da sua engenhoca com dedos mais rápidos que os olhos podiam seguir.


Um banho de tcheco

A Tchecoeslovaquia sempre foi para mim um pais misterioso. As vezes sonho com Praga que deve ser linda e deve ter a impressão digital de Kafka em cada xícara de café servida no Café Slavia, onde ele e Max Brod se reuniam para falar coisas seríssimas. Sempre me disseram que Kafka era um cara denso. Quando li  Metamorfose, achei umas partes engracadíssimas, uns personagens curiosos, caricaturais, tão surreal que os conflitos entre Gregor Samsa e o mundo pareciam convincentemente miméticos. Quando li O Processo, ai pelo final dos anos 80, numa edição ruim da Ediouro, me certifiquei que Kafka fazia firula narrativa com a seriedade. Cheguei a assistir o filme do Orson Welles da década de 1960. Parecia muito sério e claustrofóbico. Mas não pegava bem comentar com meus amigos de faculdade que eu via justamente nesse revés a proficiência de Kafka. Eles eram inteligentes e densos pra caramba. Iam rir de mim. Pior, iam pensar que eu era uma pessoa... assim... dessas...” leves”,  e se afastariam de mim, nunca mais me convidariam para uma cerveja, a não ser, lógico, que eu pagasse. Anos depois, me caiu nas mãos a biografia que Max Brod escreveu sobre Kafka e percebi que havia, para além da cumplicidade entre os dois amigos, sim uma espécie de humor surrealista naquilo tudo. E como dizia o saudoso Millor, o humor compreende o mau humor, o mau humor é que não compreende nada.


Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção  e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil -  que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim, sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení), exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário  chamado Matchmaking Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A comédia Leaving de Vaclav Havel estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem,  guarda muito da expressão cênica teatral. O enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger, interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai. Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta.  Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um pomar de cerejeiras.

Vaclav Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da cadeia para assumir a presidência  da Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia. Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele mesmo,  escreveu-o na decada de 1980 - tá bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.

Vilem Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente da casa)  que independe em larga medida do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a vida a política da ficção.

Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.

Choking Man

Quem chega a Nova Yorque de avião aterrrisa no aeroporto JFK. Muito pouca gente sabe mas o nome  do local onde fica aquele fim de mundo é Jamaica. Muito pouca gente sabe, mas o nome do diretor por trás de muitos do videoclipes de uma coisa chamada Michael Jackson, Dire Straits e um torço chamado A-ha, nos anos 80, era Steve Baron, um irlandês que quando não está fazendo videos para musicais realiza bons filmes independentes. Choking Man é um drama psicológico sobre a experiência do imigrante latino na América, mais especificamente na região de Jamaica, Queens. Jorge é um dishwasher, um lavador de pratos, que quase não fala inglês e que fica enfiado na cozinha de um pequeno restaurante muitas horas por dia. Por não falar inglês, ou em decorrência disso, é um jovem equatoriano isolado, sem amigos, que vive da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Seu trabalho consiste em enxaguar com uma mangueira, pratos, copos, talheres, panelas e artigos de cozinha, colocá-los numa bandeja e enfiá-los numa esteira que lavará com água em alta temperatura os utensílios. Após passarem pela tal máquina, Jorge confere se estão realmente limpos, recolhe-os e os direciona a seus respectivos locais. Pratos e talheres para a parte frontal do restaurante e para a cozinha, de onde saem os pratos prontos, e os demais utensílios para a cozinha. Quando o movimento do restaurante é menor, na entre-hora do almoço e da janta, José limpa o chão do restaurante e recolhe os sacos de lixo. O trabalho de José é monótono e repetitivo e ele o realiza em silêncio absoluto.  Além de pratos, a única coisa que José vê todos os dias à sua frente é um cartaz velho e sujo com instruções para salvamento de pessoas em casos de engasgo.

José é um rapaz calado por natureza, em seu  laconismo consome-se, submerso e contrafeito, numa espiral de obsessivos pensamentos contra seu companheiro de trabalho, Jerry,  que parece estar sempre meio chapadão e viajando, tentando a seu jeito tornar José um cara mais comunicativo Se no trabalho há esse companheiro supostamente  apurrinhando sua vida, em casa  a coisa não é melhor. O fantasma de um tio misterioso o assola a todo o momento com sugestões e pensamentos, geralmente confissões mal escondidas, ressentimentos contra os malogros pessoais. Sua incomunicabilidade, levemente autista, é decorrente, no fundo, mais das expressões de demônios interiores que das ameaças reais. A coisa toda só parece mudar um pouco quando a garçonete chinesa Amy é contratada para trabalhar no restaurante. José, ensaia um pequeno vínculo com o mundo exterior. Entretanto, Jerry está ali rondando a moça como uma ameaça ao amor de José. Consumido por uma espécie de paixão morbida pela moça e ódio visceral pelo rapaz, José, como todo o  homem que não sabe atacar concatena vinganças. Vislumbra assassinar Jerry.

Todo o filme é um tanto claustrofóbico. As cenas mais angustiantes são exatamente as que o protagonista tenta se comunicar, em vão, num ambiente anglofônico. Ou seja, as cenas em que o protagonista comunica menos em palavras, são as mais expressivas.

Grande Hotel



A belga Lotte Stoops reinventa com elegância o presente e revive imprecisão passado do Grande Hotel, um suntuoso hotel que teve vida curta durante os últimos anos da colonização portuguesa no território africano, mais especificamente na cidade de Beira em Moçambique. O seu documentário sobre uma das mais mal acabadas obras do “poder colonial” português na Africa é um exemplo do muito que nos diz, a brasileiros e moçambicanos, sobres os sentidos da colonização. Uma vez fabulosamente rico, o Grande Hotel, um edifício que é mais uma cidade dentro da cidade, foi um luxuoso hotel foi construído em 1955 pelo empreendedor português Arthur Brandão, numa enorme àrea de 12.000 metros quadrados. Desta cidade e do gigantesco hotel, sobrou apenas um esqueleto, povoado hoje em dia por 3.500 seres viventes que habitam suas ruínas, tentando criar em cada canto um lugar habitável em meios aos escombros e a sujeira. Mais do que um simples documentário sobre a história deste hotel, o filme retrata que nem a megalomania colonial, nem a vaidade ideológica, conseguiram tornar o lugar eficiente.

Mesmo antes do colapso colonial, o hotel ja havia falido pelo fato de que a obra deixou de ser rentável já na planta. Construído em 1955, o hotel ofereceu aos seus residentes este pequeno paraíso em grande dimensões por apenas 11 anos. Com a falência, dez anos antes da queda do sistema colonial, não demorou muito até que as suites se transformassem em lixeiras, as salas de jogo em bordeis e a piscina num pântano. A revolução, e guerra civil, acabou com seu propósito – se é que havia algum. Grande Hotel passou a ser uma grande ruína, e o lugar que, supostamente, uma vez recebeu presidentes, reis, políticos e o mais alto escalão do poder colonial, passou a hospedar trabalhadores, refugiados, conselhos guerrilheiros, prostitutas e fanáticos religiosos.

O luxo desapareceu. O que restou foi sendo dilapidado, roubado e vendido. E nesse processo, tudo passou a ser moeda de troca: azulejos, portas, vitrais, janelas. Hoje em dia, no lugar dos corredores há todo o tipo de comércio e prestação de serviços que vão desde a venda de comida em condições de higiene precária à presença de salões de cabelereiras. E para um lugar onde não há luz, água, saneamento, nem esperança, há uma dinâmica paralela, que Lotte Stoops se esforça em mostrar intercalando os comentários mais non-sense daqueles que viveram e ainda se lembram do hotel, com imagens dessa estranha miséria que gera uma honesta solidariedade.

As passagens onde uma hospede octagenária lembra com ingenuidade e barbárie de uma recepção de casamento, anos após o fechamento do hotel, de um ofical colonial de alta patente portuguesa é impagável sobre o choque de culturas. A pobre mulher diz que a festa tinha sido tão opulenta, que só se lembrava das muitas vezes que fora ao banheiro para forçar o vômito e voltar para o salão para comer tudo de bom que o banquete da festa oferecia. Todo o luxo que habitou aquelas paredes, desapareceu para sempre.

A diretora, além de percorrer todo o edifício e entrevistar os que lá vivem, mostrando o seu quotidiano, teve o cuidado de intercalar comentários bizarros e muitas vezes preconceituosos com a realidade presente das pessoas que vivem lá e se adaptam à adversidade de viver nas ruínas. Algumas imagens muitas vezes reforçam o argumento dos que frequentavam o hotel como hóspedes. Por exemplo, onde um dia foi o centro de conferências hoje temos uma mesquita, e a piscina olímpica, hoje com um resto de àgua verde, serve de lavadouro de roupas e balneário público. Entretanto, os seus atuais habitantes, que por sua capacidade de adaptação e a estranha solidariedade que a adversidade gera, já se consideram “whato munos”, nativos. Com sua capacidade de adaptação criaram seus próprios mecanismos de defesa e vigilância, onde em cada corredor de dez apartamentos há um vigilante. Um destes é Mateus, uma espécie de zelador/síndico do edifício. Segunda geração no prédio, ele é filho de um antigo funcionário do Hotel, ainda do tempo em queo Hotel recebia hóspedes como Kim Novak, alugava seus quartos para ir fazer safaris na Africa.

Música do dia. O Povo no Poder. Azagaia.

Fluminense x Vasco

Numa tarde de domingo, com um clássico dessa estatura, não há outra opção. Assistir aos mulambos disputando uma taça que nem sei o nome, ou ir ao cinema. O melhor a fazer é assistir os indicados para o Oscar na categoria Short Film:




Pentecost

Estória engraçadíssima de um menino coroinha que não pensa em outra coisa que em futebol. O mnenino é expulso da congregação depois de dar com o turíbulo, acidentalmente, na cabeça de um padre. A punição é severa. O menino fica privado de assistir as partidas do Liverpool. O ano é 1977 e o Liverpool está disputando a copa européia. Mas o Bispo vem à cidade para uma missa e o único que sabe conduzir o incensário é Damien. O paralelo que o diretor, o irlandês Peter McDonald, faz entre o vestiário de um time e os minitos anteriores à misa com o Bispo são impagáveis. Nem Hugo Geogete em Boleiros conseguiria.

Raju

Tudo bem, entendo. Max Zahle, o diretor alemão de Raju, tentou colocar etnicidade, dramalhão, choques culturais, inversão de roteiro, fazendo da última cena a primeira, e tudo mais... mas o filme não decola. Um casal alemão vai até a India para adotar o menino Raju. Tudo lindo. Tudo perfeito. Pegam o menino no orfanato, assinam os papéis de tutela e leva o menino apra o hotel. Os três ainda têm três dias na India e o novo pai de Raju decide dar uma volta pela cidade. Num momento de distração, os dois ficam olhando umas pipas, e o menino desaparece. O pai entao vai a polícia, ao orfanato, a todos os lugares sem sucesso. Até que encontra uma ONG que investiga rapto de crianças. O pai adotivo então descobre que Raju e todos os meninos do orfanato são crianças raptadas. O curta é bom, mas tenho implicância com temas tão globais desde Babel....


The Shore

Outro filme irlandês da pesada. O diretor Terry George fez um filme emocionante sobre o reencontro de dois amigos que se reúnem depois de 25 anos. Pelo que li previamente, o cara fez um filme em frente à sua casa com os atores sendo seus amigos e familiares. É a estória de dois meninos Joe e Paddy que voltam a se ver e acertar as contas de coisas que ficaram no passado. O filme se desvenda nos diálogos do pai com a filha ameriana, numa viagem em que ele a leva para que ela conheça a sua terra natal. A cena impagável é quando os amigos se reencontram. Paddy no seguro desemprego mas catando uns mariscos para defender algum por fora, e Joe e a filha acenando de longe para que ele viese até eles. Paddy e seus amigos pensavam se tratar dos agentes do governo que vinham investigar se eles estavam trabalhado. A trupe sai correndo. Impagável. Um filme emocionante do ponto de vista do roteiro e da direção. Raju leva, por razões acadêmicas, mas meu voto vai para este filme, que não é brilhante, mas tem essa coisa de filme feito com dedicação e transpiração.


Time Freak

Sem comentários. Péssimo, mas vai agradar quem pensa cinema, afinal é a metáfora dos inúmeros takes que um diretor precisa para fazer uma cena.


Tuba Atlantic

Sem comentários. Estória interessantíssima de Hallvar Witzø’s. Um homem em estado terminal que constrói uma geringonça que supostamente pode ser ouvida desde a Escandinávia, na América. Podia funcionar se o diretor não tivesse feito uma verdadeira bosta com um enredo que daria pano para manga.




Nota. Postado 10 minutos antes de começar o Oscar. Que The Artist leve tudo, e que pingue alguma coisa para o Rio, que é um filme chatinho, mas que tem uma trilha sonora boa - apesar do Sergio Mendes.

La Ronde

Parafraseando Raymond Queneau, o filme La Ronde, de 1950, é um elegante exercício de estilo. Poucos filmes dos anos 50, talvez com a exceção dos filmes de Billy Wilder, tem uma carga de sexualidade tão grande e consequentemente tão divertida. A estória se centra numa peça de teatro vienense do século XIX, de Arthur Schnitzler, que causara muita polêmica à época, pois falava do tão famigerado fantasma que assola a história da literatura, desde que o homem é homem e a mulher é mulher: o adultério, i.e. o mais popularmente conhecido, par de cornos.  No filme de Max Ophuls os vários personagens ocupam uma série de vignettes que adquirem uma lógica circular num enredo que envolve, amor, pequenas traições, sedução e uma crítica sobre a moral, permeada por diálogos absolutamente fantásticos e divertidos. Ophuls borda uma reflexão sobre o desejo sexual e seus mecanismos de controle tomando como metáfora um carrossel onde todos somos passivos objetos da vontade dos deuses. As referências – morais, sexuais, religiosas, familiares, profissionais – são mostradas no filme com uma nostalgia da virtude - nas próprias palavras do marido Charles Breitkopt que antes de dormir conversa com a esposa Emma, exausta após uma tarde digna de Belle de Jour. Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas. O filme é genial.

Logo na primeira cena uma prostituta flerta com um soldado, e na segunda cena uma empregada é seduzida pelo seu patrão. Tudo de maneira muito natural, sem resistências nem grande entusiasmos de ambas as partes, até a cena final com a prostituta voltando à cena. A maneira circular e a transitorialidade das paixões está toda ali em amores passageiros, que duram apenas o que tem para durar. Ophus imprime, através de um narrador onipresente, Walbrook,  a cada cena, um fatalismo irônico na narrativa. O Racounter assume várias formas diferentes. Guia pratiamente todas as cenas e introduz as várias intrigas chegando mesmo a filosofar entre as cenas. Não incidentalmente, ele é o próprio operador do carrossel. Algumas cenas são geniais. Algumas vezes quando os encontros amorosos não se realizam por algum motivo, o mestre de cerimônias para a cena e faz reparos no carrossel para que o amor continue girando. As suas criaturas vagam e desconhecem que não passam de atores em cenas criadas por ele próprio e que habitam um palco. Numa outra dimensão, o enredo exige dos atores um exercício de exigente de interpretação, por exemplo, do poeta Barraut que numa das cenas seduz uma jovem e ingênua com uma verborragia e um exagero de gestos e atitudes que adquire uma face quase caricata, e numa outra trava uma pragmática conversação com uma atriz mais velha e temperamental por quem é apaixonado. Com esta, mede as palavras, é um paciente crítico de sua condição, as vezes agitado, mas sempre atordoado com a possibilidade de perdê-la.

Com o filme, Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas, isso muito antes da série Californication! Filme é genial.

Money is not required to buy one necessity of the soul


Tomo  a palavra para dizer que estes são apenas cinco dos 60 discos que comprei por 70 dinheiros estrangeiros. Dentre as preciosidades estão Carmen McRae, Miles, Charlie Byrd Trio, Stan Getz, o rarissimo Veloso, Gil Bethania - Bethania canta Noel de 68, Django Reinhardt, Ahmad Jamal e Wes Montgomery, dentre muita coisa boa. E a frase é do Henry Thoreau, pois no fim das contas money que é good nós num have!

Os Efeitos Maléficos de Hollywood

Quando adolescente, eu queria ser um desses jovens fora-da-lei. Queria andar por aí com um camarada meio sórdido como o Edward G. Robinson, ou um que que suasse muito, e que fosse conhecedor de todas as malandragens das ruas como o James Cagney. Eu era uma espécie de Antoine Doinel, que gostava de faltar as aulas e andar pela cidade com meus amigos. As vezes pegávamos o trem no subúrbio e íamos até quase a Central do Brasil. Por isso eu inventava meus amigos. Dava-lhes apelidos. Claro que eu guardava o papel do Bogart para mim. Eu era magricela, e apesar de magricela eu era metido a machão e sentimental, como o Bogart. Eu só não tinha aquele mel que ele usava com a Lauren Bacal, mas eu sabia que isso era só um detalhe. Eu pensava que era apenas questão de treino, pois quando eu ficasse mais velho a coisa viria naturalmente. Eu tinha até  um amigo negão, o que não é nada demais. No subúrbio do Rio de Janeiro todo mundo tem pelo menos dois amigos negões. Ele ficava aguentando minhas bebedeiras  até de madrugada. Eu pedia sempre para ele, toca aquela. E em vez de um “As time goes by”, o que sempre saia do violão do Sam era um Chico Buarque. Os porres geralmente eram por conta de alguma atriz que não queria se encaixar no papel que eu criara especialmente para ela. 


Geralmente, eu não era chegado em mulheres do tipo da Ingrid Bergman ou Barbara Stanwick. Muito finas, muito sofisticadas, eu até chegava a cogitar que elas tinham sido feitas mesmo para o Cary Grant – mas obviamente, na época, eu não ficava por aí dizendo essas coisas. Eu nem saberia o que dizer para uma mulher assim. Gostava das barraqueiras, das ciumentas, das possessivas, das mulheres que pudessem ter algum vínculo metafísico com o subúrbio. Tipo... a Elizabeth Taylor em Who’s afraid of Virginia Wolf?, ou o que por tabela seria a  Gene Tierney em Leave Her to Heaven.  Com elas eu treinava meu Humphrey Bogart. Eu as chamava de angel e precious  com um Gauloise no canto da boca – nessa época eu já era professor e entre uma aula e outra, eu fumava quase um maço de Malboro por dia. Elas não entendiam nada e me achavam um cara meio maluco.  


Depois eu acabei mudando de bairro e me juntei com uma turma mais prosaica. Éramos eu, Owen Wilson e o Adrian Brondi. Os tipos gostavam de fazer poesia e fumar uns negócios. Eu não. Eu só lia, passava o dia inteiro lendo, assistindo filmes,  e as vezes escrevendo ficção. A turma em que eles andavam era meio chata. Um bando de garotos e garotas metidos a intelectuais que ficava lendo Ricoeur, Queneau e Holderin, achando o máximo comunicar coisas que ninguém entendia.  Eu estava ali junto com eles, mas no fundo eu os via como num trailer de filme do Billy Wilder.
Numa determinada fase da minha vida, passei por um dilema terrível: houve uma mulher de quem gostei muito, a Anita Ekberg. Era mais velha. Um colosso: aprendi muitas coisas com ela. Mas com o tempo, não apenas a diferença de idade, os peitos também foram pesando. Além do mais,  essa coisa de mulher ficar perguntando umas 180 vezes por semana  se você a ama, começa a aborrecer. No fundo, eu achei que ela ia ser mais feliz sozinha, procurando sua vida, preferia ela como amiga a amante. Enfim, mesmo que as vezes baixasse um espírito de Doris Day nela, eu já estava em outra. Era um amor de pessoa, mas de uma mulher chata é melhor se separar.
Minha primeira grande paixão, paixão de verdade, aconteceu nessa fase da minha vida. E foi traumática. Não era bem uma namorada, pois eu tinha uma namoradinha. Ela era minha amante. Passamos por todas as fases da paixão:  encontros clandestinos pelas tarde, telefonemas afobados, cartas assinadas com um “Eu”.  Quando estávamos juntos eu imitava atores famosos, Karloff, Gary Cooper e o James Stewart. Ela imitava atrizes de filme B fazendo strip-tease.  E cheguei a bater com a cabeça quando vi que tudo estava acabado, mas eu sabia que não havia o que fazer. Eu não era nada, mas na época de jovem imaturo eu ainda acreditei que pudesse bater o Blue Eyes e tomar de assalto o coração daquela indomável Ava Garner. Pura ilusão pois ele devia cantar no ouvidinho dela. O que me magoou de verdade foi a frase que ela soltou nos jornais após uma das muitas brigas com Sinatra: “Éramos fantásticos na cama, mas as brigas começavam a caminho do bidê.” Isso ela disse quando nos separamos!  Depois foi para o New York Times dizer que isso era coisa do Sinatra. Doeu.
O que eu quero dizer é que não é nada bom querer ser o Bogart. O Frank Sinatra quis ardentemente  e se deu mal. Assim como eu a perdi para ele, ele a perdeu para um troureiro espanhol, desses que usam umas calças colantes e ficam rebolando no meio da arena. Esse negócio de querer ser quem não se pode não dá certo. Nunca dá.
Música do dia. Concierto de Aranjuez, Lado A, Faixa 1. Miles Davis. Scketches of Spain. 


(Des) proposições para 2012

Desviar-me, desmemorializar-me, desvelar-me, desarticular-me, desmobilizar-me, descer-me, desvestir-me, desusar-me, descansar-me, desvencilhar-me, descinformar-me, desandar-me, desencaixar-me, desencantar-me, descarar-me, desncardir-me, descontratar-me, descompletar-me, desglobalizar-me, desencolher-me, desequeilibrar-me, desmemorializar-me, desvelar-me, desengordurar-me, desenfeitar-me, desengajar-me, desengarrafar-me, desprometer-me, desengomar-me, desinfetar-me, desalfabetizar-me, desalfabetagamametizar-me, dessomatizar-me, desenlatar-me, desrotular-me, desenodoar-me, desblogar-me, desertar-me, desenrugar-me, desequilibrar-me, desenrascar-me, desenbebedar-me, desentoar-me, desdesentortar-me, deslumbrar-me, desempenhar-me, deletar-me, desorbitar-me, destilar-me, desmoralizar-me, desferir-me, desideratar-me, desgrudar-me, desinflacionar-me, desimpedir-me, designar-me, descasar-me, despatriarcalizar-me, desirmanar-me, desenveredar-me, desvendar-me, desconflituar-me, desinteressar-me, descolorir-me, desenraizar-me, desenfadar-me desencasquetar-me, descrever-me, desler-me, desescutar-me, desconversar-me, desequilibrar-me, despressionar-me, desempregar-me, desvencilhar-me, desintoxicar-me, deslizar-me, desafiar-me, desfiar-me, desencontrar-me desabilitar-me, desenganar-me, desalmar-me, desncardir-me, descontratar-me, descompletar-me, desendividar-me, desglobalizar-me, desencolher-me, desendividar-me, desenfadar-me desencasquetar-me, descrever-me, desler-me, desescutar-me, desconversar-me, destravancar-me, desmemorializar-me...

Nó Górdio do Ed Nódio

Matarás teu pai, de quem odeias o braço hercúleo. Profanarás o íntimo colo da tua mãe, de quem arrancarás o útero. Devorarás o próximo, embora a fome não te roa o estômago. Gargalharás e dançarás sobre os ossos do patriarca cuja desgraça maior terá sido a de ter gerado - a ti, filho das trevas.

Nota: Por falar em Moçambique e em Nós Gordios, o Ednodio Quintero é um escritor venezuelano muito pouco conhecido no Brasil. Nasceu em Las Mesitas (Trujillo), um lugar nos cafundós dos judas dos Andes venezulanos. Tem uma penca de livros publicados. Tem uma penca de frases de efeito  - - como esta acima - - espalhadas em contos que andam com um pé fora outro dentro do chamado realismo mágico. 

Nota 2: Nunca ouvi falar do cidadão que segura o livro de Ednodio, na foto acima. Lembro-me apenas que quando eu servia mesas num café de Port Bou, encontrei um caderno de apontamentos com letra miúda e frases sem sentido algum. O caderno pertencia a este senhor aí da foto, que o esquecera sobre a mesa. Lembro bem, jamais poderia esquecer daquele rosto, apesar de que à época ser mais magro e ter mais cabelos. Neste dia, minutos antes, ele conversava com um senhor bem mais velho que ele, com entradas bem vincadas no couro cabeludo e de quem apenas sei seu nome, Marcel Duchamps, pelo cartão de crédito do Banco BBV usado para pagar a conta de dois cafés e duas doses de Domecq Carlos I Imperial. Havia um título nas páginas do caderno: Laberinto de Odradeks. E na terceira página do caderno, à minha frente, ao lado do nome Ednodio, atravessado por um risco, há o nome de Hermann Kromberg.

Who's Camus Anyway

Filme Who’s Camus Anyway é um filme surpreendente.  Retrata a dinâmica de uma comunidade de jovens que vivem da árdua tarefa de fazer cinema. O filme se passa nos últimos cinco dias de filmagem que o grupo de estudantes universitários – orientados por um professor - leva adiante. A estória filmada trata de um estudante que é levado a assassinar uma velha pelo simples prazer de matar. A referência implícita a Raskolnikov passa por nossas cabeças, evidentemente, mas não deixa muitas raízes por não importar a estória contada em si, mas a preparação de toda a produção em torno ao filme.

O diretor Mitsuo Anagimachi mostrou sem dúvida o totem de uma experiência insular única que combina nuances das pequenas perversidades da vida acadêmica com a experiência individual dos que trabalham na industria cinematográfica. As experiências individuais acabam interferindo na dinâmica do filme. Matsukawa é um jovem diretor que respira cinema, mas sua doce e sufocante namorada, que não entende nada de cinema, apenas se preocupa com uma coisa: casar. Ele se nega, pois só se casaria depois de realizar uma grande obra. Yukari, a namorada obsessiva, diz que se o pegar com outra mulher o mata, e chega a aventar a hipótese de colocar seu esperma num banco – e ele diga-se de passagem aceita com a condição de que ela lhe dê o dinheiro para comprar um Final Cut Pro, um desses softwares de edição da vida. Os companheiros de filmagem não levam a relação a sério, primeiro por que vêem Matsukawa não como um exemplo maior de fidelidade, e segundo por que enxergam a Yukari como uma cópia xerox de Isabelle Adjani em The Story of Adele H.. O professor Najako, que presta orientação aos pupilos, é um personagem à parte. Fascinado por uma jovem estudante, a quem vê passar todos os dias, é apelidado de Aschenbach pelos alunos, o personagem de Morte em Veneza. Aliás o professor, em sua crise da meia idade, protagoniza uma cena da tão ou mais humilhante que a vivida por Aschenbach no filme de Visconti. Sabendo que um de seus estudantes pendurados por nota, é amigo da menina, manipula para que o rapaz propicie um almoço entre os dois, professor e aluna. No final do almoço, após ser sutilmente humilhado pelo casal – que sugere inclusive um ménage à trois, desde que pudessem ganahar uma bolsa de estudos para Paris - , volta para seu escritório dá pra beber.

O filme nos mostra como um filme de baixo orçamento é feito. Tudo começa pelo orçamento, pela seleção dos atores, pelo set mais barato de filmagem, pelo cenário mais barato...enfim, começa não da estória em si, mas das limitações materiais impostas à produção. É como passar a assistir filmes com essa dimensão que nos daria uma noção muito mais real de como se faz cinema – e que os americanos inverteram em nossas cabeças.

Cada cena do filme parece ter sido pensada cuidadosamente, de forma que nunca se sabe ao certo se uma sequência que começa é do filme em si ou do filme sobre o filme. A própria trilha sonora, dando contorno e impacto a determinadas cenas mais dramáticas, foi capaz de evidenciar o cunho emocional de determiandas cenas. No fundo, as estórias que se imbricam umas com as outras e com a própria estória do filme a ser filmado tornam todo o filme de Mitsuo Anagimachi uma grande tapeçaria de Robert Altman. O hiperrealismo do estranho é de grande importância, por exemplo no impacto emocional causado no protagonista após cada cena em que se entrega de corpo e alma ao papel do personagem encarnado, arriscando perder todo o senso de realidade – coisa pra lá de Stanislavski! É como se os personagens do filme - e do filme filmado – só pudessem sentir a partir do princípio que regia a razão de Meursault, a partir apenas de uma realidade física em si. Daí que nas últimas impressionantes sequências do filme, já não se sabe se estamos assistindo a cena final do filme filmado ou do filme narrado. Por isso, muito bem sacadaa última cena, onde todo o cast limpa o sangue do tapete da sala....

Kazuo Ishiguro: Cisma de coisas arrumadas.


Música e literatura se encontram indissoluvelmente juntas em Nocturnes, uma coleção de cinco grandes contos de Kazuo Ishiguro. A música na literatura se faz presente em clássicos como em Las Ménades e em El Perseguidor de Cortázar, onde pode-se ouvir claramente Stravinsky e Charlie Parker; ou em muitas estórias de Machado de Assis, que sem certo desdém trata o maxixe e a polca como uma mesmice que nos atropela, mostrando-nos diante do espelho uma imagem senão incômoda, ao menos aflitiva. Se para este é manobra interna de desvio, para outros como Haruki Murakami, Cortázar, Borges e o próprio Ishiguro, a música faz parte do próprio enredo de suas estórias.
Em After Dark, por exemplo, uma das últimas novelas ‘cult’ do ‘cult’ Haruki Murakami, a música perpassa toda a estória, não apenas como um acessório, mas como um condicionante de Mari, uma jovem que ao perder o último trem de Tóquio, tem de passar a noite no bairro boêmio. Sem grande pretensões, Mari pensa em passar a noite num restaurane chamado Denny’s tomando café e lendo seu livro. Ao redor da meia-noite, um músico chamado Takahashi, a quem Mari vira apenas uma vez, quando Takahashi tentara cantar sua irmã Eri, modelo profissional. Esta, enquanto a irmã vaga pelas noite de Tóquio, encontra-se dormindo em seu apartamento. Dentro do sono, estranhos sonhos. Takahashi vai ensaiar com seu grupo, mas promete voltar ao restaurante. Em sua ausência muitas coisas inusitadas acontecem. Kaoru, uma amiga de Takahashi e gerente de um hotel de viração, aparece subitamente pedindo a Mari – quem fala mandarim – que vá com ela até o hotel para traduzir o diálogo com uma prostituta chinesa, vítima de violência de gênero.

Os ambientes e situações que Mari percorre são acompanhados pelo leitor como quem assite um filme, ou como quem está imediatamente atrás de uma câmera onipresente. Além disso, para cada ambiente há uma trilha sonora que quase antecipa o estado anímico da cena que será narrada.

A mesma intervenção melodiosa aparece em diversas circunstâncias nos contos de Ishiguro que, ao contrário do anódino desfecho da citada novela de Murakami, procura na anormalidade e na falta de solução atos definidos. Ishiguro consegue galvanizar em cinco contos, com uma linguagem até um tanto tímida, sem grandes inovações experimentais, temas que exigem do leitor atenção: a promessa da juventude que se perde; o mistério assombroso e decepcionante da alteridade; e os finais ambíguos e sem catarse alguma. Desde o primeiro até o último conto há sempre um sutil jogo de repetições com uma espécie de triângulo, mesmo no último conto onde há apenas dois personagens, um jovem violoncelista e Eloise McCormack, uma misteriosa tutora, mas a sombra do antigo tutor Petrovic, e de Peter, noivo de Eloise, pairam sobre suas cabeças.

Tudo é muito arrumadinho nos contos de Ishiguro. Nota-se que Ishiguro, ou a persona que Ishiguro usa para narrar estas cinco estórias é um tanto conservadora. Bem se percebe que os personagens são sempre pessoas cultas, envolvidas no universo musical, clássico ou popular. Sem alusão a temas conflitivos, o narrador ou até mesmo os protagonistas desprendem a todo o momento uma aborrecida sensação de sinceridade.

Música do dia: 'Five Spot After Dark'  - Curtis Fuller's Quintet - From the album 'Blues-Ette' recorded in 1959. Curtis Fuller, trombone; Benny Golson, tenor sax; Tommy Flanagan, piano; Jimmy Garrison, bass.

Caro Francis

“Caro Francis” é um documentário sobre o jornalista Franz Paulo Trannin Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. Se você pensa em encontrar, nesse documentário, respostas para a explicação sobre o sucesso de Paulo Francis, esqueça. O documentário feito por Nelson Hoineff, o mesmo do famoso Documento Especial na antiga TV Manchete, tenta desvelar ainda mais o lado polêmico de Francis, tanto quanto tenta reforçar a veia transgressora do jornalista que um dia escreveu isso.

A imagem do Francis já velho no Manhattan Connection era uma caricatura gasta do personagem que ele próprio criou para si. Já em meados dos anos 90, Francis passava a imagem de um homem inteligente, arrogante e botocudamente grosseiro. Mas se você pensa que foi sempre assim, esta redondamente certo. O documentário mostra bem, em termos próprios como desde as suas polêmicas críticas teatrais e insultos a Paulo Autran e Tônia Carreiro, até a sua saida do Pasquim, Francis já alimentava essa imagem pública de polemista nem sempre elegante mas incrivelmente engraçado. E um dos seus grandes méritos foi exatamente o de se tornar um fenômeno de comunicação, tanto na palavras escrita como na palavra falada e televisionada, transplantando de um meio para o outro suas características críticas e méritos intelectuais, sempre com uma boa dose bufa.

Se no ambiente público era esse tipo discutível, no ambiente privado, entre amigos, não havia ressalvas. Todos tinham sempre um causo interessantissimo e nunca repetido para contar sobre Francis. Jaguar, se não me engano, certa vez disse que detestava discutir com Francis pois ele sempre escolhia como cenário um taxi sem destino fixo, o que o levava - a Jaguar - sempre a se desconcentrar do bate-boca e desesperar-se com o taxímentro. Lucas Mendes, no documentário, dizendo que certa vez Francis termina um texto, levanta o papel da máquina de escrever com virulência e se vangloria: “nenhum advérbio de modo!” Ou o ataque ao amigo Fausto Wolff, dizendo que um dia escreveria um livro sobre todas as suas ignorâncias. Ou seja, uma figura impagável e divertidíssima. Ou seja, melhorando essa frase, uma figura impagável, por ser cara; incomprável por só trazer problemas; e invendável pois a partir dos anos 90 seu tipo de jornalismo pitoresco, impressionista e irresponsável – criado prêt-à-porter para a televisão - passou a ser um problema para as redações e uma impossibilidade para os canais de TV aberta. Prova disso é que hoje em dia, figuras como Reynaldo Azevedo e Diogo Mainardi transcencem ao espaço das colunas escritas apenas para o universo dos blogues onde encontram o feedback apenas de prosélitos.

O sinal desses tempos que vivemos hoje, é bem mostrado no final do documentários, com a saída de Francis da Folha de São Paulo, sua ida para o Manhattan Connection e sua polêmica com o antigo presidente da Petrobrás Joel Rennó, quando numa edição do programa Manhattan connection, Francis afirmou que os diretores da empresa tinham dinheiro na Suíça, formando “a maior quadrilha que já existiu no Brasil”. Uma absoluta inverdade comparado com os padrões de tamanho, organização e eficiência dos esquemas de corrupção atuais. Mas merecidamente ou não, nesse caso específico, foi processado por tratar uma das empresar mais fortes do Estado brasileiro, bem como a seus gestores, como quem sempre se habituou a tratar a esqueda. E não se deu bem.
O documentário conta ainda com uma irrelevante surreal carta lida pela viúva, sobre a morte de sua gata de estimação, e uma “bombástica” acusação de negligência médica no caso de seu infarte, tratado como bursite ou algo que o valha por insignificante que fosse. Felizmente a viúva trata logo de desmentir o terrível e melancólico fechamento-Conrad Murray-Michael Jackson que Diogo Mainardi calhordamente tenta, com a beneplácito de edição do diretor, imprimir no final. Isso tudo ao som de Wagner.

Música do dia. A Pipa do Vovô não sobe mais. Marchinha de Carnaval.

Ferocidade como entretenimento


A cada vez que assisto um desses filmes coreanos me sinto um tanto constrangido. Perdi muito tempo assistindo a filmes americanos. Essa é a verdade. The Chaser, primeiro longa-metragem Na Hong-jin, é mais um dos grandes filmes da lavra coreana.

Neste  país a polícia é mal paga, corrupta e violenta. Não, não, as semelhanças são apenas uma ilusão, pois estou falando da Coréia do Sul. Num ambiente onde campeia a violência e a corrupção, Joong-ho, o protagonista, tira partido. Para seus ex-companheiros de farda ele é um homem de moral duvidosa. Ex-detetive que virou cafetão por problemas financeiros, começa a se irritar com o despareceimento de suas “funcionárias”. Ao tentar rastrear o paradeiro das moças, descobre que todas as meninas tinham sido contratadas sequencialmente por um único cliente, e que tinham sido assassinadas. Ele então forja um plano para pegar o assassino.  Joong-ho consegue capturar o assassino e entregá-lo à polícia. Mesmo confessando os crimes, como não há corpos, não há provas materiais contra o assassino, que dessa forma estará em liberdade em 24 horas. Por algum motivo que o roteiro deixa passar, Jung-ho acredita que uma de suas prostitutas ainda está viva. E aí sim começa a caçada, não do culpado mas dos corpos que devem ser encontrados em menos de 24 horas.

Essa corrida contra o tempo dá o tom do excelente filme, até o momento da inversão do plot. O prazo se esgota. A polícia, pressionada pelo governador, num momento de intensa pressão pelos métodos brutais empregados, precisa liberar Yeong-min. A procuradoria sugere que um suspeito que confessa sobre tortura pouco melhor a imagem da polícia. Para evitar o escândalo político, o governador decide pela liberação do suposto assassino. Enquanto isso, é pedida a prisão de Joong-ho como o bode expiatório de toda a crise. Apesar de algemando, o ex-policial escapa para procurar Mi-jin, uma de suas meninas que suspeita ainda estar viva.

A intuição de Joong-ho é correta. Mi-jin de fato ainda está viva, tentando se libertar das cordas que a amarram em meio aos corpos das outras 11 mulheres assassinadas, escondidas na casa do assassino. Gravemente ferida porém lúcida, Mi-jin escapa e pede auxílio numa loja das redondezas. Tenta telefonar. Enquanto isso o assassino, já liberado, prestes a chegar a casa, decide comprar cigarros exatamente na lojinha das redondezas... Joong-ho chega tarde demais.

O plot se inverte novamente. Joong-ho passa a tentar encontrar novamente o assassino. Desesperado com a morte do que tudo indica ser mais que sua ‘funcionária’, o ex-policial sente-se derrotado. Vai até a igreja local e percebe que a imagem do Cristo crucificado na fachada, era parecida às imagens que viu por trás do papel de parece do quarto onde Yeong-min esteve hospedado. Consultando o diácono, descobre que o assistente da obre da igreja estaa hosedado na casa de um de seus sectos. Joong-ho segue para lá. Quando chega decide não tocar a campainha, mas usar um molho de chaves que retirara do bolso de Yeong-min. Quando entra, depara-se com Yeong-min.

É bastante certeiro que numa sociedade onde campeia a crueza da violência física e sangrenta, a questão da corrupção e do funcionamento do dinheiro sujeita os comportamentos e os sentimentos à sua força mortiz. Neste fimle especificamente, descontados o sangue derramando e a brutalidade nos meios de liquidação dos personagens, o protagonista põe em cena toda a sociedade. Apesar de alguns pequenos furos de roteiro, o filme mostra com certa ferocidade um certo espetáculo de entretenimento onde a noção e o sentido do absurdo se tornam cada vez mais lugar-comum.