Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Kazuo Ishiguro: Cisma de coisas arrumadas.
Música e literatura se encontram indissoluvelmente juntas em Nocturnes, uma coleção de cinco grandes contos de Kazuo Ishiguro. A música na literatura se faz presente em clássicos como em Las Ménades e em El Perseguidor de Cortázar, onde pode-se ouvir claramente Stravinsky e Charlie Parker; ou em muitas estórias de Machado de Assis, que sem certo desdém trata o maxixe e a polca como uma mesmice que nos atropela, mostrando-nos diante do espelho uma imagem senão incômoda, ao menos aflitiva. Se para este é manobra interna de desvio, para outros como Haruki Murakami, Cortázar, Borges e o próprio Ishiguro, a música faz parte do próprio enredo de suas estórias.
Em After Dark, por exemplo, uma das últimas novelas ‘cult’ do ‘cult’ Haruki Murakami, a música perpassa toda a estória, não apenas como um acessório, mas como um condicionante de Mari, uma jovem que ao perder o último trem de Tóquio, tem de passar a noite no bairro boêmio. Sem grande pretensões, Mari pensa em passar a noite num restaurane chamado Denny’s tomando café e lendo seu livro. Ao redor da meia-noite, um músico chamado Takahashi, a quem Mari vira apenas uma vez, quando Takahashi tentara cantar sua irmã Eri, modelo profissional. Esta, enquanto a irmã vaga pelas noite de Tóquio, encontra-se dormindo em seu apartamento. Dentro do sono, estranhos sonhos. Takahashi vai ensaiar com seu grupo, mas promete voltar ao restaurante. Em sua ausência muitas coisas inusitadas acontecem. Kaoru, uma amiga de Takahashi e gerente de um hotel de viração, aparece subitamente pedindo a Mari – quem fala mandarim – que vá com ela até o hotel para traduzir o diálogo com uma prostituta chinesa, vítima de violência de gênero.
Os ambientes e situações que Mari percorre são acompanhados pelo leitor como quem assite um filme, ou como quem está imediatamente atrás de uma câmera onipresente. Além disso, para cada ambiente há uma trilha sonora que quase antecipa o estado anímico da cena que será narrada.
A mesma intervenção melodiosa aparece em diversas circunstâncias nos contos de Ishiguro que, ao contrário do anódino desfecho da citada novela de Murakami, procura na anormalidade e na falta de solução atos definidos. Ishiguro consegue galvanizar em cinco contos, com uma linguagem até um tanto tímida, sem grandes inovações experimentais, temas que exigem do leitor atenção: a promessa da juventude que se perde; o mistério assombroso e decepcionante da alteridade; e os finais ambíguos e sem catarse alguma. Desde o primeiro até o último conto há sempre um sutil jogo de repetições com uma espécie de triângulo, mesmo no último conto onde há apenas dois personagens, um jovem violoncelista e Eloise McCormack, uma misteriosa tutora, mas a sombra do antigo tutor Petrovic, e de Peter, noivo de Eloise, pairam sobre suas cabeças.
Tudo é muito arrumadinho nos contos de Ishiguro. Nota-se que Ishiguro, ou a persona que Ishiguro usa para narrar estas cinco estórias é um tanto conservadora. Bem se percebe que os personagens são sempre pessoas cultas, envolvidas no universo musical, clássico ou popular. Sem alusão a temas conflitivos, o narrador ou até mesmo os protagonistas desprendem a todo o momento uma aborrecida sensação de sinceridade.
Música do dia: 'Five Spot After Dark' - Curtis Fuller's Quintet - From the album 'Blues-Ette' recorded in 1959. Curtis Fuller, trombone; Benny Golson, tenor sax; Tommy Flanagan, piano; Jimmy Garrison, bass.
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