O Ouro de Nápoles


Este filme de
Vittorio De Sica é sem dúvida uma homenagem existencialista, sem os idiossincráticos desvios da angústia existencial, modelado pelo bom humor, a Nápoles. Vittorio De Sica passou seus primeiros anos na cidade e pôde capturar com maestria o roteiro traçado a partir do livro de Giuseppe Marotta, de mesmo nome. Trata-se de  uma coleção de 6 episódios napolitanos:  "Il guappo", "Pizze a credito", "Funeralino", "I giocatori", "Teresa", e "Il professore". A versão americana omitiu, por algum motivo que ainda vou descobrir, 2 dos vignettes. Justamente, o terceiro -  Funeralino - e o sexto -  Il professore

O filme chegou a fazer parte da competição de Cannes em 1955, junto com outros incríveis filmes como Rififi, que levou o prêmio de melhor direção, como o magnífico East of Eden do Elia Kazan, que levou o prêmio de melhor filme dramático;  Marty, de Delbert Mann, que ganhou a Palma de Ouro; e Marcelino pan y vino, que não levou prêmio nenhum, mas é um desses filmes com cães tristes e criança órfã, que são sempre tocantes. Uma curiosidade é que L´Oro di Napoli competiu com um filme brasileiro também: Samba Fantástico de Jean Mazon e René Persin. Para quem não lembra do Mazon, segue um refresco para a memória. Um dos fotógrafos mais emblemáticos do fotojornalismo brasileiro, que formou uma geração de fotógrafos, inclusive guerra. Sempre oportunista, chegou no Brasil na década de 40 e logo se enroscou com o pessoal do DIP do Vargas. Do Departamento de Imprensa e Propaganda, a censura do Vargas, foi trabalhar na Cruzeiro, do Diários Associados, do famigerado Assis Chateaubriand, com David Nasser. O francês, operando as objetivas, e o libanês, textos rocambolescos de dar inveja a qualquer palimpsesto do realismo mágico latinoamericano,   tornaram-se mitos em pouco tempo. Chegaram até a forjar a morte de Mazon para aumentar as vendas da Cruzeiro, e claro, tudo com a aprovação de Chatô, que nunca foi flor que se cheirasse mesmo.  

Por falar em realismo mágico, o que me levou a assistir L'oro di Napoli foi justamente o elogio desvelado que Gabriel Garcia Marques faz ao filme no livro, meio biográfico, meio ficcional e cheio de indiscrições e cabotinagens, do jornalista, diplomata, e amigo pessoal de Gabo,  Plinio Apuleyo Mendoza, La llama y el Yelo - que acabei de folhear estes dias. No livro, disque Marques revela a Mendoza, numa das andanças por Paris, sem testemunhas oculares - como quase tudo que o tal do Plinio revela - seu fascínio pelo filme roteirizado pelo Giuseppe Marotta. Fui atrás do filme, diga-se de passagem, dificílimo de encontrar. Mas encontrei. Assisti. 


Filmaço. Pelo menos para mim, que existencialmente falando é o que importa!


O problema, é que nos dez anos que separam A Culpa dos Pais - filme meio chato pra dedéu - de L´oro di Nápole, o camarada faz Ladrões de Bicicleta e Umberto D. Dois clássicos que facilmente obliterariam qualquer coisa que o De Sica fizesse nesta década. Afinal, L´oro di Nápole nem sequer tinha uma linha de coerência argumentativa, tratando-se apenas de seis episódios da vida cotidiana de uma cidade. Aparentemente, por que alguns dos short movies da série, são absolutamente fantásticos.


Na véspera do Natal de 1953, Saverio Petrilho (o comediante Toto - chamado príncipe da risada italiano), encontra-se em frente ao túmulo de Maria Javarone, que havia morrido em 21 de novembro de 1943. A morta, na verdade, era a esposa de Carmine, amigo explorador e aproveitador, amigo dos tempos de escola, que ocupa sua casa de Saverio, faz de empregada sua mulher, e passa até mesmo a educar seus filhos. O protagonista se sente mais que angustiado com toda aquela situação sem saída. E se aproveita de um mal súbito de Carmine para expulsá-lo de casa. Os amigos resgatam Carmine e chamam o melhor médico da Itália para saber qual seria o mal de Carmine, que após os resultados médicos retorna à casa de Saverio, na noite de natal para lhe dar a notícia que o mal não passava de gazes presos. Saverio, abraçado a sua família, reitera sua posição de mandá-lo embora. E fiel à epígrafe do filme, em que são infinitas as características esplendorosas e mesquinhas das vielas napolitanas, Carmine parte não sem antes esmagar o bolinho das crianças sobre a mesa.


Logo em seguida,  uma vendedora de pizza, voluptuosa  e infiel  - Sofia Loren - perde a aliança de casamento numa das escapadas que dá à guisa de ir à missa, escapa para a loja do sapateiro. A cena final é fantástica: Depois de procurar na igreja, na casa do guarda noturno, e sabe la mais onde, Don Rosário, o marido corno, quase já desiste da busca, e eis que surge o sapateiro com o anel e um papinho mole de que tinha engolido o anel numa das pizzas que comprara com Don Rosario - que se gabava de vender fiado a todos. A essa altura já tem as rezadeiras, o padre, os vizinhos, um velho desdentado, e uma renga de gentes a procura do tal anel, seguindo-os pelas vielas de Napoles. Enquanto todos celebram o reaparecimento do anel, Don Rosario volta a conferir e não encontra o nome do sapateiro no caderninho da pindura. Vendo que a situação já se enrolava, São Pedro manda um chuvareu, e o velho desdentado grita: Olha a chuva! E aí foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time... mas todo mundo feliz, ou pelos menos conformado com a explicação.


Num dos episódios mais  emocionantes e poéticos, uma criança morre numas das casas de cômodos da cidade. O coveiro baixas as inumeráveis escadas do sobrado com um caixãozinho branco. A mãe, massacrada pela dor da perda, ainda mantém a altivez de organizar o cortejo do funeral que atravessa toda a cidade,  adentra pela Vila Marina, sendo conduzido por cavalos. Ela faz questão que o cortejo desvie do mofo da obscuridade das vielas. E neste momento a estória se torna esplendorosa,  desprendendo toda uma cadeia de sentimentos dos mais desconhecidos em quem assiste esse episódio, quando a mãe do defunto começa a arremessar doces e balas para as crianças que assistem o cortejo, tornando-os solidários à sua incomensurável dor da perda. E só então ela chora incessantemente.


Os dois últimos episódios são igualmente inusitados e fantásticos a vez. 


O empobrecido e já meio tereré das idéias, o jogador inveterado Conde Prospero B. obrigando o filho pré-adolescente de seu porteiro a jogar cartas com ele, e perdendo todas. O casamento inesperado e inusitado de Teresa, uma prostituta, que é apresentada ao noivo no dia do casamento, já preparado para que tudo se parecesse a um casamento normal, com bolo, noivos, festa, padrinhos, convidados e votos de felicidades aos noivos. Aos poucos Teresa se vê numa espécie de cilada , farsa ou realidade paralela, quando Teresa passa a perceber uma certa esterilidade enjoativa no homem que está substituindo uma outra mulher, recentemente morta, e que tem próprios os pais da morta como convidados desse casamento surreal, feito as pressas, estão presentes apenas para receber uma espécie de indenização do noivo, futuro marido de Teresa. O episódio é extremamente surreal, mas de uma familiaridade arrebatadora apenas para os que crêem que a realidade e a ficção não passam de uma troca de sinais da alegoria. 


O último episódio trata das façanhas do “professor” Ersilio Miccio, um “vendedor de sabedoria” que “resolve problemas” das pessoas que o procuram, com conselhos certeiros sobre tudo. Ersílio, sabia que se conselho fosse bom se vendia, e portanto os vendia, e com grau de assertividade elevadíssimo. Apenas não o entendi o assovio que Ersílio aconselha, ao final da estória, e que supostamente seria o antídoto contra a tirania. Na certa, coisa de italiano que só os de Nápoles vão entender, mas certamente algo que não altera em nada o conjunto de um filme muito belo.


O filme, aparentemente despretensioso, é digno de aplauso. As estórias estão recheadas de personagens bufos, acintosos, parciais, mesquinhos, intrometidos, frágeis, grandiosamente compassivos e de uma disparidade interna desconcertante. Isso é De Sica, né?


Contos da Lua vaga

Quando o Marcio Borges escreveu essa letra e o Beto Guedes a musicou, certamente, de cinéfilos que são, tinham assistido ao filme de Mizoguchi, Contos da Lua Vaga. De certo que este é um desses filmes pouquíssimo conhecidos, mas marcantes para qualquer pessoa que gosta de boas estórias. Kenji Mizoguchi era de Toquio. Morreu cedo. Teve uma infância marcada por perdas emocionais, doenças, perrengues sérios de grana e os traumas decorrente dessa coisa que chamam vida. O pai era carpinteiro – e para quem gosta de Cinema e Carpintaria, fico imaginando o grau de detalhe de uma espiga feita pelas mãos de um carpinteiro japonês.

Apenas para contextualizar o mundo do diretos, no ano de 1867, o último Xogun abdicou em favor do imperador Meiji. Teve início a Era Meiji.  O Japão se moderniza  A abertura foi favorável para o desenvolvimento industrial do Japão e sua inserção no mundo capitalista que estava em pleno desenvolvimento. No final do século XIX, o Japão era o país mais desenvolvido do Oriente, com uma economia dinâmica, porém com necessidades para ampliar sua expansão.

No final do século XIX e começo do XX, o Japão se envolveu em vários conflitos militares, cujo principal objetivo era a conquista territorial no Oriente. Na guerra contra a China, o Japão conquistou a Ilha de Formosa (atual Taiwan). No começo do século XX, o Japão invadiu e conquistou a Coreia. 

Entre 1904 e 1905, o Japão guerreou contra os russos na Guerra Russo-japonesa. Vencedores, os japoneses conquistaram a Manchúria (atual região nordeste da China) e se tornaram a principal força imperialista da região oriental.

Ou seja, o Japão era um país rico, e como todo o país rico, tinha muitos pobres, tal como a família dos Mizoguchis. O aperto era tanto que, sem dinheiro para mantê-lo na escola, aos 13 anos Mizoguchi vai viver com um tio na cidade de Morioka, onde termina a educação básica e vai trabalhar numa farmácia. Um ano mais tarde, retorna a casa paterna com crises decorrentes de artrite degenerativa, uma espécie de artrose -  doença de velho - que rói as cartilagens pelo desgaste do tempo. O problema o fez andar meio claudicante pelo resto de sua vida. Não bastasse as dores, uns anos mais tarde, vê a irmã mais velha, mas ainda novinha sendo vendida pelo pai para uma casa de gueixas. Aliás, essa irmã foi quem cuidou dele e dos irmãos quando sua mãe morre três anos mais tarde de retornar a casa, deixando-os órfãos na virada do século. Ao assistir os filmes do diretor, pode-se ter a certeza de que essa traumatizada e praticamente irreconciliável relação com o pai, se espelha e sua forte crítica ao patriarcado e seus efeitos embrutecedoramente nefastos.

Autodidata, ajudado pela irmã mais velha, Mizoguchi estudou ópera, teatro, pintura. Trabalhou como designer publicitário para jornais em Kobi e apenas dirigiu seu primeiro filme em 1923, aos 25 anos.

Mizoguchi morreria três anos mais tarde de ter montado Contos da Lua Vaga, um filme de 1953 baseado na série de contos de Akinari Ueda. Um filme que tem todos os componentes de uma grande obra, paixão e morte, amor, casamento, adultério. Num Japão violento e feudal do Século XVI, na aldeia de Nakanogo, as margens do lago Biwa, no período Sengoku, o oleiro Genjuro tem uma boa relação com seus vizinhos, Sua esposa e seu cunhado Tobei, que sonha em se tornar um grande samurai. Um sábio-sacerdote alerta à esposa de Genjuro, Miyagi, que ele deve buscar enriquecer em tempos de crise econômica e para se preparar a um ataque à aldeia onde vivem. Naquela noite o exército de Shibata Katsuie, varre a aldeia, destrói as casas e os dois casais são obrigados a atravessar a remo o Lago Biwa. Neste momento do filme o onírico e o real se imbricam de tal maneira que soa abusivo e irrelevante tentar entender a série de presságios que se manifestam em encontros casuais.

Atravessando o lago, os dois casais mais o filho de Genjura e Miyagi, cruzam com um homem numa canoa a deriva, que os avisa ter sido atacado por piratas. Avisa e morre no mesmo barco. As mulheres se apavoram com o mau pressagio. A esposa de Tobei se recusa a seguir viagem, Miyagi implora que Genjuro nao a deixem só na margem com o filho, mas assim mesmo ele a deixa. Apenas os homens seguem viagem com as mercadorias de Genjuro.

Estabelecido numa feira, Genjuro vende bem e assim que recebe sua parte pela empreitada, Tobei compra uma armadura de Samurai e deixa Genjuro para seguir seu destino.

Uma nobre, Lady Wakasa, acompanhada de sua serva, se encantam com as cerâmicas de Genjuro. Compram quase todos os seus objetos e exigem que ele os entregue no palácio Kotsuki. Chegando lá para levar a encomenda, Gejuro descobre que o patriarca tinha sido morto ali exceto Wakasa e sua serva. Ela o seduz e o convence a ficar e juntar-se a ela. O sagrado e o profano, a ortodoxia, a heresia (?) dionisíaca se debatem, a partir desse ponto da história. Uma constelação de desencontros trágicos e contradições movimentam-se ambivalentes na narrativa, e Mizoguchi nos convida a ver o seu anacronismo arcaico e arquetípico à luz de uma surpreendente maestria onírica.

Paralelamente o filme corta para a aldeia de Nakanogo, que esta sendo terrivelmente atacada por samurais famintos em busca de comida, e onde estão o Miyagi e seu filho. Na luta pela defesa de seu filho, ela acaba sendo esfaqueada e morrendo.

Na sequência, numa localidade chamada Omi, Tōbei apresenta a cabeça decepada de um general que malandramente ele roubou, ao comandante – por que sendo em qualquer quebrada, seja na no shogunato de Tokugawa, malandro é malandro e mané é mané.   Recebe assim a tão almejada armadura de samurai, uma montaria e uma comitiva. Mais tarde, Tōbei chega ao mercado em seu novo cavalo, ansioso para Chegar logo em casa, vestir o pijama, ir cedo pra cama quando acordar, sorrindo fazer teu café e levar de surpresa, regar o jardim, voltar pra empresa, pra sua esposa um dia orgulho dele. No entanto a vida sempre é meio de sem querer, meio que de real e de viés. Por que antes de ir para casa resolve dar uma passadinha numa parada pra ver umas mina, umas gueixa, umas situação… Na visita ao bordel encontra sua mulher trabalhando como prostituta. Desaba. Se recompõe e diz que vai resgatar sua honra.

Genjuro, sem saber da tragédia passada em casa,  ​​conhece um sacerdote que lhe diz para retornar para seus entes queridos ou aceitar a morte... Na cabeça do oleiro, o clique está na culpa pela infidelidade amorosa, se opondo à realização da paixão. E Genjuro retorna à mansão Kutsuki.


Nisso, o onírico e o real dão um nó cercados dos filtros mágicos, intrigas e enganos. E eis a contradição… Genjuro e Wakasa, quando os amantes, se encontram e não se podem tocar.

Quando Genjuro​​menciona a relação com Wakasa, o sacerdote revela que ela está morta e deve ser exorcizada e convida Genjuro ​​para sua casa, pintando símbolos budistas em seu corpo – o Peter Greenaway, anos mais tarde iria usar esse mote no sei The Pillow Book.  Genjuro ​​retorna para a mansão Kutsuki e admite que é casado, tem um filho e deseja voltar para casa. Wakasa se recusa a deixá-lo ir. Ela e sua serva admitem que são espíritos, que retornaram a este mundo para que Wakasa, morta antes de conhecer o amor, pudesse experimentá-lo. Eles dizem a ele para lavar os símbolos. Genjuro​​pega uma espada, as afugenta e se joga para fora da mansão e desmaia.

No dia seguinte, ele é acordado por soldados que o acusam de roubar a espada, mas ele nega, dizendo que é da mansão Kutsuki. Os soldados riem dele, dizendo que a mansão Kutsuki tinha sido incendiada há um mês. Genjuro ​​surge e encontra a mansão nada mais do que uma pilha de madeira queimada. Os soldados confiscam seu dinheiro, mas como o exército de Shibata incendiou a prisão, eles o deixam nos escombros. Ele volta para casa a pé, em busca de sua esposa.

Miyagi, encantada em vê-lo, não o deixa de falar  sobre seu terrível erro. Genjuro​​segura seu filho adormecido nos braços e eventualmente adormece. Na manhã seguinte, Genjuro ​​acorda com o chefe da aldeia batendo em sua porta. Ele fica surpreso ao ver Genjuro ​​em casa e diz que está cuidando do filho de Genjuro. Genjuro​​chama Miyagi; o vizinho pergunta se Genjuro ​​está sonhando porque Miyagi foi morta após ser esfaqueada. Na manhã seguinte, quando Tōbei comprou de volta a honra de Ohama, eles retornam para Nakanogō. Tōbei reflete sobre seus erros, de maneira nem clara, tampouco conclusiva,  ambos resolvendo trabalhar duro a partir de agora. Genjuro ​​continua cuidando de Genichi e trabalhando em sua cerâmica, talvez certo de que A fidelidade amorosa se opõe à realização da paixão.

Um desses filmes que marcam, deixam sensações quase físicas com uma vaga sensação de aniquilamento que perdura. Genjuro é o arquétipo do homem simples, qualquer um, qualquer um, mesmo. Nosso anti-herói nasce desse enigma da simplicidade, onde a morte prolonga a paixão, eterniza a paixão, supera o limite que a mata, que a aniquila. E põe fim ao fim.

Nota: 

Se não é isso...

Um abrigo

Que possa guardar

A vitória do sentimento claro

Vencendo todo medo

Mãos dadas pela rua

Num destino de luz e amor

...pode ser algo parecido, o que Marcio e Beto viram no filme do Mizoguchi. 


Todas as manhãs do mundo

 



Todas as manhãs do mundo é um filme francês de 1991 dirigido por Alain Corneau, um diretor francês um uma extensa produção fílmica, mas pouco conhecido fora da França. O filme é baseado na novela homônima do escritor francês Pascal Quignard, e tem como protagonista, não Gérard Depardieu, como muitos pensam, mas a música. Apesar de um roteiro linear, abortando um tema um tanto austero como a música erudita barroca, o filme é fluido. Ambientado durante o reinado de Luís XIV, o filme mostra a trajetória do músico Marin Marais, relembrando em flash banks sua juventude quando ele foi brevemente aluno de Monsieur de banks, um dos maiores músicos especialistas na viola de gamba. Colombe, interpretado pelo ator Jean Pierre Marielle, é um homem ´austero e mudo como um peixe´, nas palavras de Marais. O filme começa com a cena de um Marais já envelhecido, relembrando os anos juventude quando ele foi renegado por Sainte Colombe, um homem viúvo, jansenista por princípio religioso e com duas filhas para criar. Durante as divagações de sua memória, ele interrompe um de seus sectos e diz que ´todas as notas de uma música devem terminar morrendo´.
Após a morte de sua esposa, banks se isola numa cabana, nos fundos de sua propriedade, e dedica-se inteiramente à sua música, criando suas duas filhas por conta própria, ensinando-as a serem musicistas e tocando com elas para um público nobre local. Colombe não vê mérito musical no jovem Marais e o manda embora, recusando-se a ensiná-lo. Madeleine, a filha mais velha, fica triste por se apaixonar por Marais. Ela ensina a ele o que seu pai lhe ensinou e permite que ele ouça em segredo o pai tocando. Durante esse período, Marais é contratado para ser músico da corte e paralelamente inicia um romance com Madeleine, que não é correspondida em sua paixão.
Marais e Madeleine começam um relacionamento. Marais deixa Madeleine gravida, que dá à luz um filho morto. Marais se casa com outra mulher, a irmã mais nova de Madeleine se casa e tem cinco filhos, deixando sua vida prosseguir. Mais tarde, Madeleine fica gravemente doente. banks chama Marais para sua casa, onde Madeleine moribunda pede para ouvir de seu antigo amante uma peça que ele escreveu para ela: "La rêveuse" ou "A sonhadora". Depois que Marais sai, Madeleine se enforca com os cadarços de um par de sapatos, que havia sido um presente rejeitado, dado por Marais, anos antes.
A reputação de Colombe chega à corte e o rei envia Caignet, um dos principais músicos da Corte para solicitar que ele toque na corte. Sainte-Colombe dispensa bruscamente o enviado. A cena é teatral. Colombe, que é um homem igualmente rude e erudito, empurra o afetado Caignet para fora de sua propriedade e diz que não precisa da corte, já que é um homem que vive no meio das orquídeas que se enraízam na madeira dos troncos cinzentos e que vive apenas para o som das sete cordas de sua viola e para suas duas filhas. Seus amigos são suas memórias, e sua corte é composta por salgueiros, córregos com peixes miúdos, e botões de rosas. E arremata que a Corte, não precisa de um homem rude como ele.
Sainte-Colombe se isola cada vez mais em uma cabana em seu jardim, a fim de aperfeiçoar a arte de tocar viola, passa a ter visões com sua esposa falecida.
Anos mais tarde, o velho Marais volta para reencontrar seu mestre na cabana. Encontra um Sainte-Colombe solitário, que reconhece finalmente a musicalidade de Marais. Alias este último diálogo entre Sainte-Colombe e Marais é de uma beleza poética e visual inigualável. Os dois se reencontram na cabana, bebem e começam a discutir o que seria a essência da música. Colombe diz que a música existe para dizer coisas que as palavras não são capazes de dizer, por isso mesmo é algo que não é inteiramente humano e dificilmente alcançável, como a Graça que está para os jansenistas, assim como a luz está para o espírito. Ele reitera que, portanto, a música não é para os reis, para entreter o Poder. Marais diz que a música é Deus, e Colombe discorda dizendo que `Deus é capaz de falar pelas palavras`, portanto nem isso é a música, e Marais vencido em suas tentativas de definição cede e os dois começam a tocar. Marais toca a viola de gamba de sua falecida amante, Madaleine, filha de Colombe.
Enfim, o título do filme é explicado no final do filme; «Todas as matas do mundo sem retorno» ("todas as manhãs do mundo nunca voltam") ditas por Marais, quando ele descobre a morte de Madeleine. E a música é de uma beleza indescritível em palavras.

LUIZ PACHECO

 


Título: Luiz Pacheco
Dimensões: 9x9cm
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Maio de 2022
 
 
Luiz José Gomes Machado Guerreiro Pacheco foi um poeta surrealista, editor, crítico literário, enfim um comunista e grande polemista, de quem se disse quase tudo de mal e feio, enquanto vivo e depois de morto. Nasceu em Lisboa a 7 de maio de 1925. Era filho único de uma família de classe média de origem do Alentejo, o pai era funcionário público e músico amador. Na juventude, Luiz Pacheco teve alguns envolvimentos amorosos com mulheres menores de idade, o que o levaria por duas vezes à prisão.
 
Estudou no Liceu Camões e frequentou o primeiro ano do curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa. A partir de 1946, trabalhou como agente fiscal da Inspeção Geral dos Espetáculos, acabando por se demitir, por ter se cansado do trabalho. Essa inconstância juvenil o acompanhou por quase toda sua vida, conformando a trajetória de sua existência atribulada. Cada vez com mais filhos e sem meios de subsistência para sustentar as famílias já numerosas e crescentes - que ao todo foram 8 filhos de 3 mães adolescentes - chegou mesmo a viver em alguns momentos às custas de esmolas, hospedando-se em quartos alugados e indo parar à fila da Sopa dos Pobres.

A partir de 1945 começa a fazer alguns amigo  e inimigos quando começa a publicar diversos artigos em vários jornais e revistas, como O GloboBlocoAfinidadesO VolanteDiário IlustradoDiário Popular e Seara Nova. Em 1950, funda a editora Contraponto, onde publica escritores como José Cardoso Pires, Maria Lisboa, Raul Leal dentre muitos outros de quem, inclusive, conseguiu ser amigo.

Foi sempre muito próximo dos surrealistas portugueses e verdadeiramente o seu primeiro e apaixonado editor. A relação começa por volta de 1953 quando publica o Manifesto Surrealista “Afixação Proibida”. O crítico João Gaspar Simões chamou-o de "sacristão do surrealismo", se tornando amigo íntimo de António Maria Lisboa e de Mario Cesariny, que mais tarde cortaria relações com Pacheco por desavenças intelectuais, mas que de fato se deviam à questões paralelas. Quando em 1959 Cesariny troca a Contraponto pela Guimarães Editores, o caldo entorna. Pacheco sente-se traído e aproveita a ocasião de uma exposição de pinturas de Cesariny para escrever um artigo “Cesariny ou do Picto-Abjeccionismo” onde expões 3 razões para se detestar as pinturas de Cesariny, dentre elas, acusações de que se vendera ao Mercado, e de que a obra não passaria de um bluff surrealista, o que a geração atual talvez chamasse de fake. A briga se prolonga por alguns anos e Cesariny. O espólio dessa guerra é recolhido por um Pacheco com faro de editor, para publicar em 1974 o volume Pacheco vs Cesariny. Cesariny por sua vez funda o jornal O Gato, onde revela implicações sobre a suposta homossexualidade de Pacheco. Fato que Pacheco jamais perdoaria em Cesariny, e sempre que tinha a oportunidade de soltar algum veneno contra o antigo desafeto o fez, mesmo depois da morte de Cesariny.
 
Abrasivo, Pacheco era um homem sem filtros no melhor estilo das personalidades encrenqueiras e bipolares. Um crítico furioso, mas com uma lucidez provocadoramente genial. De sua boca saíram pérolas de insultos que muitos já até chegaram a pensar, mas pouquíssimos teriam a coragem sequer de dizer a primeira sílaba de seus pejorativos. Para ele, o escritor Fernando Namora era menor que um cão, Saramago deveria ter parado de escrever em “Memorial do Convento”, Inês Pedrosa era uma estúpida, Natália Correia uma devassa, e Cesariny, por alguns anos um dos seus melhores amigos literários, era um poeta de urinóis. Mais direto, corrosivo e politicamente incorreto, impossível.
 
Com Herberto Helder chegou quase às vias de fato. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, Helder havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo nosso bom e velho safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que agora decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.
 
Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o velho Pacheco, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. E realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns, e outros dizem até que rindo de toda aquela situação.
 
Pacheco era alto, magro, careca, usava óculos de lentes grossas decorrente de fortíssima miopia. Beberrão, porém hipersensível ao álcool desconcertava-se facilmente. Além do mais, era um inveterado hipocondríaco, o que lhe dava um ar compassivo pela sua asma crônica e caricato por vestir roupas usadas e andrajosas, ao mesmo tempo.
A sua obra literária, constituída por pequenas narrativas e relatos (nunca se dedicou ao romance ou ao conto) tem um forte pendor autobiográfico e libertino, inserindo-se naquilo a que ele próprio chamou de corrente "neo-abjeccionista". Em O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor (escrito em 1961), texto emblemático dessa corrente e que muito escândalo causou na época da sua publicação (1970), narra um dia passado numa Braga fantasmática e lúbrica, e a sua libertinagem mais imaginária do que carnal, que termina de modo frustrantemente num onanismo solitário.
Excêntrico, em 1989, Luiz Pacheco tornou-se militante do PCP, segundo o próprio afirmou em entrevista, "para ter um enterro igual ao de Ary dos Santos". Morreria 19 anos depois, sem a mesma pompa de Ary. Passou os últimos anos fisicamente debilitado, quase cego em decorrência de uma catarata, na casa de um filho, e posteriormente passaria por quatro lares de idosos na cidade de Montijo. Morreu a 5 de Janeiro de 2008, a caminho do hospital de Montijo.
 
 


MANUEL DE CASTRO

 



Título: Manuel de Castro
Dimensões: 9x9cm
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Maio de 2022
 
Manuel de Amorim de Castro Cabrita morreu muito jovem, aos 36 anos, a 12 de Setembro de 1971, após 5 anos de sofrimentos, deixando esposa e duas filhas. Tendo estudado em seminários religiosos, tornou-se um homem de vasta cultura. Tinha grande facilidade com idiomas, tanto que nas férias de verão, ele e o padrinho, o então Ministro da Justiça Manuel Rodrigues, traduziam as notícias do Diário de Notícias para o latim, por pura diversão. Além do latim, dominava o espanhol, francês, inglês, italiano, alemão e o dialeto de Heidenheim, cidade em que viveu por 4 anos e acabou como interprete da polícia local, devido a quantidade de imigrantes de outras partes da Europa.

O poeta Manuel de Castro viveu os primeiros anos da infância em Goa, onde seu pai Henrique de Mesquita de Castro Cabrita era encarregado do Governo colonial, e depois viveu em Lourenço Marques, em Moçambique, para onde o pai foi transferido. De regresso a Lisboa, com a família, acaba por perder a mãe, Ana Maria Luísa Henriqueta de Mira Godinho Gomes da Costa Massano de Amorim de Mesquita de Castro Cabrita, aos 6 anos em circunstancias trágicas -  que uns dizem, vítima de feminicídio, espancada até à morte pelo marido, outros, suicídio. Sendo enviado dois anos mais tarde para o Seminário dos Padres da Consolata, uma ordem italiana recém chegada a Portugal. Sem vocação sacerdotal, foge do seminário, tornando-se nos aos seguintes um autêntico autodidata adquirindo conhecimentos em vários ramos das Humanidades e aprendendo vários idiomas. De volta à casa encontra o lugar da mãe preenchido por outra senhora, pouco hábil para gerir a situação, o que lhe causou novo choque emocional, atenuado anos mais tarde pelo nascimento de um irmão com quem estabeleceu laços mais fortes dos que sempre tivera com seu irmão Germano.

Em 1958 imprimiu o seu primeiro livro de poesia (A Zona), no mesmo ano aliás em que se casou com Maria Natália de Lima Freire de Castro, com quem teria duas filhas. O livro nunca foi comercializado e apenas oferecido a alguns amigos. Mais tarde publicou o Paralelo W com capa do desenhador [João Rodrigues (1937-1967)], e depois a Estrela Rutilante.  Estrela Rutilante, inclusive, fez parte de uma coletânea que está presente em três das quatro cartas dadas a conhecer por Helder Macedo, então em viagem a Londres, via África do Sul.

Com a repercussão de suas obras, abriu-se as portas para o mundo das letras e do jornalismo literário. Assim, tinha uma coluna nos jornais A República e o Diário de Lisboa. Publicou também no Diário Ilustrado - jornal de elites que teve curta duração, na Via Latina - jornal literário da Academia de Coimbra, e no Jornal do Fundão. Teve passagens pelo Notícias da Amadora e colaborou em outras revistas, tais como a revista Pirâmide (1959-1960) ao lado de nomes como a pintora Maria Helena Vieira da Silva, a poetisa Natália Correia, Edmundo de Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa. E finalmente marcou presença nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio - Revista da Fundação Calouste Gulbenkian, na Árvore, na ETC, na Contraponto.
Como tradutor, fez várias traduções de livros, como por exemplo O Dossier do Catecismo Holandês, A Paixão do Incesto e obras do antropólogo Claude Levi Strauss, além de Expédition Orénoque - Amazone do poeta Alain Gheerbrant.

Castro foi um poeta de biografia curta, difícil e tempestuosa. Homem de vasto saber, teve um período escolar e acadêmico, em geral, tumultuado e irreverente, na busca perseverante por acumular conhecimentos. Como todo o autodidata, interessou-se por ramos de conhecimento que envolviam as humanidades, poesia, filosofia, literatura e línguas. Como já dito, dominava sete idiomas e mantinha uma relação de resistência com o mundo ao seu redor. Não raros são os comentários de amigos que se refiram ao seu alcoolismo e ao seu humor instável. Alguns contabilizavam a geniosa personalidade no trauma da perda da mãe. E exemplos não faltam no anedotário em torno a ele. Para alguns era extremamente tímido e sem jeito para o convívio social. Por exemplo, se alguém lia algum poema que não gostasse, não tinha papas na língua para demolir o declamador. Provocador, envolvia-se em brigas discussões grosseiras, bebia cada vez mais e mesmo já diagnosticado com a doença que o mataria, não parava de beber. Acabou por falecer em Lisboa a 12 de setembro de 1971, após 5 anos de porres, ressacas e sofrimentos.  

ANTÔNIO GANCHO

 



Título António Gancho
Dimensões: 9x9cm
Data: junho de 2022
Técnica: xilogravura
 
António Luís Valente Gancho foi um poeta português, nascido EM 1940, na Rua dos Touros, n.7, em Évora. Poucos mais do que alguns episódios erráticos se sabe de sua infância. Sabe-se, por exemplo, que a família muda-se de Évora para Lisboa em 1957, quando o rapaz tinha 17 anos, e que teve um certo amor não correspondido no Liceu, por uma tal Gisela. Sabe-se que a avó morreu no ano de 1972, quando este já estava ingressado em instituições psiquiátricas, e que a após a morte do irmão não voltou mais a escrever. E não muito mais se sabe deste homem que é poeta.

Vítima das misérias institucionais do Estado e até mesmo de abuso psiquiátrico, António Gancho viveu desde seus 28 anos, em instituições psiquiátricas, internado primeiramente no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos após uma tentativa de suicídio, e, a partir de 1967, definitivamente na Casa de Saúde do Telhal, uma instituição psiquiátrica pertencente à Ordem Hospitaleira São João de Deus, na região de Sintra. Aí morreria o poeta em 2 de Janeiro de 2006. Foram 38 anos de sua vida em tais manicômios.

Afastado forçosamente da convivência editorial devido ao seu internamento, foi através do contacto com alguns amigos dentre os quais se destacam Álvaro Lapa, Ernesto Sampaio, António Palolo e Mário Cesariny, que frequentavam o mítico Café Gelo, e que eram ligados ao grupo dos surrealistas, que a sua produção chegou às mãos de um editor. Foi Álvaro Lapa, pintor e escritor, seu conterrâneo de Évora e frequentador do mítico Café, quem arranjou um editor quando o poeta disse que tinha um livro para publicar.
A poesia de António Gancho permaneceu inédita até 1985, data em que Herberto Helder reuniu, na sua antologia Edoi Lelia Doura, onze poemas do autor até então completamente desconhecido. Helder convidou-o para com uma seleção de 11 poemas em sua antologia Edoi Lelia Doura das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 1985).

Posteriormente viriam dois livros O Ar da Manhã, de 1995, com toda a sua poesia reunida desde a década de 1960 até 1985, e As Dioptrias de Elisa de 1997. Para os que queiram se iniciar na poesia de Gancho, O ar da Manhã é um livro interessante, dividido em três conjuntos autónomos de poemas («Gaio do Espírito», 1985/86, «Poesia Prometida», 1985, e «Poemas Digitais», 1989). Trata-se de uma série de poemas que ora, exploram um jogo de palavras e sentidos que permitem quase uma materialidade sonora que ocorre em «Route / Rota / Caminho puro e são / Chanção / Coração / Sahara / Uazara / Oasara / Oasimara», ora traçando uma interessante intertextualidade com outros autores, como quando faz um tributo a François Villon e Oscar Wilde, escrevendo poemas em seus idiomas originais. Tais poemas provam que dominava do idioma francês e do inglês. 

Por vezes imprimia uma lucidez obscura, noturna, talvez decorrente dos sofrimentos e privações em instituições psiquiátricas, “Noite, vem noite sobre mim sobre nós/ dá repouso absoluto de tudo/ traz peixes e abismos para nos abismarmos/ traz o sono traz a morte…” 
 

 


MAURA LOPES CANÇADO

 



Título Maura Lopes Cançado
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: xilogravura


Filha de José Lopes Cançado e Affonsina Álvares da Silva, Maura foi a nona entre onze filhos. Nasceu a 27 de janeiro 1929, na próspera fazenda de seus pais em Minas Gerais, no atual município de São Gonçalo do Abaeté. Oriunda de uma família católica, não necessariamente mais rica, mas uma das mais aristocráticas mineira, Maura descendia de figuras históricas com forte influência e destaque na política mineira e nacional, sobressaindo o nome de José Maria Lopes Cançado - primo do pai de Maura -, um dos parlamentares participantes da Constituinte de 1946. A mãe de Maura, por sua vez, é descendente de Dona Joaquina Pompeu, latifundiária e mítica escravocrata na história mineira. Assim, cresceu com uma difusa sensação de que nem tudo é tão difícil como parece na vida.

Filha temporã, sua infância foi cercada de cuidados intensos, por apresentar uma saúde muito frágil. Um ambiente opressivo, onde tinha inveja da irmã mais nova, Selva, por exemplo, por esta poder usar um chapéu vermelho. Principalmente, por que a mãe tinha feito uma promessa de vesti-la apenas de azul e branco, cores da Nossa Senhora, enquanto o pai não permitia que se lhe cortassem os cabelo. A promessa tinha prazo de validade: até que completasse 7 anos. Mas justamente quando deixou de usar as cores, coincidência ou não, ela teve a primeira crise epilética.

Sua imaginação sempre foi intensa fabulando versões de sua própria vida. Contava às amigas de infância que era filha de russos e que um seu tio nascera na China. Aos 14 anos quis estudar alemão para ser espiã nazista, e voar.

Em tempos de estudante, frequentou as boas escolas de elite mineira, tendo por um período estudado em colégio interno em Patos de Minas.  Aos quatorze anos começou a frequentar o aeroclube de Bom Despacho com a intenção de tirar o brevê de aviadora. Ali conheceu o jovem de dezoito anos com quem iria se casar, Jair Praxedes, filho de um coronel do exército, de quem engravidou logo após o casamento, realizado apenas no religioso, dando à luz um menino Cesarion - mesmo nome do filho de Cleópatra e Júlio César. A relação durou doze meses. O casamento terminou quando tinha apenas quinze anos de idade, ano também marcado pela morte do pai.

Anos mais tarde a escritora descreveria sua passagem da infância para a  adolescência como “superangustiada”, cercada por pesadelos, tanatofobias, ataques de epilepsia, e, segundo relatou no Hospício é Deus, foi abusada sexualmente três vezes por empregados da família. Sobre o breve casamento, Maura admitiu que, durante o curto tempo de matrimônio, no fundo em quem pensava mesmo, sexualmente falando, era no coronel Praxedes, seu sogro, “maravilhoso, alto, imponente e importante”.

Com o filho ainda bebê, a mãe a presenteia com um pequeno avião, um Paulistinha - mesmo sabendo que a filha era epilética -, no qual coloca o nome de “Cesarion”, mas pouco tempo depois, o avião estava completamente destruído num pouso forçado de emergência. Foi então para Belo Horizonte para concluir seus estudos, mas o fato de ser jovem, mulher, divorciada, nos anos 1940, não reverberava bem no tradicional costume mineiro.  Com essa espécie de estigma, por ser uma mulher divorciada, perambulou de pensionato em pensionato, até poder se hospedar num luxuoso hotel na cidade. Morando sozinha, estudando duas ou três línguas, passou a frequentar a boemia de Belo Horizonte. Saía muito, fumava, bebia e frequentemente se divertia com esses novos amigos, até que em 1949, aos vinte anos, quando se descreveria como nervosa, doente, magra e sem sono, Maura se interna pela primeira vez na Casa de Saúde Santa Maria, uma clínica psiquiátrica, na capital de Minas Gerais. 

O fato é que Belo Horizonte ficara pequena para essa mulher que pensava e se comportava à frente de seu tempo. Sem perspectivas, decidiu então viver no Rio de Janeiro, aos 22 anos, não sem antes, no final dos anos de 1950, internar-se no Hospital Gustavo Reidel, no Engenho de Dentro. Se dizia uma mulher bonita e com uma inteligência acima do normal. 

Quando começa a se aproximar de jornalistas do Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã já se percebia uma personalidade sedutora e explosiva. Em menos de 7 anos já teria alguns polêmicos contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, passando a conviver e a beber com intelectuais e escritores como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Reynaldo Jardim.

Os ventos iam de encontro a Maura, pois coincidentemente o Suplemento Dominical tinha aberto espaço para essa nova geração de escritores, jornalistas e críticos que ainda contava com Ferreira Gullar, Mário Faustino, Clarice Lispector e José Louzeiro.  alguns destes  se tornariam platéia cativa para as histórias fantásticas de Maura.

Para se ter uma idéia da influência deste caderno do Jornal do Brasil, a arte de vanguarda tinha seu lugar de discussão no Suplemento Dominical, onde, entre outras coisas, o poeta Mário Faustino assinava a revolucionária página “Poesia-Experiência” e onde também foi publicado, em 1959, o famoso Manifesto Neoconcreto.

Quando o jornalista Sebastião de França, que morava na mesma pensão de Maura, nas proximidades da rua Riachuelo, trouxera o original de um poema para o parecer de Assis Brasil junto a uma advertência, “ela é maluca e bipolar," Assis responde: “Então somos dois”.

Aprovado pela editoria, o poema sai na primeira página do Suplemento Dominical em 24 de agosto de 1958,  ao lado de um artigo e um outro poema:   O artigo era da temida Barbara Heliodora sobre a visita do ator e teatrólogo Alessandro Fersen, e sua montagem Il Diavolo Peter, no Brasil. O poema ao lado, era de um poeta amazonense, o bissexto  Antisthenes Oliveira Pinto, um dos articuladores do Clube da Madrugada manauara.

No período em que colaborou com esses jornais, teve sucessivas crises que a levaram a hospitais psiquiátricos, sendo que boa parte dessas internações foram voluntárias. Uma das primeiras dessas crises mais evidentes acontece justamente quando da publicação de “No quadrado de Joana”, conto publicado na primeira página do SDJB, onde a personagem catatônica, obsessiva, anda em linha reta, sem parar, pelo pátio quadrado de um hospício. Na ocasião, Maura agradece tão exageradamente a Reynaldo Jardim, que o episódio é narrado da seguinte forma pelo jornalista José Louzeiro, colega de Maura no Suplemento Dominical, “Ela ficou tão surpresa que no dia seguinte, nós estávamos na redação – era uma redação só para o suplemento, um espaço muito bem iluminado, o chão muito cheio de sinteco –, ela se atirou no chão pra agradecer o Reynaldo Jardim, de joelhos. Escorregou, esfolou os dois joelhos, nos deu um trabalho… Tivemos que levar Maura na farmácia pra remendar o joelho, ficou todo esfolado. Essa era a Maura.”

Segundo Carlos Heitor Cony, este foi o início de uma série de contos magistrais. Cony declarou certa vez que a comparavam a Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. “Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura”, conclui Cony.

Maura se tornou escritora revelação de 1958 quando publicou em 16 de novembro “No quadrado de Joana”. Um conto que traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício, conto, inclusive, que chega a ser elogiado por Clarice Lispector. No ano seguinte publica 3 contos no Suplemento Dominical, "O Rosto" em 19 de abril, "Introdução a Alda" na edição de 22 de agosto e "O Sofredor do ver" em dezembro do mesmo ano. No ano de 1961 publica "Rosa recuada" em maio, e em julho publica um de seus mais tocantes contos, "Espiral ascendente", que traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia, a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre -  tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra e ameaçou jogar-se de uma cachoeira.  Uma situação que lembra bem o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud no limite da fronteiras da sanidade, entre a arte e a vida. Outros 2 contos, "A menina que via o vento" e "Espelho morto" seria publicados respectivamente em dezembro de 1964 e novembro de 1965. 

Já, tanto nesses primeiros contos, como em seu primeiro livro Hospício é Deus, apresentava uma escrita diferente. Uma preferência pela técnica narrativa da autoficção, permeada por uma veia confessional.  Não por acaso o crítico Assis Brasil, um dos poucos, senão o único crítico renomado a analisar seu livro de contos, a considerava uma revelação literária da virada dos anos 50 para os 60.

Ainda trabalhando na redação do Jornal do Brasil, tinha surtos bipolares. Num dos episódios de extrema agressividade, Maura atirou uma máquina de escrever pela janela da redação do JB. Também chegou a jogar uma estante sobre um colega sem nenhum motivo aparente. Reconhecendo sua própria fragilidade se internou voluntariamente, em 1959. Internou-se no Hospital Gustavo Riedel do Engenho de Dentro, ficando entre outubro de 1959 e março de 1960.

Nesse período, já com 30 anos. Por sugestão de Reynaldo Jardim, escreveu o diário que viria a ser publicado cinco anos mais tarde como O hospício é Deus: diário I, publicado em 1965, enquanto os contos que haviam sido lançados no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã viriam a ser publicados na coletânea O sofredor do ver, seu segundo e último livro com uma coleção de contos, em 1968.

Em O Hospício É Deus, descreve a infância passada na fazenda e analisa os precoces embates em seu mundo interior. As expressões e modo de narrar, denotam o contexto opressivamente religioso e católico que a obrigara a usar azul e branco até os 7 anos de idade. Denuncia os abusos sofridos por Maura e outros pacientes no Gustavo Riedel e foi um marco na luta antimanicomial:
Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providencias para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. […] o professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”.

Os diários teriam supostamente uma segunda parte que foi esquecida por José Álvaro, editor do livro, dentro de um táxi. Nunca foi encontrada. 

Após este período de internação,  já passava por dificuldades financeiras, dividindo apartamento na rua Riachuelo com uma bailarina e trabalhando como escrevente datilógrafa no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Permaneceu nesse trabalho, como funcionária pública, por oito anos, sempre entre uma licença e outra para se internar ainda às custas do IPASE, o extinto Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado.
Já nos anos 1970, estava num estado de completa pauperização. Dependia da ajuda de amigos e de seu incansável filho, Cesarion, agora com 27 anos. Ele a acompanhava e custeava as internações, algumas pela via de convênios médicos.

Segundo Carlos Heitor Cony, quando calma, era uma mulher “doce, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.”  

Numa dessas internações, na noite de 11 de abril de 1972, Maura, recolheu-se à noite para dormir. Cerca de três horas depois, foi até o consultório médico, dizendo a uma funcionária que havia matado uma das pacientes, que se encontrava na enfermaria do Hospital Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma jovem grávida, morta por estrangulamento, com uma faixa de pano rasgada de um lençol. O médico plantonista relatou que Maura assumiu a responsabilidade pela morte da jovem paciente.
Maura foi julgada pelo Tribunal do Júri e, em 15 de outubro de 1974. Foi considerada inimputável - incapaz de responder ao caráter criminal dos fatos cometidos. O juiz aplicou uma medida de segurança de internação em um estabelecimento psiquiátrico judiciário com uma duração de seis anos.

Nesta época, o manicômio judiciário do estado do Rio de Janeiro não aceitava mulheres e as clínicas e hospitais psiquiátricos particulares se recusavam a recebê-la. Maura foi então enviada à Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, onde ficaria por 6 anos.

A jornalista Margarida Autran encontrou a escritora em julho de 1977 no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito. Encontrou-a abandonada, numa cela imunda, infestada de percevejos. A jornalista a descreve como uma mulher envelhecida, desnutrida, parcialmente cega e com dentes podres, sem nenhum acompanhamento psiquiátrico. O banho de sol lhe era negado, por seu comportamento constantemente irascível, e seu único contato com o mundo era um radinho de pilha. Por meses ninguém a visitava. José Louzeiro e outros amigos do Sindicato dos Escritores do Município do Rio de Janeiro, compadecisdos, se prontificaram, à época, a pagar uma clínica psiquiátrica e a operação de cataratas, tendo votado a enxergar. Mas depois de seis anos de reclusão no hospital psiquiátrico, Maura foi solta em 1980, passando por várias outras clínicas nos 13 anos seguintes, sem nunca mais voltar a escrever.

Nos últimos anos, com a saúde debilitada pela asma e por não aceitar parar de fumar, passou a ser constantemente internada no Centro de Terapia Intensiva. Em 19 de novembro de 1993, Maura faleceu vítima de insuficiência respiratória decorrente de “doença pulmonar obstrutiva crônica”, aos 64 anos de idade, no Rio de Janeiro (RJ)
“Morreu esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas particulares”, escreveu Carlos Heitor Cony (1916-2018), em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo em junho de 2007.

No mesmo ano, Flávio Moreira da Costa organizou no Brasil a obra “Os melhores contos de loucura”, na qual é a única escritora mulher, que ainda estaria na expectativa de ser revisitada. Em 2011, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil reeditou pela primeira vez a íntegra do livro “O sofredor do ver” que possuía apenas uma edição conhecida e muito rara datada de 1968.



CAROLINA MARIA DE JESUS

 


Título Carolina Maria de Jesus
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: litogravura sobre xilogravura
 
Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira, escreveu Carolina Maria de Jesus em um dos seus livros mais emblemáticos. Nasceu a 14 de março de 1914, na cidade mineira de Sacramento. A mãe era uma pequena agricultora, sendo que o pai era um homem bastante agressivo. Ambos semi-letrados. Cresceu sempre com alguns problemas respiratórios e aos sete anos, a mãe obrigou-a a frequentar a escola. Mas ela abandonou os estudos no segundo ano, por já entender que sabia ler, escrever, e perceber que tinha já apego suficiente à leitura, para que não precisasse mais da escola.
Quando sua mãe morreu, tinha 23 anos e migrou para São Paulo, tentar a vida. Na cidade, trabalhou como babá, doméstica, explicadora, e catadora de papel. Por um tempo foi empregada doméstica de um famoso cardiologista paulista, o que permitiu Carolina ter acesso à biblioteca do médico, nos dias de folga.
Em 1937, se muda para o novo bairro do Canindé, uma comunidade pobre às margens do Rio Tietê, onde constrói, ela própria, uma casa com restos de papelão, madeira e chapas de metal. Aos 33 anos, desempregada e grávida tem seu primeiro filho de uma relação com um marinheiro português, passando a dividir seu tempo entre cuidar do bebê e sair pelas noites para coletar papel, a fim de conseguir dinheiro para sustentar a nova família. Carolina teria mais dois filhos em 1949 e 1953. Os três filhos, como ela mesmo disse, foram de relacionamentos diferentes e todos frutos de gravidezes não planejadas, o primeiro filho nasceu de um português, o segundo de um comerciante espanhol e a terceira  de empresário brasileiro que a agredia e humilhava. Carolina nunca quis se casar para, ainda segundo ela, não ter que ser submissa aos homens.
Ao mesmo tempo em que trabalhava como empregada doméstica ou catadora, ia registrando o cotidiano da comunidade onde morava nos cadernos que encontrava e no material que recolhia. Em algo como 15 anos, juntou mais de vinte cadernos de escritos, cujos crassos erros gramaticais e de grafia, ao mesmo tempo em que denunciavam sua pouca escolaridade, não a impediram de fazer sucesso no mercado editorial. Um destes cadernos, um diário que havia começado em 1955, deu origem a seu livro mais famoso, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960, no qual ela supostamente diz, Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira.  
Qualquer aluno da área de humanas em estudos latino americanos numa universidade americana, qualquer mesmo, já folheou Quarto de Despejo, que na versão deles saiu com um título mais edulcorado: Child of the Dark. Alunos brasileiros não tiveram esse privilégio intelectual por algumas décadas, pois suas reflexões sobre o Brasil, a miséria, a desesperança, a violência, e a condição da mulher negra na miséria brasileira, não se encaixaram no Modernismo, nem em suas versões regionalistas plastificadas, nem em sua terceira fase de prosa urbana, e nem na prosa memorialista ou autobiográfica de um Pedro Nava ou Érico Veríssimo. E, muito, muito menos no otimismo dos 50 anos em 5 do período Kubitschek.
Estima-se que o livro, ao longo dos anos vendeu mais de 1 milhão de cópias. Em 1962, Quarto de Despejo foi publicado nos Estados Unidos pela editora E. P. Dutton com o título Child of the Dark. No ano seguinte, como parte da coleção Mentor, a tradução ganhou uma edição de bolso publicada primeiro pela New American Library, depois pela Penguin USA. No Brasil, chegou a ficar na lista dos mais vendidos por meses, batendo inclusive Gabriela, cravo e canela do já renomado Jorge Amado.
Segundo o historiador americano Robert Levine, somente das vendas desta edição, que totalizaram mais de trezentas mil cópias nos EUA, Carolina e sua família deveriam ter recebido, pelo contrato original, o equivalente a mais de cento e cinquenta mil dólares. Mas a autora nunca viu a cor desse dinheiro.
As hipóteses para que isso tivesse acontecido são muitas, e envolvem um compreensível desconhecimento da autora sobre as falcatruas do mercado editorial, um certo mau-caratismo de editores, e até uma suspeita de estelionato intelectual. Tudo vago e nebuloso, numa óbvia maciota, onde mesmo que ninguém possa provar nada contra ninguém, fica aquela pulga atrás da orelha.
É certo que Carolina tinha direito a dez por cento do preço de venda das traduções, com trinta por cento de sua parte reservada ao jornalista Audálio Dantas, que trabalhava como uma espécie de copidesque, revisor e agente literário. Até aí, tudo bem. Ela recebia pequenos pagamentos em dólares das editoras americanas, mas, por força do contrato original, não podia autorizar traduções de sua obra: este direito fora cedido à editora Paulo de Azevedo, uma filial da editora Francisco Alves.  
De uma certa forma, o encontro com o jornalista Audálio Dantas, da Folha da Noite, em 1958, foi fundamental para que Carolina Maria de Jesus fosse conhecida como escritora. Alegou-se por muito tempo que o jornalista foi até a comunidade para fazer uma reportagem. Em lá chegando viu uma mulher negra, magra, mercurial, esbravejando contra uns homens que tomavam o espaço destinado às crianças, e ameaçando-os: caso não saíssem dali, iria colocá-los em seu livro. Audálio, com seu faro jornalístico, quis ver os manuscritos do tal livro. O nexo que fez aquele alagoano ir até a rua A, barraco número 9, entrar na casa humilde, constatar a miséria, pegar alguns daqueles cadernos encardidos, folheá-los, certificar-se dos imensos erros gramaticais, e assim mesmo levá-los consigo para ler com mais calma em casa, é um desses mistérios da intuição sobre o cheiro da notícia, que o jornalismo somente mostra para os bons jornalistas.
Carolina permitiu que Audálio levasse uma meia dúzia desses cadernos, dos quais primeiramente publicou trechos na Folha da Noite, em 1958. Os cadernos tinham 13 entradas com contos, poemas, confissões, e começavam em 1955. Audálio Dantas, então, organizou este material e começou a publicá-los homeopaticamente, conseguindo inclusive uma publicação da revista O Cruzeiro - com a qual ele passaria a colaborar em 1959, chegando a viajar por vários países da América Latina em reportagens como correspondente. Paralelamente, tocava as negociações com a Livraria Francisco Alves para que Quarto de Despejo mantivesse a grafia original, revisando apenas a pontuação.
Anos mais tarde, misteriosamente, essa versão é desmontada pelo próprio Audálio no livro Tempo de Reportagem (Leya), ao menos parcialmente. O autor afirma que durante anos Carolina andara pelas redações dos jornais, inclusive do Rio de Janeiro(!) anunciando-se como poetisa negra, sem ser levada muito a sério por nenhum repórter. Segundo o próprio jornalista, Carolina já tinha sido protagonista de uma reportagem, nos anos quarenta, e também já tinha publicado alguns de seus poemas na Folha da Manhã em fevereiro de 1940, sem muita repercussão. Ou seja, é como quem diz, não sou o responsável nem o culpado pelo que se gerou, pois Carolina já se entendia como escritora e perseguia esse momento de glória por mais de 20 anos.
O relacionamento pessoal de Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus, sempre foi marcado por uma certa tensão exposta nos diários dela, o que leva pesquisadores contemporâneos a questionarem até mesmo a idoneidade de Audálio Dantas, já que ao mesmo tempo em que a estimulava para que escrevesse cada vez mais, insistia para que Carolina continuasse escrevendo numa linguagem confessional no formato de diários do cotidiano. E a razão era transparente. O mercado aceitava. E mais, o mercado queria textos desse formato, vindos de uma escritora negra e marginalizada. Ele entendera isso desde o primeiro livro. Ela também, mas se rebelava contra essa certa imposição classista que beirava o racismo.
Daí surgiram vários atritos, que não se limitavam a questões estilísticas do texto de Carolina. E as divergências surgiram justamente quando começavam a entrar os primeiros dinheiros da publicação. Exemplo: em 1961 ela compra uma casa num bairro de classe média paulistana, ainda com os móveis dos antigos moradores dentro, dos quais não conseguia se livrar. Audálio intermediara a compra dessa primeira casa de alvenaria para Carolina. Uma casa entulhada de moveis velhos, suja e infestada de pulgas. E não parava aí. Ele sugeria em como gastar seus proventos, abria suas correspondências, e estava sempre por perto quando se tratava de dinheiro e controle das novas experiências de socialização nos novos círculos literários. Audálio Dantas já tinha até nome para o novo livro que o mercado queria: Casa de Alvenaria.
Uma relação profissional de altos e baixos que extrapolava o profissionalismo. Uns dias ela se queixava de Audálio, comparando-o inclusive a um senhor de escravos, e em outras ocasiões dava-lhe acesso aos talões de cheque e até mesmo a chave da casa para que entrasse quando quisesse.  
No ano seguinte ao lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, o crítico de teatro Decio de Almeida Prado deu notícia da adaptação da obra para teatro feita pela escritora gaúcha Edy Lima - uma escritora sem experiência em adaptações teatrais. Com Ruth de Souza no papel de Carolina, a peça teve direção de Amir Haddad e cenário de Cyro Del Nero. Ruth de Souza, que era dez anos mais nova que Carolina e aceitou o papel como um desafio numa fase de transição da vida. A atriz, que já estudara na Howard University em Washington D.C., a convite do Itamaraty, e com peças e filmes marcantes na carreira, vinha militando no Teatro Experimental do Negro desde meados dos anos 40, sempre com papéis secundários. Resolveu deixar o grupo para encarar novos desafios no grupo Vera Cruz - o que gerou inclusive algum atrito com Abdias do Nascimento. Já com participações em filmes como Sinhá Moça, e peças marcantes na carreira como Oração para uma negra, de 1958 de William Faulkner, Ruth vai à Favela do Canindé com Carolina e o local onde ela havia residido antes do sucesso repentino. A peça em si não agradou muito aos críticos, que viram uma adaptação mais para o cômico – focando nas brigas e bate-bocas da comunidade – que para o drama. Entretanto, Ruth de Sousa foi poupada das críticas, assumindo que a atriz sustentou realisticamente até o fim o peso dramático do sofrimento da protagonista Carolina Maria de Jesus.
Com o lançamento do primeiro livro, já adaptado para o Teatro, mesmo que numa montagem mal feita - segundo os críticos -, Carolina se lançou em novas veredas. Poucos sabem, mas além de escritora Carolina  cantava e tocava violão. E bem. Chegando inclusive, em 1961, a gravar um disco com 12 faixas, raríssimo hoje em dia, chamado Quarto de Despejo, com músicas de sua autoria. As loas se seguiam. As traduções do livro para o inglês, francês e italiano já estavam no prelo internacional e até a revista Paris Match chegou a fazer um perfil completo da escritora. Enquanto no Brasil recebia críticas e comentários elogiosos de escritores e intelectuais como Sérgio Milliet, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira, no exterior, Carolina era recebida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octávio Paz.
Certamente, Quarto de Despejo, é uma narrativa cheia de melancolia, com muitas lacunas sobre a vida pessoal, mas que propicia ao leitor um mergulho no cotidiano de uma mãe solteira, negra, pobre, que luta para manter os filhos em meio a um ambiente hostil cercado por vizinhos pouco solidários. A autora relatou no livro que muitos dos moradores da favela eram rudes e a hostilizavam, e isso ficou claro principalmente quando começou a fazer sucesso. Carolina definiu a favela como "tétrica", "recanto dos vencidos" e "depósito dos incultos que não sabem contar nem o dinheiro da esmola." Algo que Lima Barreto também chegou a dizer, certamente com muito mais resignação, sobre subúrbio do Rio.
O cotidiano da vida no Canindé, narrado no livro é violento, cheio de doenças, inveja, histórias de alcoolismo, fome e esquecimentos. A fome, aliás, logo de início, é definida como a escravidão do Brasil moderno. Nesse sentido o livro já começa com um soco no estômago do leitor. Logo no início, ela fala que não tem dinheiro nem sequer para um presente de aniversário da filhinha mais nova, Vera. O jeito foi arranjar um sapato no lixo “e dar uma arrumada nele para que a menina não ficasse sem a lembrança na data especial”.
Nestes anos seguintes a vida tinha melhorado. Não muito. Um pouco. Carolina e a família, após vários problemas de relacionamento com a vizinhança, já não moravam em Santana. Agora vivam numa casa mais simples em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo, a duas horas do centro. A essa altura, em 1963, publicou, por conta própria, o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, que apesar de não trazerem muito retorno financeiro, vinham num momento da vida em que a luta desesperada pela sobrevivência dera uma trégua.  O filho mais velho, já com 21 anos, trabalhava numa fábrica, e os dois menores ainda estavam concluído seus estudos secundários. Nesses primeiros anos em Parelheiros, por algum motivo deixou de receber seus direitos autorais, e novamente, Carolina Maria, foi obrigada a voltar às ruas para catar papelão e garrafas para vender, além plantar abacates, bananas e mandiocas para serem vendidos num mercado local. Ou seja, vida melhorara, mas parece irônico que para uma escritora já com quase 50 anos e quatro livros publicados, e um destes sendo vendido em 14 países, não melhorara o suficiente para tirá-los da linha da pobreza.
O tempo passava e o estrondoso sucesso do primeiro livro foi ficando datado e opaco na memória, enquanto os subsequentes não chegavam a empolgar. O público leitor brasileiro, que esperava os diários seguintes com um mínimo de confissões e indiscrições, não parece ter visto grandes novidades nas obras posteriores. E aquele livro, que fora abraçado pelo leitor de classe média e se tornara fenômeno editorial, edulcorando um certo fetiche de objeto exótico da pobreza, foi ficando esquecido.
Com as quedas das vendas dos livros, houve um afastamento natural entre Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus. Coincidência ou não, em 1965 Dantas e Carolina cortaram relações e em 1966, Audálio trocou a revista O Cruzeiro pela Quatro Rodas onde foi ser editor de Turismo. Nesta época virou correspondente da revista Veja em uma guerra que acontecia em Honduras nos tempos do golpista Lopez Orellano. Em 69, mudou para a revista Realidade. Diz que nunca mais viu Carolina.
Recentemente, alguns estudos acadêmicos, afirmam que o trabalho do jornalista não se limitou à edição e ao prefácio do livro. Acredita-se que Audálio usou menos de 10% do material recebido de Carolina ( que passavam das 2000 páginas), exercendo uma forma de controle sobre sua fala. Isso dizem os acadêmicos. Os manuscritos de Casa de Alvenaria, por exemplo, teriam mais de 700 páginas. Algo que seria inviável do ponto de vista editorial.
Além disso, há passagens inteiras em Casa de Alvenaria que ela nem sequer escreveu o que aparece no livro tal como publicado, como o encontro da escritora com o ator Grande Otelo, por exemplo – que de fato aconteceu, mas que não há vestígios de registro nos originais, até o momento. Chega-se a desconfiar que Audálio mesmo não tendo interferido no contrato com a edição brasileira, chegou a interceder nos acordos de tradução entre a Francisco Alves e editores estrangeiros, mas não necessariamente em benefício próprio. Nos diários, muitas vezes, Carolina afirma que Dantas sacava no banco as transferências que vinham do exterior, e fazia os pagamentos para a escritora em dinheiro. Como aconteciam atrasos e variações cambiais, a escritora passara a ficar desconfiada. Em 11 de dezembro de 1963, ela escreve no diário: “O povo fala que o Audálio ficou rico com meu livro […] que espoliou minha ingenuidade. Mas tudo tem um dia de libertação. E agora eu estou livre! Mas quem continua recebendo o dinheiro dos direitos estrangeiros é o meu sinhô Dantas…”. As recentes leituras dos diários também dão conta que os dois tiveram um caso, numa dessas viagens ao exterior, e tudo pode não ter passado de um grande mal entendido passional – ou não.
O próprio biógrafo Tom Farias, trata a questão toda com muita honestidade e profissionalismo. Mas o fato é que para limpar essa barra de homem branco, opressor e aproveitador da biografia de Audálio Dantas, nos dias de hoje, vai ser difícil. Mesmo sabendo que ambos eram adultos e vacinados, e mesmo sabendo que pouco antes de morrer, Carolina de Jesus dissera em entrevista que Audálio era uma “boa pessoa” e não mais aquele “sinhozinho” que escrevera nos idos 1963, a pulga sempre fica atrás da orelha.
E escritora publicou quatro livros em vida. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada; Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada; Pedaços de fome e Provérbios e postumamente foram publicados mais seis livros, entre contos e fragmentos adicionais de diários. 
Carolina Maria de Jesus morreu aos 62 anos em seu quarto, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977. Vítima de uma crise de insuficiência respiratória devido à asma, doença que carregava desde seu nascimento. Sua trajetória como escritora e mulher negra, que tinha muito a dizer, nos faz pensar na grande balela que é a ideologia da meritocracia no Brasil, já que usar Carolina de Jesus como exemplo do "quem quer, vence" sempre pode ter algo de inequívoco, dependendo sempre de qual berço a pessoa veio.