La Fleur du Mal

La Fleur du Mal é um filme de Claude Chabrol (2002) que explora ambição e corrupção num molde de romance policial, com um final de resultado duvidoso. Mas, pode parecer antagônico, apesar de tudo, um ótimo filme.

François Vasseur retorna de anos de estudos em Chicago para sua casa em Bourdaux, e percebe que desde sua partida pouca coisa mudou. Seu pai continua administrando sua farmácia e sua madrasta, Anne Charpin-Vasseur, decide concorrer às eleições municipais.

Vista de fora, uma família repeitável. Anne Charpin-Vasseuré viúva com uma filha e uma tia. Gérard Vasseur é igualmente viúvo, com um filho pródigo que estuda em Chigago. Ambos viúvos e desepedidos. Michèle e François são jovens e com coisas mal resolvidas no passado, portanto logo quando chega, François já reiniciam a relação adormecida com sua meia irmã, Michèle, sob a proteção ou negligência da velha tia de Michèle, Line. Incesto? Na cabeça de Nelson Rodrigues, Michèle e François estariam num joguinho de amarelinha.

Enfim, vista de fora, uma família repeitável. Mas, como sempre, não é bem assim, não. Por trás desta fotografia de uma moderna família burguesa há esqueletos bem guardados no armário que no decorrer da narrativa a velha tia de Michèle, vai desvendando em fragmentos de flashbacks que remontam a Vichy e ao assassinato do pai.

Para arruinar a trajetória política de Anne, alguém circula um panfleto indicando um escândalo familiar dos bravos. Tia Line estará arrependida de ter matado seu pai, um simpatizante Nazi, que fora responsável pela morte de seu único irmão? Havia sido prudente que Anne e Gérard tivessem se casado tão rápido após a morte de ambos consortes?

Estas são apenas duas perguntas chaves com que Chabrol abre La Fleur du Mal, seu filme de número, sei lá... 230... 395... Fato é que aos qause oitenta anos, o homem anda afiado, fazendo filmes tão bons quanto aqueles da New Wave. Nomeadamente, Le Beau Serge, Les Cousin, La Femme infidèle, La Ceremonie, La Rupture, Les Biches.

Todos os elementos de um filme policial estão ai: a chantagem, uma carta, um autor desconhecido, uma mulher política e ambiciosa, uma velha guardiã de segredos, dois jovens cheios de tesão... mas fica faltando algo no final. O climax da narrativa é meio fraco, uma espécie de vício cartesiano impede que a cena da morte acidental do padrasto flua. Gérard Vasseur, após a vitória política da consorte, chega a casa só e embiritado. Cabeça inchada, libido solta, decide molestar a enteada. Esta saca de um abajour e dá-lhe uma p... na cabeça do manguaça. Este cai no chão morto. Michèle, deseperada, corre para pedir ajuda a tia. Esta, por sua vez, ajuda à sobrinha a ocultar o cadáver no quarto de cima – a cena das duas arrastando o cadáver escada acima, não é original, não é sequer verossimil, mas guarda algo de cômico, sem dúvida. Daí para os dez minutos finais, o filme se perde num non-sense absoluto. O filho chega e recebe a morte do pai como se nada tivesse acontecido, a velha decide assumir a cupla do assassinato, quando a polícia chegar, enquanto os convivas, festejando a vitória de Anne chegam aos gritos de alegria.

Música do dia. Cavalo Ferro. Ednardo. Disco: Meu Corpo Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem

Mirror

Tarkovsky é, como num sobrescrito de João Cabral, simultaneamente, a dureza e a fruição contidas na pedra e na poesia... Mirror é um filme de 1975 e pelo que dizem, o mais autobiográfico desse cineasta que conheço pouco, aliás. Aliás conheço pouco do cinema russo, pois tenho muita dificuldade em acompanhar um filme de onde me escapam as nuances da língua, o oceano de detalhes que ela agrega à imagem em movimento, seu peso, sua riqueza inesgotável, sua força.

O filme não tem um roteiro aparente. Aliás, não recomendo este filme para os habituados ao cinema padrão calcado nas poucas noções de Syd Field e muito voluntarismo. Mirror não esta pautado numa história linear, na ação,nos personagens de contorno digerível e de final redondo, conclusivo e satisfatório. Ou seja, um filme para quem aprecia poesia. Um filme para quem aprecia a poesia sem palavras. Na razão inversa da poesia contruida de images, nesse filme, a poesia surge das palavras.

Todo ele é recortado por reminiscências, imagens oníricas e a costura recorrente dos poemas de seu pai, o poeta Arseni Tarkovski. Em Mirror o narrador vê sua mulher como a continuação de sua mãe, porque os erros se repetem. A repetição dos erros pessoais é uma lei, e a experiência não se transmite. Sabe-se que nele interagem três tempos. Um tempo pretérito pré-guerra, provavelmente ao redor dos anos 30, um tempo que se passa na Guerra, e um tempo do pós-guerra, já nos anos 1960. Além disso o filme se divide em quinze segmentos.

Da colcha de retalhos, fiz um exercício execrável. Tentei alinhavar as 15 sequências do filme. Eu sei que ao racionalizá-lo cometo algo bárbaro...
i.
O filme começa com uma sequência de um jovem num treinamento com uma fonoaudióloga, já numa insinuação de que a falta de palavras contidas na frase "I can speak," revela uma quebra, ausência ou a prescindívelnecessidade de uma narrativa linear, já que ao longo da história tudo se revela como um sonho, uma espécie de memória fragmentada do passado. (cenas em preto e branco)
Música: J. S. Bach, Das Orgelbüchlein No. 16, "Das alte Jahr vergangen ist."

ii.
Pré-guerra nos anos 30 (cenas coloridas)
Maria está sentada numa cerca de madeira. Olha o horizonte. Está de costas para a câmera. Fuma. Um homem se aproxima. O narrador anuncia em off que alí naquela casa costumava a passar as férias de verão com a família. O homem que se aproxima é um médico. Pede um cigarro, senta na cerca junto a Maria e emenda uma conversa um tanto aleatória. A cerca se rompe e os dois caem no chão. O homem começa a rir do absurdo daquela situação o que leva Maria a desconfiar de sua sanidade. Ela cita o Ward 6, uma estória de Checkov, onde um médico, Ragin, investiga as causas da loucura na própria prática violenta de tratar a loucura. Na verdade, ela pergunta indiretamente se o médico é são. Ele rebate dizendo que Checkov inventou aquilo tudo, implicando que o sofrimento de Ragin e a ambição de Khobotov, em provar que o primeiro sofria de distúrbios mentais era pura ficcção. O médico então a deixa e Maria o vê partir.

iii. pre-guerra
Noite. Interior: uma criança na cama. Maria lava seu cabelo com a ajuda de seu marido. Ela se encaminha para o espelho e se vê como uma ansiã.

iv.
O telephone toca. A camera focaliza um apartamento na cidade. Alexei conversa com sua mãe. Liza, com quem ela trabalhou na casa editorial acaba de morrer.

v.
pre-guerra
Maria tem pressa. Sob a chuva, caminha para a editorta para conferir as provas de um erro que havia cometido. Em sua mesa ela conversa com sua colega Liza, a quem confidencia que suspeita de ter cometido um erro e se riem do episódio. Nesse momento, chega um homem, supostamente o supervisor. Maria se levanta e vai tomar um banho. Antes de partir, Liza diz a Maria que esta se parece com Maria Timofeyeva, irmã do capitão Lebyadkin, dos Demônios de Dostoievski.

Continua...

O Homem do Ano


Talvez pouca gente tenha percebido que Érica (viúva de Suel), depois de ir viver com Máiquel (assassino de Suel), ao abandoná-lo pela primeira vez deixa na mesa da sala, sobre o bilhete de despedida, uma capa de dvd do filme Wild at Heart - capa esta que é filmada de cabeça para baixo. Ninguém precisa saber que Nicolas Cage sempre teve uma fixação mórbida por Elvis. Disso todo mundo sabe. Chegou a casar com a filha do homem. Mas isso é o que menos importa. No filme, Sailor e Lula, fogem da perseguição da mãe dela e iniciam uma viagem pelo sul dos Estados Unidos. No bilhete, Érica deixa claro que Cledir, esposa de Máiquel, tem de sair da vida deles. Como? Se você já leu Rubão Fonseca, suspeitará como Cledir desaparece da vida dos dois.

O Homem do Ano é um filme bom, sem intelectualismos. Funciona na tela. Talvez melhor que o livro o Matador, de Patricia Melo. Talvez por ter roteiro chancelado pelo velho Rubem Fonseca. Talvez. O filme tenta mostrar de maneira didática a realidade das milícias, da privatização da segurança pública, dos currais eleitorais, da irracionalidade da violência, e da ascenção de um Zé Mané burro, psicótico e semi-analfabeto à categoria de anti-herói. Até aí, tudo bem, um filme convincente. O problema é que com esses elementos, podia ter sido um filme perturbador, mas não foi, pois a narrativa original do livro é muito linear - isso eu já tinha percebido em outros dois livros de Patricia Melo, Elogio da Mentira e Inferno.

Entretanto, o roteiro é bem amarrado e a atuação de Murilo Benício e Claudia Abreu exemplares. Máiquel, personagem interpretado por Benício, é um camarada atormentado com sua Moira. Tenta mudar seu destino o tempo todo, mas após ter tido o cabelo descolorado, cada vez se afunda mais e mais na sua sina de matador. Aliás, Murilo Benício, incorporou perfeitamente o personagem. Abstêmio com Síndrome de Tourette, anti-evangélico, cabelo oxigenado, moralista e bebedor de coca-cola quente - Rubão só bebe Coca quente - , com um porco de estimação no sobrado de Caxias e desovando seus corpos em Campos Elísios - pelo menos pelas cenas externas da passarela da estação de trem, e pelo lugar da desova ali perto da parte de trás da Reduc em Jardim Primavera. Enfim, Máiquel é tipo complexo, contraditório e irracional. Porém, me passou a impressão de um criminoso dos anos 70.

Pois no fundo, acho que falar tanto de violência, arrancá-la das páginas do O Dia e do Extra e estilizá-la na tela, banalizou tudo. Tudo mesmo. Quando Fonseca escrevia sobre isso nos anos 70, era tudo ainda meio pitoresco. A polícia era pública, a segurança privada, mas com outro nome: milícia tinha nome de Scuderie Le Cocq, Mariel Moryscotte e Mão Branca. E Hannah Arendt não estava brincando quando em "Eichmann em Jerusalém" cunhou o conceito de Banalidade do Mal. Pois veja bem, dê uma arma e poder a um bunda mole, coloque-o agindo individualmente dentro das regras corrompidas e imorais, mas impedindo-o que racionalize sobre seus atos, e você terá o superlativo de um Máiquel, ou seja, um Eichmann. Ou melhor, o Minimo Múltiplo Comum do Eichmann, o Máiquel. A morte hoje já não é mais como aquela da Patrulha da Cidade, da Rádio Tupi, apesar de mórbida, era divertida. Hoje não. Banalizou tudo. Tudo mesmo. Perdeu a graça.

Mas voltando ao filme, a 'sacada' rapidíssima do filme do David Lynch, sobre o bilhete de despedida, naquele sobrado da Baixada, ficaria totalmente sem sentido - já que Máiquel não fala inglês e mal lê português - se o Herique Fonseca não tivesse dado à cena a velocidade que merece tonando o detalhe imperceptível quase imperceptível. Talvez pouca gente tenha percebido. Se não percebeu o detalhe, deixa estar. Melhor assim. Pois os diretor contornou bem o fato de que uma das melhores coisas na contrução psicológica dos personagens criados por seu pai, Rubem Fonseca, é a imersão do personagem na sua circunstância social. Imagina se alguém mais percebe esse detalhe...um cara suburbano, da Baixada, ou uma namorada evangélica e viciada em Almanaque Abril assitindo filme de David Lynch... puf...

http://ilusaodasemelhanca.blogspot.com/2006/04/melhores-frases-do-rubem-fonseca.html

Cabaret Mineiro

A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...

De todos os poemas inesquecíveis do Drummond, eu poderia citar vários: Poema das sete faces (Vai, Carlos - seu imprestável e biriteiro! Ser gauche na vida), Congresso Internacional do Medo, Atriz (sosbre a morte da Cacilda Becker), Procura da Poesia...
Mas, Cabaret Mineiro, é simples, mundano, poético e sem firulas. So o Drummond poderia, na equação perfeita que soma William Burroughs, Herberto Helder e T. S. Eliot - dar-nos ( como diz o Alfredo Bosi ) o coeficiente de solidão.

Je t'aime John Wayne

Não sei bem se por nunca ter ido muito com a cara do Wayne, se por ter gostado muito do Auto dos Danados do Lobo Antunes, ou se por gostar do cinema francês, eu tenha curtido tanto Je t'aime John Wayne – curta metragem dirigido por Toby MacDonald e escrito por Luke Ponte, da coleção Cinema 16. É um curta ótimo. É uma paródia do filme de Jean-Luc Godard, À bout de souffle.

O ator Kris Marshall tenta ser Jean Paul Belmondo – o ator de Breathless. No filme de Godard Belmondo é Michel, um cara fora da lei que atira em dois policiais e tenta ser um espécie de Humphrey Bogart, imitando seus trejeitos e modos de falar. Fugitivo e sem dinheiro, vagando pelas ruas de Paris, pede ajuda a Patricia, sua namorada americana, estudante de jornalismo e vendedora do jornal New York Herald Tribune. Enquanto Michel pensa o tempo todo em fugir para a Itália, Patricia tem sonhos românticos e por isso o denuncia à polícia com medo que ele se fosse deixando-a grávida.

No curta de Toby MacDonald, Kris Marshall se define como Belmondo vivendo em Paris. Se vê como Belmondo desde a primeira cena, quando sonha com um beijo e é despertado pelo relógio. Na frente do espelho, escovando os dentes e fumando, se auto-define como um desviado, hipócrita, sujo, imoral e irracional. Por fim, quando se vê à frente do espelho, finalmente, como John Wayne, o telefone toca. A mensagem é uma frase de John Wayne: “Monte nessa merda de cavalo ou eu o expulsarei da cidade.” Após o bip a mensagem. É sua mãe deixando uma embaraçosa mensagem de mãe na secretária eletrônica: “Meu filhinho, tire essa mensagem da secretária. Isso é um pouco estranho.” (cena impagável). Tal como o dentista Nuno de Auto dos Danados, que na Revolução dos Cravos, prestes a fugir com a família pela fronteira da Espanha tem alucinações com o ator Edward G. Robinson. O protagonista pensa ser o ator francês Belmondo, incorporando ora sua cafajestice - de maneira engraçadíssima – ora a dureza do John Wayne.

Outra cena impagável quando ele, esperando a irmã mais nova para levá-la ao cinema, encontra-a com namorado. Quando indagado pela irmã se a mãe não lhe dissera, ele desconversa mantendo a face de durão em direção ao menino. Na saída do cinema vê um casal. O britânico acha o filme detestável. Belmondo o puxa. Olha-o de cima abaixo. Dá-lhe um soco. Vira-se para a moça e diz que ela teria de vir com ele, pois ele tem um Alfa-Romeo! A narrativa escrita não comporta o peso das imagens do filme ou a expressão do ator Marshall, com sua cara de quelônio cômicamente fumando todo o filme... enfim, um bom curta. Cowboy por cowboy sou mais o Gary Cooper em High Noon, muito mais o Clint Eastwood em Man with no Name.

Todos os Nomes



“Todos os Nomes” é um romance com cheiro de papel velho. A estória de um escriturário de cartório, um Zé, um José de nome José. Solteirão, solitário, investigativo e mais que tudo imaginativo, Sr. José é de um tipo introspectivo que para se afugentar da modorrenta monotonia de seu dia-a-dia na Conservatória Geral começa a acumular fichas com verbetes de pessoas famosas. A Conservatória Geral, como diz o nome em termos próprios, uma espécie do que se conhece no Brasil como Cartório, tem uma arquitetura idealmente similar a do centro comercial da Caverna. Tem algo a meio caminho do Panóptico de Bentham e do puxadinho de meia àgua no Amarelinho de Irajá, já que os funcionários, tal como diplomatas, adidos e outros tipos estacionados no serviço público, vivem em apartamentos funcionais, vivendas simples, rústicas, construídas no exterior, ao longo das paredes laterais. As casas dispunham de duas portas. Uma porta normal que dava para a rua e uma porta adicional que se comunica com o prédio principal, por onde os funcionários entram e pegam no batente.

Certa noite, por puro acaso, Sr. José decide entrar na nave principal – ele adquire a chave da nave principal pervertendo as regras da Conservatória. Encontra a ficha de uma mulher desconhecida e decide investigar algo mais de sua vida. Descobre que a ficha que cai-lhe nas mãos é de uma mulher de trinta e seis anos. Nos averbamentos somente constam um casamento e um divórcio. Os motivos para investigar a vida daquela mulher específica não são óbvios, mas em se tratando de um tipo de personalidade tão peculiar, não nos atrevemos a perguntar, ainda que a pergunta permaneça incomodando o leitor atento o tempo todo. Munido de dados básicos, José passa a investigar por conta própria a vida da tal mulher, abandonando as fichas das celebridades. Tal como um detetive, a investigação de José transgride as regras básicas do respeito ao anonimato da mulher, rompendo as rígidas normas da Conservatória.

O senhor José é um homem de 52 anos. Suas semelhanças com o Raimundo Silva, do História do Cerco de Lisboa, não param por ai. Se por um lado o revisor dos textos, Raimundo, decide, a partir de um NÃO adicionado no documento, mudar toda a história de Portugal, o nosso José, a seu modo, passa também a mostrar o absurdo da burocracia que nos devora lentamente, imperceptívelmente, a partir do verbete sobre a vida de uma mulher desconhecida cujo nome consta nos registros da Conservatória. Um simples verbete.

A princípio percebe-se que no trabalho, assim como na vida, José é um tipo introspectivo e solitário, com algo de crédulo. Sua submissão não é apenas à grande estrutura burocrática imposta pela Conservatória, mas a sua própria ética de trabalho: interna e vocacional. Com tal propensão, Sr. José chega a ponto de nunca ficar doente, nunca faltar e principalmente, nunca desobedecer as ordens de superiores. Ou seja, um homem que tem tudo para chegar longe, ou nunca sair do lugar, pois essa assiduidade não se traduz em adulação. Não foi o outro Chico que disse, vence na vida quem diz sim?

Tal como dito, o Sr. José, amanuense e auxiliar de escrita, parte à procura de uma mulher desconhecida de maneira peculiar. Homem das antigas, prefere começar pelas beiras, por baixo, desde o local de nascimento, passando pela escola, passando por uma madrinha ansiã. Seu roteiro de busca começa pelo endereço que consta na certidão de nascimento da mulher. Sem sucesso, vai ao endereço contido em sua ficha de dados, indaga os vizinhos sobre o possível paradeiro da antiga moradora. Chega até a madrinha da mulher desconhecida, chamada apenas "a senhora do rés-do-chão", que lhe sugere o óbvio: procurar na lista telefônica. José rejeita tal opinião e decide procurar na escola onde ela estudara.
Esse impulso incontrolável pela descoberta de algo sobre a vida da moça tira-lhe o sono, e o faz perseguir um labirinto confuso dentro e fora da sua cabeça. Certas horas Saramago faz crer que o seu protagonista sofre de alguma demência obsessiva, desfazendo-a logo, tal como Dostoievski o faz, nas páginas seguintes, por algum episódio errático e inusitado imposto pelo acaso, ou pela providência burocrática da Conservatória Geral. Faz-nos perguntar sobre onde está a anormalidade, se em nós leitores que cremos no mundo que vemos, se em José em sua busca absurda e inexplicável, ou se no mundo em que vivemos. A pergunta não é tão retórica frente as situações insólitas que cercam a investigação. Uma delas é a série de desencontros impostas à procura de José. A propósito, sua procura se concentra em quatro lugares kafkanianos: A Conservatória, onde estão divididas as fichas dos vivos e dos mortos; a cidade onde sempre chove; a escola onde até então José acreditasse que a mulher tivesse apenas estudado na infância; e finalmente o mais obvio de todos, o cemitério.

Como dito, a narrativa percorre quatro grandes espaços: a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério. Ou labirintos. No último, José constata que o objeto que o levou à tamanha transformação não existe. A mulher desconhecida está morta. Suicidara-se poucos dias antes. A procura por ela, então, tornaria-se inútil, caso José fosse um conformista e Saramago um escritor qualquer. Ao contrário, a insistência na procura torna-se insana, pois decide continuar procurando elementos de sua vida e de sua morte, esquecendo-se ou ignorando volutariamente a rigorosa obediência às normas da Conservatória. Deixa a barba por fazer, descuida-se da limpeza do seu quarto e cogita até uma possível paixão imaginária e irreal pela mulher que sabe-se agora ser professora de matemática, funcionária da escola onde José fora procurá-la como aluna e suicida.

O tom alegórico de boa parte destes espaços percorridos por José está em sua estrutura labiríntica, no tom pesado de uma cidade onde sempre chove, no jogo de desvelamento e ocultamento, no absurdo do cotidiano, no uso de imagens do inconsciente que perpassam pesadelos e monstros mitológicos jogando com a temerária idéia não da morte em si, mas com a idéia cruel que a morte traz a iminência do desaparecimento, do esquecimento. Alegorias como as de que uma vez dentro do recinto da Conservatoria Geral, apenas é possível retornar à sua saída ou ao presente com o fio de Ariadne amarrado ao pé. A idéia do labirinto transcorre em todo o romance. A Conservatória é um labirinto de arquivos e gavetas onde, para penetrar nos seus corredores, é necessário desenrolar um fio de Ariadne. Outro labirinto maior é o cemitério onde o Sr. José vai procurar, quase no final da estória, o túmulo da mulher desconhecida. É absurdo cogitar isso, mas Saramago nos induz a pensar que enquanto o cemitério é o labirinto dos mortos, a Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos. Nos induz de maneira um tanto estranha, mas eficiente, do ponto de vista narrativo. No cemitério, o maior dos labirintos, o Sr. José caminha por longas horas em sua solitária busca. Cansa-se e adormece. Tem um sonho. "sonho estranho, enigmático." Desperta "angustiado, alagado de suor." Sonha com um pastor de ovelhas que zela pelos mortos, uma espécie de Omulu, que eventualmente muda os números das tumbas.
Penso: em várias religiões, profanar os campos sagrados dos mortos dá uma encrenca danada no além. Saramago vai ao limite para provar-nos o caos onde estamos imersos. Nas palavras do pastor: "Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, [ assim ], ficaram definitivamente livres de importunações."

Chega-se ao fim do livro sem saber específicamete os motivos que levaram José a investigar a vida daquela mulher. Mas, a essa altura pouco importa, pois já estamos perdidos no meio do labirinto contruído por Saramago. Após a experiência surreal, de volta à Conservatória Geral tenta retomar suas atividades. Ali, constata a cumplicidade do Conservador Geral às suas aventuras. Este lhe devolve a chave que permite o livre acesso ao grande prédio. O chefe reconhecia o absurdo onde estavam ambos imersos e talvez por isso, recentemente, sem explicações maiores, tal como no Livro de Areia de Borges, o Conservador ordenou aos funcionários a junção dos arquivos dos mortos e dos vivos, sem qualquer distinção. O chefe sabia de tudo, das visitas à casa da “senhora do rés-do-chão", à casa dos pais da moça, das investigações.... Nesse ponto o chefe da Conservatória e o pastor agem de maneira semelhante... José então pega a sua lanterna, ata o fio de Ariadne ao tornozelo e dirige-se para a escuridão dos arquivos.
Um livro que nos fará pensar duas vezes antes de entrar num cartório. Voilá caro K.
Música do dia. Everytime we say goodbye. John Coltrane. My Favorite Things

Achado

Pesquisa - Paulo Mendes Campos

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.
Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,
[ vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a
[ eternidade.



Revirando velhos discos descobri um sem data. A capa de Athos Bulcão e poesias declamadas por Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos. O achado da semana. O resto é cotidiano, contas, pressas, despedidas, OSs, nas palavras do próprio Mendes Campos... "O mundo, companheiro, de certo, não é um desenho de metafísicas magníficas, como imaginei outrora, mas um desencontro de frustrações em combate."

Agora falando sério, preferia não falar nada que distraísse o sono difícil...

Carlos Marques, A.K.A. Karl Marx, dizia que a consciência da necessidade torna o homem livre. Nessa lógica, por razões menos econômicas que de prioridades, já não sou assinate da The Economist há pelo menos 6 meses. Tenho-a no trabalho.

Qual não foi minha surpresa ontem ao receber no correio um pequeno livrinho com a chancela da The Economist chamado “Pocket World in Figures. 2009 Edition.” Um livrinho cheio de estatísticas inúteis, frias e algumas, vez por outra, incômodas.

Maior Economia do Mundo
Estados Unidos
Japão
Alemanha
China
Reino Unido
10. Brasil

Qualidade de Vida (Desenvolvimento Humano)
Noruega
Australia
Canada
Irlanda
Brasil não aparece entre os 60 seguites

Balança de Pagamentos
Maiores ‘surpluses’
1. China
2. Japão
3. Alemanha
4. Arábia Saudita
5. Rússia
6. Noruega
23. Brasil

Agricultura
Maiores Produtores
Cereais
1. China
2. Estados Unidos
3. India
4. Brasil

Carne
1. China
2. Estados Unidos
3. Brasil

Trigo
1. União Européia
2. China
3. India
4. Estados Unidos

Açúcar
1. Brasil
2. India
3. União Européia

Sementes Oleaginosas
1. Estados Unidos
2. Brasil
3. Argentina


Consumidor de Petróleo
1. Estados Unidos
2. China
3. Rússia
4. India
11. Brasil

Maiores Reservas de Petróleo
1. Arábia Saudita
2. Irã
3. Iraque
4. Kwait
5. Emirados Àrabes
6. Rússia
7. Venezuela
8. Líbia




Educação

Primária (porcentagem). Números que excedem 100% são computados para crianças crianças fora do grupo de Educação Primária, que ainda patinam na fase primária.
1. Gabão 152
2. Serra Leoa 147
3. Ruanda 140
4. Madagascar 139
5. Brasil 137

Highest Tertiary Enrolment. Este item inclui o investimento global em educação incluindo formação técnica e Universidade.
1. Grécia
2. Finlandia
3. Coréia do Sul
4. Cuba
5. Eslovênia
6. Estados Unidos
7. Dinamarca

Performace dos Estudantes
Nível de leitura
1. Coréia do Sul
2. Finlândia
3. Hong Kong
4. Canada

Matemática
1. Finlândia
2. Hong Kong
3. Coréia do Sul

Ciências
1. Finlândia
2. Hong Kong
3. Canada




Nóbeis
Paz
1. Estados Unidos 18
2. Reino Unidos 11
3. França 9

Economia
1. Estados Unidos
2. Reino Unido
3. Noruega

Medicina
1. Estados Unidos
2. Reino Unido
3. Alemanha

Literatura
1. França
2. Estados Unidos
3. Reino Unido
4. Alemanha
5. Suécia
6. Italia e Espanha
8. Noruega Polonia Russia



Consumidores de Cinema. Total de visitantes.
1. India
2. China
3. Estados Unidos
20. Brasil

Ben-Hur, Titatic e Lord of the Rings foram os filmes que ganharam mais Oscáres na história da Academia.



Poema Didático. Paulo Mendes Campos
[...]
Sem compreender que pelo simples teorema do egoísmo a vida enganou a vida, o homem enganou o homem. Por isso, agora, organizei o meu sofrimento ao sofrimento de todos. Se multipliquei minha dor, também multipliquei minha esperança.
[...]
A filha do piloto japonês( para Matsuo B.)

O piloto japonês preparava-se para o seu vôo derradeiro; ao contrário do que muitos haviam feito, despediu-se da família com estreitos abraços e lágrimas japonesas e visíveis. Crê-se que chegou a dizer:
Bem, é certo que não voltarão a ver-me!
A filha mais nova, a que menos chorava, respondeu:
Em sonhos hei-de sempre voltar a ver-te, pai.
O piloto japonês sorriu.

Ondjaki, E se Amanhã o Medo.

Carlos e Onésimo já tinham me falado dele, mas grata foi a descoberta. O escritor angolano Ondjaki deve andar pela casa dos trinta e poucos, e já tem uma penca de bons livros publicados. Grande parte de suas referências e epígrafes são de escritores, poetas e letristas de música brasileiros. Seus contos, no livro "E se Amanhã o Medo," mescla algo de fábula com hiperrealismo, como no caso do protagonista do conto "A Confissão do Acendedor de Candeeiros," um velho, que acende os lampiões da cidade e que por sua idade avançada sabe que não durará muito, mas lá pelas tantas diz...

"Durante minha vida acendi candeeiros pela simples poesia desse gesto, sendo, cada chama, um poema que eu escrevia para quem passava."

"Quando olho o céu, lhe vejo assim pintalgado de brilhos, indago-me: e eu, quem me acendeu sempre, enquanto acendi estrelas aqui na terra?"

Música do dia. Zé Inácio - por Paulo Flores

O homem de palavras

O discurso político eficiente, requer retórica própria. E a persuasão é uma regra básica da retórica. Aristóteles sabia disso e nos ensinou uma palavra mágica, Ethos, para definir a parte da retórica que estabelece a bona fides do orador, seja ele político ou não. Assim sendo, o camarada pode escolher caminhos diametrais para ser persuasivo, usando o Logos, o Pathos, ou ambos. Ou seja, um exemplo literário claro, já que no estamos falando de outra coisa, poderia ser expresso de três formas: Ethos ( compre meu livro por que me chamo XYZ); Logos ( compre meu livro, leia-o, pois nele há uma estória que pode te dizer algo); Pathos (compre meu livro, mesmo que não o leias, caso contrário torço o pescoço do teu bigglesworth). Evidentemente que estes caminhos são diametrais porém não excludentes.

Pode ser ilusão, mas em termos de discursos, as semelhanças entre Obama e Kennedy foram comentadas durante as eleições americanas. O poder da retórica dos dois foi alvo de comparações e, justamente, por esta capacidade de argumentar não necessariamente se tornaram presidentes, mas sem dúvida políticos notórios. Tenho 4 sisos há quase 20 anos, e não sou ingenuo em afirmar presidentes se sustentam simplesmente pela força da retórica até por que as biografias pesam e pesam muito. Há diferenças. Kennedy era filho de um especulador imobiliário em NYC, de um prevaricador que por tráfico de influências fechava negócios milionários e lavava a grana em ramos da metalurgia, importação de àlcool durante a Prohibition, e filmes para Hollywood. Quando Jack assumiu o poder, estima-se que a fortuna do pai beirava os 400 milhões de dólares. Obama é filho de universitários, um queniano e uma americana. Isso explicaria muito de sua trajetória se ele continuasse sendo apenas um advogado de direitos civis, ou apenas um brilhante e dedicado presidente de Harvard. Mas não, o camarada tornou-se aos 34 anos escritor sensível com Dreams of My Father, presidente e mito aos quarenta e poucos anos.

No nível retórico, estou sinceramente curioso para ouvir as palavras de Obama em seu discurso de posse já que os discursos de posse imprimem as marcas pessoais dos presidentes. Como se fossem os selos que suas administrações mostrarão. Portanto, são diferentes dos discuros de camapanha. Até por que o discurso de campanha é um, o discurso inaugural é outro, e os discursos no poder são outros – estes sim diametralmente diferentes dos dois anteriores. Analisar os discursos de posse dos presidentes pode ser diletantismo mas é um exercício interessante. Kennedy disse em 1961:


“[...] não perguntem o que o seu país pode fazer por vocês, perguntem o que vocês podem fazer por seu país. Cidadãos do mundo, não perguntem o que os Estados Unidos podem fazer por vocês, e sim o que podemos fazer juntos pela liberdade"


Estes eram tempos de Eisenhower, da Guerra Fria, da neurose anti-comunista. Os americanos ainda não tinham ido para o Vietnã e a política da Détente nem era sonho.

Eu ainda podia citar mais dois exemplos de discursos clássicos recentes. Um deles o de Reagan em 1981: "Na atual crise, o Estado não é a solução para nosso problema; o Estado é o problema". Estes eram tempos da Dama de Ferro, monetarismo, fim dos programas socias, da Guerra nas Estrelas, da onda New Wave e de muitas outras coisas esquisitas.

Ainda nessa linha poderiamos citar o discurso de posse deste que sai – o qual me recuso pronunciar o nome. Em sua segunda posse, em 2005 disse:


"A política dos Estados Unidos é apoiar a expansão dos movimentos e instituições democráticas em todos os países e culturas, com o objetivo último de pôr fim à tirania em nosso mundo[...]"


“[...] pois enquanto regiões inteiras do planeta fervilharem em ressentimento e tirania inclinadas a ideologias que alimentam o ódio e perdoam o assassinato, a violência gerará e multiplicará seu poder destrutivo, cruzará as mais defendidas fronteiras e representará sempre uma ameaça mortal. Existe apenas uma força na história capaz de pôr fim ao reino do ódio e do ressentimento, de expor as pretensões dos tiranos e recompensar as esperanças das pessoas decentes e tolerantes, e é a força da liberdade humana[…]”.



Estes foram tempos de torturas de Abu Ghraib televisionadas, relatórios falsos na Assembléia Geral da ONU televisionados, enforcamento de tiranos televisionados, e uma grande apatia por parte dos telespectadores. Um Logos sem Ethos. Um Pathos com o Logos de manipular as emoções da audiência.

Em poucas horas Obama fará seu discurso de posse. Vai dar tudo certo. Eu também hope .

Ansiedade da Influência

A revista Granta 104, vem com este número todo dedicado ao tema da paternidade. Num dos artigos, um fantástico e emocionante de Siri Hustvedt, falando das complexidades das relações familiares e da fragilidade de crescer como mulher mesmo sendo oriunda de uma família liberal de Minnesota. Fala abertamente dos paradoxos sobre a educação de sua filha com Paul Auster - o que nos faz parecer um pouco como o Daniel Quinn - , sem panfletismo tampouco proselitismos feministas. Ela escreve tão bem, que deixa-nos uma sensação de placidez sem perder a força feminina.

Eventualmente tentarei traduzir alguns trechos. Por agora, um video do Auster lendo seu último livro, onde a culpa sobre a qualidade da imagem e do audio é toda minha.

The Visitor


Você chega à casa tarde da noite. Abre a porta e ainda com a casa as escuras pousa as chaves na mesinha. De repente percebe uns ruídos, percebe que há alguma coisa estranha, que há flores frescas na jarra da sala, que pela luz nas fresta da porta alguém está no teu banheiro tomando banho. Abre a porta do banheiro e realmente há uma mulher lá, fecha a porta num ato reflexo e logo aparece um homem te agredindo.... Parece um filme...

Em The Visitor, filme de Tom McCarthy, Richard Jenkins é Walter Vale, um homem de 62 anos, um professor de economia em Connecticut, viúvo e sem paciência para seus alunos e amigos da universidade. Num certo dia é praticamente obrigado pelo chefe de departamento de sua faculdade a apresentar uma conferência em NYC sobre um paper em que ele é co-autor – caso típico, mas dexapralá. Chegando a seu apartamento, que visita raramente, descobre, Tarek e Zainab. Tarek, percursionista, é Sírio, e Zainab, artesã, é senegalesa. Ambos vivem por alí há mais de dois meses sem serem incomodados. Após esse breve desentendimento, ambos decidem partir na mesma noite. O professor acaba propondo abrigo temporário para eles em seu apartamento e, aos poucos, vai se envolvendo com problemas que jamais imaginaria. Um deles é a quase imperceptível xenofobia pós-11/9... e outro são os delicados procedimentos dos departamentos de imigração americanos....

Nesse universo urbano e multiculturalmente idílico, Walter aos poucos vai se envolvendo com o universo de Tarek. Aprende percussão, larga definitivamente o piano e adia mais e mais a volta a Connecticut. Das aulas nasce uma espécie de amizade – pois é difícil dizer já que Walter é um homem contrito, eloquentemente sucinto, meio depressivo e quase monossilábico. Da amizade, diga-se de passagem um tanto rápida demais, nasce uma espécie de hipnose pela vida livre de Tarek.

Até o dia em que Tarek é preso no metrô, por um engano, na frente de Walter. Por não ter documentos é transferido a uma casa de detenção no Queens. Zainab, muito mais reservada que Tarek, decide partir. Sem notícias há vários dias, a mãe de Tarek, Mouna Khalil, interpretada pela belíssima atriz palestina Hiam Abbass, chega de Michigan para procurar o filho e fazer a vida de Walter mais complicada e interessante. Ambos se unem para tentar, em vão, soltar o rapaz. Como seria natural entre duas pessoas maduras, envoltas em experiências similares, ambos se sentem atraídos. Mouna confessa a vontade de assitir ao Fantasma da Ópera, que Walter galantemente convida-a para assistir. Enfim...

Não. Mouna e Walter, ambos viúvos, não começam um romance, mas Tom McCarthy roda uma cena daquilo que Nelson Rodrigues definiria, à sua maneira, como amor. O anjo pornográfico dissera que “[...] qualquer mulher nasceu para um só homem, qualquer homem nasceu para uma só mulher. Quando, por sua desventura, o homem e a mulher separaram o sexo do amor, começou o martírio de ambos.”

Não houve sexo na última noite em que Mouna passa no apartamento de Walter, antes de retornar a Síria, para esperar por seu filho, definitivamente deportado dos EUA. Mouna, no meio da noite vai ao quarto de Walter, deita-se em sua cama, pede para que ele a abrace e começa a chorar lamentando-se pelo destino do filho. Walter e Mouna dormem abraçados numa cena mais tocante que a da despedida de ambos no Aeroporto de JFK. Posso estar ficando velho e piegas, mas acho que isso também é uma forma de amor. Mas isso também pode ser ilusão.

http://www.thevisitorfilm.com/

O Atraso de Mefistófeles


Em 2008 Cristovão Tezza levou todos os prêmios. De Jabuti a Portugal-Telecom. “O Filho Eterno” é sem dúvida, um livro bem escrito, mas agora que a poeira em torno ao livro abaixou, vamos aos fatos, às linhas que alinhavam o enredo. Escrevendo uma narrativa auto-reflexiva, realista e pouco dinâmica, Tezza criou sobre um personagem com Síndrome de Down, uma mãe ausente, uma filha de poucas aparições e a figura de um pai acidental: o protagonista é um escritor que de golpe em golpe recebido vai se tornado um fracassado resiliente. Um escritor eterno: o pai eterno.'

Já se disse que o estilo é parecido ao de Coetzee. É bem verdade, a história é narrada em discurso indireto livre, em terceira pessoa do singular, bem ao estilo do sulafricano. O narrador é distanciado e racional em demasia, não sugerindo em momento algum empatia ao leitor. Diga-se de passagem, afirmo que o Tezza é escritor dos bons, pois sustentar o ambiente de desilusão de um personagem ressentido com o mundo e consigo é algo que imagino requeira um esforço descomunal, pois até agora só lera em escritores como Roth e Coetzee tal ausência de compaixão com seus protagonistas, suas criaturas. Tezza ousa. O seu personagem inominado quase chega perto da complexidade resignada de Seymour Levov ou da frieza contrita de David Lurie. Quase.

A idéia da paternidade de um filho com Síndrome de Down cai-lhe como uma bomba ferindo o orgulho, frente aos parentes e amigos, com a idéia da paternidade fracassada. Por ela, e somente por essa razão, aquela espécie de jovem pequeno-burguês - com aventuras ilegais em Portugal e na Alemanha, que prolonga a adolescência de boemia até os 28 anos – com complexo de superioridade suficiente para iludir-se quanto ao pragmatismo da vida, esfacela-se. Transforma-se numa pessoa mal resolvida. A paternidade em tais termos, condena o protagonista a ter contato com um mundo de hospitais públicos, gente pobre – à qual despreza - e médicos insensíveis ao seu problema que concebe como lotérico. Talvez por isso, chegue a pensar, nem tanto como nos devaneios de Cronos que devora os filhos, que seria bom se o filho morresse cedo - talvez de acidente, ou por um acaso lotérico tal como aquele que o fez cair nos braços daquele pai. Pensar se pensar isso é moral ou não, deixo para que outros decidam. Só sei que, ainda que de forma bastante episódica no livro, nosso pequeno Mefistófeles, baseado nessa esperança, tenta escrever um grande poema sobre suposta morte trágica do filho, e tenta publicá-lo. Arrepende-se logo em seguida. Enfim, há algo de culpa cristã no personagem. Tezza, dessa forma, cria um protagonista de frieza analítica, aliada a empáfia niilista, que revela, em sua arrogância intelectual, o que quer ver de errático na natureza dos fatos, tal como um David Lurie.

É um livro de saltos grandes no enredo. Dos exercícios motores da infância, aos primeiros anos na escola, passando pelas aulas de fonoaudiologia, pelas tentativas de alfabetização, pela certeza de que aos 8 anos Felipe não poderia frequentar a escola até nascimento da segunda filha – esta sem Síndrome – há elipses no enredo. A filha nunca aparece. A mãe das criancas, por sinal, aparece para parir, sustentar a casa e desaparecer novamente. Todos os personagens secundários, incluindo o filho eterno, me passaram a impressão, apesar de serem peças chave na narrativa, de frequentar a estória apenas para tornar a luta por projeção do pai, escritor mediocre e acadêmico inexpressivo, numa luta épica pela recuperação da idéia de paternidade.

Pouco menos de um quarto para final do livro, a estória esgota certas possibilidades de distanciamento e dá uma certa virada para recortes cotidianos mais sentimentais que mostram um pai mais maduro, adaptativo e sociável. Certo dia Felipe desaparece. O pai se desespera e enquanto procura pelo filho é tomado por uma sensação de vazio. Felipe já com quase 20 anos ainda não lê nem escreve, mas consegue ter noções de tempo pelos prazos dos jogos do Campeonato Brasileiro, usa internet, cria e nomeia pastas no computador. Este episódio da perda do filho poderia incorrer num aspecto redentor do pai. Mas Tezza toma extremo cuidado com essa armadilha que poderia transformar o livro numa bomba, pois seria muito fácil transformar este enredo numa série de fatos sentimentais encadeados em torno à culpa, à compassividade, ou à redenção do pai - temas que Tezza, como grande escritor, evita cuidadosamente.

Não quero tocar no aspecto auto-biográfico da obra de Tezza que certamente uma boa estratégia de marketing criou em torno ao "O Filho Eterno", pois este certamente não foi o motivo que me levou a lê-lo - - já que lera "Trapo", um livro de enredo mais vibrante e rico. Muitos disseram que este foi o livro do ano, que foi um livro corajoso da parte do autor. Esta é uma decisão que deixo para que outros a tomem. No fundo no fundo esta é a estória ficcional, mais que de um filho - como o título do livro nos leva a crer -, de um pai. Como ficção, é a estória de um homem que virou homem um pouco tarde, acreditando que sempre há tempo para esse tipo de coisa. Como "auto-biografia" - e duvido que seja - , elas por elas, melhores são as do Rui Castro. Como ficção, ótimo livro.
Música do dia. Franz Schubert - Death and the Maiden - III.Movement Excerpts

Samba e Alteridade

s. f., Filos.,
fato ou estado de ser um outro (por oposição a identidade);
qualidade do que é outro ou de uma coisa diferir de outra.
Musica do dia. Sinfonia no. 1 em D maior. D 82: II. Andante. Franz Schubert. Orquestra Filarmonica de Berlim.

De Chinese muur

Aagt

"The Chinese Wall', (Netherlands, 2002), 10 min., foi nominado como o melhor curta metragem do Dutch Film Festival em 2002 – além disso levou uma penca de outros prêmios. A diretora Sytske Kok e a roteirista Rosan Dieho realizaram um trabalho de grande sensibilidade ao transportar as inquietações, frustrações, e as ilusões perdidas durante toda uma vida de uma mulher madura – por volta dos 60 anos, ligeiramente auto-inflictiva e adoravelmente sarcástica -, esperando pelo almoço num restaurante chinês em Amsterdã, para um diálogo interno cheio do que o filósofo William James chamaria de “fluxo da consciência.”

Aagt (Celia Nufaar) é uma mulher madura e solitária. Maltratada pela vida, perdera o amor de sua vida por influência dos pais, teve um único filho que voltou-se contra ela, por influência da nora, e seu marido morreu numa cadeira de rodas ao seu lado. Num dos almoços em seu habitual restaurante chinês, sentada à sua habitual mesa, pedindo seu habitual prato com uma porção extra de frango, a conhecemos e conhecemos boa parte de sua vida através de seus pensamentos e julgamentos precipitados refletidos nos outros comensais, ao vislumbrar nestes sinais particulares de episódios chaves em sua vida.

Três mesas estavam ocupadas. Numa mesa – que chamo de mesa 1 - vemos um grupo de cinco jovens, num aparente almoço de escritório, onde alguns se sentiam desconfortáveis com ascensão de um deles sobre os demais, mas uma das jovens olhava-o atentamente com admiração, dando, numa prosaica maneira de dizer, o maior mole pro cidadão ( dali vieram-lhe os pensamentos da juventude, do amor perdido por Aagt). Na mesa do canto – a mesa 2 - , uma família, pai, mãe e um filho adolescente, aborrecido e constrangido com a presença dos pais que o tratam com um relativa condescendência e pudor (desta, a lamentação por ter perdido o filho). Na terceira mesa – mesa 3 - , à sua frente, Aagt tem um casal. Uma mulher apática, sendo servida pelo opressivo marido, que com certa autoridade e arrogância pedira a comida e o segundo copo de cerveja, de forma arbitrária, pré-julgando seu gosto pela comida ( desta, o alívio por não ter mais um marido). Mas o porquê de tais diálogos internos, naquele dia específico: aquele era o dia de seu aniversário que solitariamente queria manter em segredo.
Mesa 3

Já no fim de seu almoço, tendo deixado boa parte da comida, Aagt é indagada pela dona do restaurante se não gostara da comida. Ela então, inadvertidamente, revela a importância pessoal da data. Inesperadamente arma-se um carnaval - nem tanto no estilo do surreal e antológico “Salvador Janta no Lamas” de Victor Giudice. A gerente aparece com um bolo. Aagt entra em pânico - um pavor interno a bem da verdade - ao ver-se analisada pormenorizadamente por todos. Ser o centro das atenções naquele dia solitário e meio amargo não estava em seus planos. Quando Aagt oferece parte do bolo aos demais comensais, a gente decide juntar as mesas do pequeno restaurante. Frustração, alegria e esperança se encontram. A mãe do adolescente (Mesa 2), então, empurra feliz a cadeira de rodas do rapaz para junto da grande mesa; o grupo de jovens (Mesa 1) da aula semanal de patinação no gelo é alegre e é o primeiro a tomar a atitude de juntar as mesas; e a até então infeliz mulher(Mesa 3) anima-se e manda seu irmão indiferente e ansioso em terminar o almoço com a irmã, juntar também a mesa dos dois à dos outros. Simples. Emocionante. Surpreendente.
Música do dia. Complexo de Épico. Tom Zé

Invernos ou verões, já nem sei mais...

"Em um dia do homem estão os dias
do tempo,desde o inconcebivel
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história universal.
Do fundo da noite vejo a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia."

J.L.Borges

Nota: Lembrança do meu chapa Ednelson Jesus, chapa velho, irmão, comparsa e amigo de anos com quem comparto diferenças, semelhanças e o prazer de cada nota do Coltrane, além das muitas coisas que consigo ver, por ele ter me ensinado a ver certas coisas onde minha torpeza me impede.

Moartea domnului Lăzărescu

Moartea domnului Lăzărescu é um filme longo. Duas horas e meia de uma combinação estranha de risos e agonia. Dante Remus Lăzărescu (Ion Fiscuteanu), um tipo que certamente você já viu passando pela tua rua, é um excêntrico e rabujento engenheiro aposentado. Sua única filha vive em Toronto, no Canadá. Sua irmã em Targu-Mures, algum lugar da Romênia. Portanto, no dia-a-dia Lăzărescu vive sozinho. Ou melhor, vive com Mirandolina, Muso e Fritz seus três gatos num pequeno apartamento de Bucareste. Chegado numa birita caseira chamada Mastropol, vivendo em sua solidão, sofre uma queda doméstica, bate com a cabeça e chama uma ambulância, mas quando se torna evidente que a ambulância não vem, ele pede ajuda aos vizinhos. Para piorar sua situação, não tendo o medicamento correto, seus vizinhos lhe dão uma medicação errada para parar com a náusea. Após vomitar sangue novamente, os vizinhos decidem chamar a ambulância novamente. Quando a ambulância finalmente chega, a enfermeira, Mioara (Luminiţa Gheorghiu) aposta em outro tipo de diagnóstico. A enfermeira suspeitar que ele tem câncer e, após informar sua irmã, que vive noutra cidade, que sua condição que poderia se agravar e que ela deveria visitá-lo no hospital, a enfermeira decide levá-lo para um hospital. O filme propriamente dito começa agora, com a pregrinação do pobre do Lăzărescu e sua enfermeria por vários hospitais de Bucareste.

O filme classificado como humor negro, é bem mais que isso. Pensado pelo diretor Cristi Puiu como uma tetralogia dos subúrbios de Bucareste, o filme é um retrato do que poderia ser a rede pública do Rio de Janeiro. Quem ja precisou de um Salgado Filho, um Getúlio Vargas ou Miguel Couto, sabe muito bem do que eu estou dizendo. O filme segue a jornada Lăzărescu através da noite e de como ele é levado de um hospital para o outro. Nos primeiros três hospitais, os médicos, depois de muita enrolação, relutantemente aceitam cada um a sua maneira fria e distanciada examinar Lăzărescu. Todos, apesar de considerarem sua condição gravíssima, necessitando de uma cirurga com urgência, recusam-se a mantê-lo em seus hospitais, pois por infelicidade, as vítimas de um grande acidente de ônibus não param de chegas às emergências. Por isso decidem mandá-lo embora. Entretanto, sua saúde se deteriora rapidamente, sua fala falha, balbucia lentamente, seus reflexos diminuem, vai perdendo os movimentos dos membros direitos.

As razões para o descaso vão desde a negligência ao cansaço, ou simplesmente a recusa a atender um velho manguaça. Durante a noite de procura por alguém que o atendesse, sua agonia aumenta. Sua única protetora é a enfermeira que prestou os primeiros socorros, aguentando firmemente todas as humilhações e arrogância dos médicos. Finalmente, no quarto hospital, os médicos aceitam Lăzărescu para uma operação de emergência para remover um coágulo no cérebro. De todas as maneiras, tal como um dos médicos disse, livraria-se do tumor, mas não da cirrose.

Nos extras, Cristi Puiu dá uma entrevista interessantíssima. Segundo ele, o filme foi inspirado intelectualmente na série dos Six Moral Tales do cineasta Eric Rohmer. Na prática, numa experiência pessoal em 2000, quando teve de ser levado às pressas, vomitando sangue, à emergência de um hospital. Seu caso, não fora grave, mas a experiência o marcou com sérias crises de hipocondria. E costurou todos esse fatores com uma notícia de jornais dando conta do abandono de um velho doente pela paramédica que não conseguia um hospital para interná-lo. A paramédica, que abandonou o doente à sua sorte, foi a única condenada num processo de negligência - algo que Puiu recusa-se a aceitar. Daí o filme.

O diretor aceita a tarja preta do humor negro. Aceita mas não concorda, pois suspeito que este seja, sem sentimentalismo barato, um filme de resgate do humanismo. Ou parafraseando Brás Cubas que disse, ainda que de maneira sacana, que seu emplasto era " o alívio da nossa melancólica humanidade" esse filme é de uma maneira bem sacana uma espécie de "alívio para" - e não "de" - "nossa melancólica humanidade".






Música do dia. A Banca do Distinto. Billy Blanco

Dia de Merda

"Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebivel
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história universal.
Do fundo da noite vejo a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada,Inferno e Glória.
Dá-me Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia."

J.L.Borges

E na gente deu o hábito de se esconder nas trevas, de viajar entre as telas

O pai do [ me nego ao adjetivo ] que sai, criou em 1988 o National Film Preservation Act. Por ele a Biblioteca do Congresso, em nome de seu diretor, James H. Billington, seleciona anualmente os 25 filmes cultural e esteticamente relevantes para a história do cinema. Neste ano a lista completou 500 filmes.

Não levo muito a sério essas listas, mas fato é que dentre os selecionados neste ano estão - dentro do esquemão americano de cinema - realmente alguns de minha predileção e alguns deles até ja resenhados neste espaço de ilusões: The Asphalt Jungle (1950); A Face in the Crowd (1957); In Cold Blood (1967); The Killers (1946)- baseado num conto do Hemingway e tendo como atriz principal "o mais belo animal do mundo", Ava Gardner, perfeitamente definida por Cocteau, que tomava banhos na piscina da casa cubana de Hemingway nua, deixando-o louco, antes de Sinatra, a quem também deixaria louco poucos anos depois do filme em questão; e o The Pawnbroker (1965) - um dos melhores filmes que já assiti na minha vida, com uma das mais perfeitas atuações de Rod Steiger no papel de um duro sobrevivente do Holocausto e dono de casa de penhores no ghetto de NY, que impõe as mais diversas humilhações aos seus devedores e a seus empregados.

Os outros filmes devem ser importantes por algum outro motivo:

1. The Asphalt Jungle (1950)
2. Deliverance (1972)
3. Disneyland Dream (1956)
4. A Face in the Crowd (1957)
5. Flower Drum Song (1961)
6. Foolish Wives (1922)
7. Free Radicals (1979)
8. Hallelujah (1929)
9. In Cold Blood (1967)
10. The Invisible Man (1933)
11. Johnny Guitar (1954)
12. The Killers (1946)
13. The March (1964)
14. No Lies (1973)
15. On the Bowery (1957)
16. One Week (1920)
17. The Pawnbroker (1965)
18. The Perils of Pauline (1914)
19. Sergeant York (1941)
20. The 7th Voyage of Sinbad (1958)
21. So’s Your Old Man (1926)
22. George Stevens WW2 Footage (1943-46)
23. The Terminator (1984)
24. Water and Power (1989)
25. White Fawn’s Devotion (1910)

Musica do dia. Rosa dos Ventos. Chico

O peso de uma pedra, como se diz

Não que fosse totalmente desconectado com a realidade. Claro que admitindo isso significaria ter que confessar que o fim trágico de Agladze, o protagonista de “There Once Was a Singing Blackbird”, filme de Otar Iosseliani, não foi obra de um ardil secreto. As sutilezas, que muitas vezes tentamos negar, sobre o total desconhecimento das ações e acontecimentos que determinam nossas vidas, iludindo-nos que um fim pré-determinado, ou um fim já traçado, exista, leva-nos a crer que a fatalidade da morte de Agladze estivesse talvez em conexão com alguma forma de acaso ou destino a prazo fixo. Me recuso a aceitar isso pelo simples fato de que se assim fosse, uma discussão sobre a responsabilidade de nossos atos seria superflua. Para todos os efeitos, Agladze, como músico levava de certa forma uma vida lúdica, como num desenho mágico, com um andar tímido e displicente de um sábado pela manhã, e portanto, muitas vezes sua vida poderia ser encarada encarada com inútil - o que é um detalhe que passa longe da solução que Otar impôs ao seu filme. Sendo assim, admitindo que sua vida não valia nada, a morte de Agladze, tal como Àlvaro de Campos dissera pelo aniversário da morte de Sá Carneiro, não despertaria a mágoa dos outros, pois por ele poucos chorariam já que não faria falta a ninguém.



Alguns detalhes tornam sua inutilidade mais complexa. Agladze é um músico jovem e mulherengo, uma espécie de Don Juan moderno, que seduz pelo jogo de seduzir e em seu rastro deixa alguns corações partidos. Nem por isso as mulheres o reprovam. Simplesmente, elas não o levam a sério. Os amigos tampouco. Apesar disso, apesar de levar uma vida boêmia, de ter muitos amigos, é um tanto desconectado com a realidade. O que torna a personagem muito simpática é sua maneira de levar a vida de forma irônica flanando pelas ruas de Tbilisi com um passo bêbado, flertando com as mulheres com um olhar contrito porém sagaz, encontrando-se com amigos distantes da realidade enrijecida e erudita do conservatório. Na orquestra onde toca é um músico que mescla insegurança e displicência. Erra nas marcações da partitura deixando o austero maestro impaciente por conta de sua conduta descuidada. Quando não está no conservatório, esta as voltas com os amigos, namoradas, casos e ex-namoradas. Topógrafos, relojoeiros, vizinhos amantes de futebol e jovens operárias. Esse era o universo de Agladze. A sua conduta profissional, se espelhada em sua vida, revela muito, pois vive sem responsabilidades maiores, ainda sob o teto de um quarto de dormir - que é estúdio, escritório, e quarto de costura já que além de tudo tem dotes de - na casa da mãe.

E foi assim, sem sentido que no dia anterior a sua morte, após visitar seus amigos na relojoaria, pregar um prego na parede para que o relojoeiro pudesse pendurar sua toca; após encontrar-se com uma ex-namorada; após visitar uns vizinhos do apartamento da frente que se reuniram para assistir um jogo, ir até a varanda conversar com o menino com dotes de inventor e olhar pelos telescópio em seu predio os vizinhos, sua casa, sua mãe; retira-se. Aparentemente não se interessa por futebol – um grave erro desse rapaz. Vai para casa. Dorme. Desperta no dia seguinte com a insatisfação cotidiana. Caminha com seu passo bêbado para o seu destino. Flerta com uma moça como se fosse a única. Atravessou a rua com seu passo desconectado. Atravessou a rua entre os carros. E ouve-se o ruído de freios. E acaba no chão como um pacote tímido.

Ou seja, com ou sem destino, morre na contramão atrapalhando o tráfego. Sem dúvida, apesar do tom cômico, um dos filme mais trágicos da juventude de Otar.
Nota. Titulo em francês. "Il était une fois un merle chanteur"

Música do dia. Construção. Chico