Desde já, admito que não gosto de ficção científica. Traumatizado por Duna, Star Wars e todo esse entulho dos anos 1980s, acabei por perder completamente o interesse no gênero durante minha adolescência. Assim como é o tipo de cinema que não consumo, ficção científica é o tipo de literatura que não compro. Mas, obviamente, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Blade Runner, Fahrenheit 451 do Truffaut, sendo filmes fora da curva e obras importantes que ultrapassam o universo geek, acabo por me render aos encantos. Solaris, de Andrei Tarkovsky é outra obra dessas. Stalker do mesmo cienasta, é outro ponto fora da curva.
Solaris é um filme de ficção científica enigmático e pulsante que foge completamente da fórmula dos filmes do gênero. Tem metafísica em todos os cantos de seus takes, o que exige daquele que assiste essa obra prima, uma cabeça aberta, um olhar atento ao redor e os ouvidos antenados aos sons interiores.
O filme é baseado na obra homônima do polonês Stainslaw Lem, que se destacou no tratamento de temas de ficção científica com profundidade crítica e filosófica, e é esteticamente dominado pelo uso de movimentos de câmera longos e elegantes. Kris Kelvin (Donatas Banionis), é um psicólogo convidado para ir a uma estação espacial que orbita o distante planeta Solaris, e onde há relatos de acontecimentos no mínimo estranhos dos três tripulantes da estação. Grande parte da ação na primeira parte do filme acontece na pequena casa de madeira do pai de Kelvin (Nikolai Grinko) e que de alguma maneira mal explicada estabelece o significado da existência da vida na Terra com a vida dos tripulantes da estação espacial Solaris. O filme começa lentamente. Um dos amigos do pai de Kelvin, Burton (Vladislav Dvorzhetsky), que era astronauta na estação espacial Solaris alguns anos atrás, percebe que ocorrera algo estranho em Solaris, durante sua estada na estação orbital. Burton, constatara forças, vibrações que iam para além do mundo físico, Chegou a ver imagens de seres saídos do Oceano circundate ao local, e que possuiam formas humanas. As narrativas de Burton impacientaram a comissão de doutos para a qual falava, chegando suas afirmações e defesa de suas visões a colocar o projeto em risco. Kelvin, assiste as gravações da banca de arguição com ceticismo, achando que Burton realmente não estava bem da cachola.
Diga-se de passagem, em Solaris há um Oceano, e se há H2O, nesses casos de coisas extraterrestres, há vida. É interessante, que na maioria dos filmes de Tarkovsky a água é um elemento essencial nos seus filmes. Tá lá no valete deitado lambido pelo cão de Stalker, no jogo de damas de O Sacrifício, no risco da pemba, na pomba branca que voa em torno ao corpo que flutua de O Espelho, tá lá, tá lá na água, na umidade, na chuva, no frio como elementos pulsantes na narrativa. Mas a ideia de Natureza, do Oceano, exatamente, é deixada de maneira vaga propositadamente, porque vai ser a força motriz do desenvolvimento da narrativa, desde que Kelvin chega à estação espacial.
Quando chega à estação espacial, Kelvin, que partira com imenso ceticismo, é recebido na base espacial com indigente indiferença pelos cientistas embarcados. Prontamente descobre que nem tudo está bem. A estação ainda está em funcionamento de maneira precária e abandonada. Um dos três tripulantes, que Kelvin conhecia pessoalmente, está morto. As razões de sua morte são misteriosas. Os outros dois astronautas, Dr. Snaut (Jüri Järvet) e Dr. Sartorius (Anatoli Solonitsyn), parecem paranóicos e enigmáticos como tudo que os rodeiam. E dizem a Kelvin que, chegando com aquela marra toda, de inopinado, este não vai perceber o que acontece ao seu redor. Entretanto, com o passar das horas, o próprio Kevin passa a perceber estranhas energias ao seu redor. Num dos corredores da estação orbital, reencontra Khari, a esposa falecida há anos, e entra em choque. Kevin encontra uma mulher passiva, com pouca autonomia. Os cientistas sabem do que se trata a aparição de Khari, e dão pouca importância para ela, chegam a humilhá-la várias vezes, revelando que ela não passa de uma realidade que somente pode existir naquela estação espacial. Khari é o ponto inconclusivo que brota do sonho enquanto realização do desejo. Khari e todas as outras alucinações que acontecem na Estação Solaris se devem em alguma medida ao Oceano que os rodeia, conclui em certa cena Dr, Snaut. As águas do Oceano não são apenas uma metáfora, por mais que estejamos tentados a aceitá-la como expectadores. São o ente ficto que engloba o Bem e o Mal, para o Bem e para o Mal, se é que podemos falar assim das forças que nos governam desde os Gregos. A Chegada de Khari torna tudo terrivelmente emocionante para Kevin, que passa a abandonar seus propósitos científicos para apenas se dedicar à mulher. Alguns dos diálogos entre os dois e entre os cientistas se tornam fabulosos, a partir daí, dotados inclusive de um humor sombrio em meio as divagações filosóficas. Nesta parte do filme, as sequências de ressurreição de Khari e especialmente a de gravidade zero onde Khari e Kevin flutuam, é de uma beleza absolutamente poética.
“Não temos interesse em conquistar nenhum cosmos. Queremos estender a Terra até as fronteiras do cosmos. Não sabemos o que fazer com outros mundos. Não precisamos de outros mundos. Precisamos de um espelho. Lutamos por contato, mas nunca o encontraremos. Estamos na tola situação humana de lutar por um objetivo que tememos, do qual não tem necessidade. O homem precisa do homem.”
Khari, convencida de que arruína a vida de Kevin, neste jogo de enigmas imagéticos do qual ela própria nâo pode se livrar, tenta vários suicídios, entretanto, como não pode morrer por ser fruto e consequência de uma experimentação de raios radioativos no Oceano, certifica-se que ressuscita em todas as tentativas. Por fim, quando parte de vez, deixa Kelvin com seus demônios emocionais, para este poder retomar “sua busca incessante pela verdade”. Quando a história de amor termina, quando a imagem dela desaparece, apesar da angustia, que simboliza a perda e que causa o desejo, Kelvin volta suas atenções para o problema puramente científico e psicológicos que o levaram originalmente à estação.
A Solaris de Tarkovsky é ao mesmo tempo um problema científico quanto uma história de amor, onde a catarse emocional concretiza-se com um homem perante a um ajuste de contas com seu passado e seu confronto com a vasta e proibida fronteira do desconhecido em seu subconsciente. Tarkovsky era um cineasta tolerado na antiga União Soviética que usava e abusava dessa fronteira entre o consiente e inconsciente. Seus dois filmes anteriores Andrei Rublev e especialmente A infância de Ivan tinham chamado a atenção do público fora da Uniâo Soviética, trazendo um Leão de Ouro, Premiações em Veneza e outros Festivais, justamente por retratar esses nebuloso e enigmatico ambiente que foge da epiderme dos fatos, da política e da Nomenklatura, cara à burocracia do regime. Bergman e Sartre teciam loas a Tarkovsky. E isso tudo, antes de Solaris e Stalker!
No final filme você pode até se sentir sugestionado a crer que Kelvin voltou à casa do pai. Mas, Tarkovsky inverte o plot, te dá uma rasteira psiquica, uma meia lua de capoeira psicológica no meio dos cornos e revela que, o que parece ser a casa do pai é na verdade uma casa encravada num ilha recém-formada no Oceano de Solaris. O ponto de contanto com toda sua herança onírica, materializada naquela representação visual em meio às incertezas cognitivas da Terra. Kelvin não quer mais voltar, não quer mais deixar o confortável alojamento de seu inconsciente. Pois é, esse tipo de viagem eventualmente nos acontece a todos.
Nota. Tudo bem. Com exceção da cena do anão - expresão que hoje em dia deve ser substituida por "pessoa com transtorno que se caracteriza pela deficiência de crescimento" - que tenta escapar hilariamente do laboratório de Dr. Sartorius, na chegada de Kelvin a Solaris, o filme tem cenas e sacadas impressionates. Nomeadamente, um filme de ficção cinetífica sem imagem de viagens espaciais, como a xaropada de 2001. As cenas de viagens são retratadas por sons ou imagens de tráfego intenso nas estradas de Moscou. A estação espacial não tem luzes pós modernas, os computadores estão todos empilhados ou tombados, tudo o que se rompe permanece quebrado... enfim, infinitas referências da decadência. O livros são reais, os bustos de Platão, idem.