JOÃO ANTÕNIO




Título: João Antônio

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 


Filho de pai português, dono de botequim, e mãe mulata batalhadora, semi-analfabeta, João Antônio em nasceu em Presidente Altino, distrito de Osasco, na grande São Paulo, em 1937. Seu pai era um português atípico. Falava francês e tinha sido caminhoneiro, auxiliar de contador, e dono de armazém de secos e molhados.  Era violonista e bandolinista auto-didata. Levava o filho para as noites de seresta nos interiores de São Paulo -  sem a aprovação da mãe. Segundo palavras do próprio autor, cresceu criado na rua, vendo prostitutas, batedores de carteira, malandros em geral que nos seus futuros livros ganhariam uma dimensão existência. Ainda jovem descobriu os benefícios do conhaque, da cerveja, das mulheres e das mesas de sinuca, que o acompanharia por todas as suas andanças em São Paulo, Rio de Janeiro, e o interior de todos os lugares por onde passou. Aliás, dizem as más línguas que era mulherengo e mão-de vaca.

Jornalista conhecido por sua participação na imprensa alternativa nos anos 1970, desde jovem mostrou talento para a escrita. Sempre escreveu à mão, e somente depois datilografava seus textos. Depois os lia, e ria sozinho na varanda da casa, igual maluco. O jovem João Antônio Ferreira Filho trabalhou em empregos mal remunerados antes de lançar seu primeiro livro de contos, Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963. Com este primeiro livro, ganhou os prêmios Jabuti e o Prêmio Fábio Prado e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo.

Este livro, a propósito, é fruto de um grande trauma em sua vida de escritor. Em 12 de agosto 1960 um incêndio, por conta de um ferro elétrico que deixaram ligado, destruiu a casa em que vivia com sua família.  João Antônio perdeu os originais deste seu primeiro livro Malagueta, Perus e Bacanaço neste incêncio. Anos mais tarde, diria que aquela era uma data absolutamente inesquecível em sua vida, porque ficou traumatizado durante muito tempo, chegando mesmo a se recusar a entrar em livrarias, por reviver a memória da perda de seus originais.  Este seu livro de estreia seria reescrito em menos de dois anos, valendo-se de cartas e rascunhos enviados a amigos e de suas memórias, publicado finalmente em 1963 pela Editora Civilização Brasileira.

O sucesso literário conduziu-o à atividade jornalística. Entre a estreia em 1963 e o segundo livro, Leão de chácara, passam-se 12 anos. Nesse meio-tempo, João Antônio, aos 27 anos foi convidado para ser repórter do Jornal do Brasil e se mudou para o Rio de Janeiro, cidade que escolheu como residência fixa. Foi da equipe fundadora da Revista Realidade, na qual publicou o primeiro conto-reportagem do jornalismo brasileiro, Um dia no cais em 1968. Trabalhou, ainda, na revista Manchete, no jornal O Pasquim, além de diversos órgãos da imprensa alternativa, de oposição ao regime militar. Foi de cunho de João Antônio a famosa expressão “imprensa nanica” para designar os jornais alternativos do período da Ditadura Militar que se instalou no Brasil em 1º de abril de 1964, que eram vendidos clandestinamente em bancas de jornais.

Com o filho pequeno, trabalhando feito louco em seis anos de trabalho ininterrupto por longas horas à frente da máquina de escrever, mais as noites de boemia e as andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, renderam ao autor uma crise nervosa - talvez catalisada pela birita.

No começo de 1970, essa crise o obrigou a se internar por dois meses em uma instituição psiquiátrica. A passagem pelo Sanatório da Muda, na Tijuca, em maio e junho, rendeu a João Antônio não apenas a oportunidade de se restabelecer, como também dois textos que se tornariam centrais para entender a relação de João Antônio consigo mesmo e com o seu escritor de predileção: Lima Barreto. 

Nesta fase de sua vida, João Antônio escreveu dois de seus grandes livros. Um deles é a crônica de João Antônio sobre o próprio sanatório, que dá título a seu quarto livro, Casa de loucos, de 1976. Numa espécie de livro-reportagem, entrevista psicografada ou crônicas surrealistas dos encontros que o autor teve com personagens históricos tais como Darcy Ribeiro, Nelson Cavaquinho e Noel Rosa.  

O outro livro trata-se de nada menos que “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”, um roteiro dos bares, restaurantes, cafés, ruas, redações e livrarias que Lima frequentava, onde bebia e encontrava amigos e conhecidos. A reconstituição foi feita a partir do relato que João Antônio ouviu de um colega de sanatório já senil, o professor Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, 72 anos, que conviveu com Lima na década de 1910. O escritor chega a afirmar em uma nota que nenhuma palavra na obra é sua e que seu trabalho foi o de um “montador de cinema”. No livro João Antônio mapeou os trajetos que o escritor fazia de casa, no subúrbio do Encantado, para o Centro do Rio, bem como as andanças e as tertúlias de que fazia parte. Apesar nenhuma palavra na obra ser sua - como ele próprio sempre afirmou – o toque de devoção de João Antônio a Lima Barreto, está nos cortes e colagens que ele faz no texto de história oral, narrado por Carlos Alberto Nóbrega, pontuando episódios, amigos e personalidades históricas citadas, com passagens dos diversos livros de Lima Barreto.  

Assim o relato não é uma biografia de Lima, mas uma espécie de perfil do escritor feito da colagem de muitas vozes. São numerosos os trechos do autor que João Antônio reproduz, pontuando passagens escolhidas de obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Feiras e mafuás, Os Bruzundangas, Diário íntimo, Correspondência, entre outros.

Se não fosse por João Antônio, jamais saberíamos que Lima fumava cigarros Elite 18, da Sousa Cruz, e que jamais saía de casa sem chapéu, mesmo que sempre suado e com os paletós poidos. Não saberíamos que guardava seu dinheiro, com as notas enroladas em tubinhos, no bolso do lencinho do paletó. Nem saberíamos de sua enorme sabedoria etílica em evitar a mistura de fermentados e destilados, quando se trata de bebida alcoólica. Jamais tomava nada que não fosse Parati - a nossa mais que conhecida aguardente de cana. E mesmo com muitas doses, jamais apresentava momentos de embriaguez, ficava apenas sorumbático, tendendo à “melancolia”. Sem esse livro de João Antonio, jamais saberíamos que Lima Barreto era um homem bem humorado, pelo menos entre os seus, amigos de subúrbio.

Nesse compasso, produziu quinze livros, mas sempre se recusava a participar de cerimônias e de se vincular a grupos e academias literárias. Aceitava apenas convites para palestras em escolas e universidades.

Como a maioria dos escritores retratados nessa coleção, João Antônio retratou essencialmente os oprimidos. Operários, bichas, picaretas, prostitutas, otários e malandros, que disputam o jogo onde seja para ganhar um trocado, faturar um almoço, uma dose grátis, uma ronda a dinheiro, uma mulher alheia, o troco do café, ou um pouco de droga, significa muito para própria sobrevivência da espécie.

Mas não somente os oprimidos eram retratados em sua narrativa. O amor espúrio está na narrativa de maridos desnorteados, mulheres de 50 desesperadas de amor e rapazes bonitos que pelas circunstâncias viram gigolôs.  Narrativas onde há bipolaridade, tiroteio em disputa por mulheres, tentativas de suicídio, e atrações inesperados que explodem em paixões. Enredos que facilmente, dependendo do grau de distração, poderiam ser piegas, mas que na mão de João Antônio viram uma realidade muito próxima do leitor.

Sempre retratando o calvário de pingentes, desde o início da leitura de cada um - digo, cada um – de seus contos, temos a sensação que o protagonista pode se transmutar em qualquer ser, seja, um burro-sem-rabo andarilho, um publicitário fracassado, um antropólogo com câncer, uma prostituta apaixonada, burguês falido, juiz de futebol ladrão, ou até mesmo um guardador de carros poeta. A curva da sua trajetória literária que principia lírica e melancólica, com Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), acaba raivosa, indignada e ressentida, em Dama do encantado (1996).

Essa fase magoada começa nos anos 1980. Talvez o ressentimento fosse com ele mesmo, vindo de um desconforto de não se achar em lugar nenhum. Nesses anos deambulou São Paulo, Rio de Janeiro, Amsterdã e Berlim, onde viveu por mais de um ano, ao ganhar uma residência literária (aliás, a mesma vencida por Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão). Tinha se afastado da malandragem, e já não se identificava nem com os pingentes, nem como um falso figurante na desdenhada classe média, que ele sempre atacou. Esse despertencimento gradual foi mexendo com sua cabeça. 

A desigualdade aumentara no Brasil na mesma proporção da inflação e das trocas de moeda. O Botecos, antes xexelentos, com seus mictórios encardidos, agora tinham televisão que passava o futebol, e o abismo formado entre as classes, roía sua lírica da miséria. Alguns críticos diziam com certa leviandade, que ele tinha perdido a mão, repetindo o enredos e  anedotário em seus últimos livros. Entretanto, paradoxalmente, era e permanece um escritor atual. Passados 60 anos, temos em seus contos um projeto de país, que com muito jeitinho e antropofagia, descambou em uma nação dividida, violenta e proto-fascista.

Seria leviano dizer que João Antônio morreu esquecido. Sua morte foi noticiada em jornais e revistas de circulação nacional como O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Isto é e Caros Amigos. O sepultamento se deu com honras municipais. Também seria leviano dizer que morreu respeitado. Naquela década o escritor publicou os livros Zicartola e que tudo vá pro inferno, Dama do Encantado, Patuléia: gente de rua. Além disso, o livro Guardador recebeu o prêmio Jabuti em 1993.

A indiferença da crítica literária e da mídia em relação ao escritor, essas sim, provavelmente catalisaram desilusão do próprio. Mesmo que os críticos estivesses corretos sobre sua frouxidão nas rédeas da escrita dos últimos anos, jamais abandonara sua ênfase como porta-voz dos marginalizados.

JAMIL SNEGE





Título: Jamil Snege

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Dezembro 2021


Mais um da extensa lista que o Brasil fez questão de esquecer, é Jamil Snege. O escritor do Sul do Brasil, vem de uma família de descendentes árabes, por parte de pai, e italianos, por parte de mãe. Cresceu no elegante bairro da Água Verde na Curitiba dos anos 1940, e como todo o menino da sua idade, queria ser jogador de futebol. Felizmente, por inabilidade ou pura incompetência, e para felicidade de seus leitores, por volta dos 17 anos, sua paixão não foi correspondida e abandonou o sonho de ser jogador, ingressando logo em seguida no serviço militar.  

Prestou serviço militar nos anos 50, no Centro de Operações de Oficiais da Reserva (CPOR), e para felicidade de seus leitores, foi logo expulso por “falta de idoneidade moral”, como dizia o seu boletim de expulsão da época.

Após uma série de pequenos deslizes disciplinares, ele acabou provocando um incêndio num exercício de tiro. Participava de um exercício com peças de morteiro e começou imprudentemente  “levianamente”, em suas próprias palavras – a encostar a brasa do seu cigarro nas cápsulas auxiliares da munição dos morteiros dos companheiros de tropa, em Campo Largo da Roseira, colocando em risco a vida de toda a tropa. O incêndio se alastrou, pois havia um vento muito forte no momento, e todos tiveram uma tarde de muita fumaça, muito fogo e perigo de vida.

Além de escritor trabalhou com publicidade e marketing político. A propósito, formou-se em Sociologia e Política pela Pontífica Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), e destacou-se na publicidade pela ousadia e irreverência na criação de campanhas comerciais, políticas e educativas de grande êxito.  

Pode-se dizer que o “Turco”, como era chamado pelos amigos, como publicitário, ganhou a vida em sua agência de publicidade sempre promovendo os outros. Participou de diversas campanhas politicas de sucesso como a de José Richa e Roberto Requião. Richa foi eleito governador do Paraná em 1982. E no mandato, Snege desenvolveu projetos sociais de marketing, engajando-se também na campanha das Diretas Já, para a Presidência da República.

No campo literário, além da reconhecida qualidade de sua obra ficcional, notabilizou-se por recusar sistematicamente as propostas recebidas de grandes editoras, optando por financiar com recursos próprios a publicação artesanal de seus onze livros.

Alguns dizem que Snege define melhor a alma curitibana que o próprio Dalton Trevisa. Entretanto Jamil Snege sempre recusou o rótulo provinciano de escritor regionalista, com o argumento de que quando se olha para a literatura americana ou latino-americana, não existe a literatura da Carolina do Norte ou a literatura da California.

Dono de uma ironia sarcástica, enxuta, corrosiva, uma forma de heroicizar as misérias com um lirismo negativista, Snege tinha um olhar impiedoso sobre a condição humana. A diferença é que sempre escrevia com algo de auto-biográfico. Escritor reconhecido pela classe literária, publicou, entre outros, “O Jardim, a Tempestade” (minicontos, 1989), “Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo” (memórias, 1994) e “Os Verões da Grande Leitoa Branca” (contos, 2000).

Deixem-me arder
……..Deixem-me queimar as asas
nesse vela,
nesse sol, nesse leiser que envenena
as couves embrutecidas
pela treva.
…….Deixem-me arder.
…….Se ofendo sua lógica,
sua prosódias, seus anéis
de sempre elegante curvatura,
esmaguem minha musculatura
e os ossos que a sustêm.
…….Mas me deixem arder
…….Deixem-me arder de infinito
nesse iníquo delíquio
de existir.
…….E se os ofendo,
soprem minhas cinzas,
derramem minha lixívia,
mas me deixem auferir
as estrelas como o úmero roto
açoita o músculo que seu vôo
desencanta.
…….Deixem-me luzir
definhar meu luminoso espanto
onde só lhes é permitido
sobraçar espasmos
e guarda-chuvas.
…….E seu eu venha a ferir,
opacos, o lusco-fusco
de seus baços,
o hálito de hortaliças,
o bolor de queijo
que amadurece em seus
atrios
absteçam-me de mil insultos
…….
Mas me deixem incender.

SABOTAGE



Título: Sabotage

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Drypoint, Etching

Data: Dezembro 2021



Mauro Mateus dos Santos nasceu na periferia de São Paulo 3 de abril de 1973 e morreu assassinado na mesma cidade a 24 de janeiro de 2003.  Nestes breves 29 anos de vida, o poeta ficou conhecido pelo seu nome artístico Sabotage, Mauro Mateus fez de tudo um pouco. Foi poeta, traficante de drogas, rapper, cantor, compositor, e ator brasileiro. A origem do apelido Sabotage deu-se por ter quase sempre conseguindo burlar as normas com algum êxito, como entrar em bailes, festas e boates sem permissões, e sair ileso de inúmeras confusões e brigas. Artista que combina raramente fineza e simplicidade numa prosa agilíssima, Sabotage foi criado na favela do Canão, capital paulista. Cresceu e viveu numa cidade que mata em média mata 700 pessoas por ano, em meio à criminalidade, à fama, o descaso, à morte e o sucesso. Começou a trabalhar aos 8 anos em seu primeiro emprego, como “olheiro” - nome dado aos que trabalham do tráfico de drogas avisando aos chefes locais quando a polícia se aproxima. Filho mais novo de 3 irmãos, teve um dos irmãos mortos, após fugir da cadeia, e outro, dominado pela loucura do alcoolismo. Mauro, pai de 2 filhos, nasceu na Zona Sul de São Paulo, onde, depois de ter sido assaltante e gerente de tráfico encontrou a saída no rap, entrando na música e percebendo o seu verdadeiro dom. 

Sabotage fez um único disco solo, o “Rap é Compromisso!”, e participou de vários CDs com grupos como  RZO, SP Funk e outros. Seu único disco, de 2001, é um marco na historia da poesia Hip-Hop brasileira. Considerado uma lenda na Zona Sul, ele inspirou vários rappers, como Rhossi, Pavilhão 9, além de ter ensinado Paulo Miklos, cantor de ascendência húngara da banda de rock Titãs, como ser um malandro de verdade, no filme "O Invasor", de Beto Brant, com quem escreveu até uma música.

Sua música, mistura letras inteligentes, frases contundentes e rimas ágeis, com ritmos que não necessariamente são apenas de rap, mas também gêneros como o Samba, Rock, e Música Eletrônica.

Também fez parte de dois filmes, o já citado "O Invasor", e o premiado "Carandiru", além de ter recebido vários prêmios, como personalidade, revelação e outros no Hútus, o grande festival de premiação de rap no Brasil. Vale ressaltar que Sabotage era o próprio compositor e cantor de suas músicas. Em toda sua carreira, compôs dezenas de trabalhos e alguns deles se tornaram uma espécie de hino para jovens da periferia. Para muitos, Sabotage é uma rica expressão da constante luta que o pobre enfrenta diariamente para viver dignamente e isso fez com que vários outros artistas usassem suas obras como samples, colagens e scratches de seus trabalhos".

Na manhã do dia 24 de janeiro de 2003, em frente ao número 1877 da avenida Professor Abrão de Morais, no bairro da Saúde, próximo a sua casa, Sabotage levou sua mulher, Maria Dalva da Rocha Viana, ao ponto de ônibus. Na despedida, disse à esposa que iria para o Fórum Social Mundial, na cidade de Porto Alegre. Após entrar no carro, segundo testemunhas, foi abordado por um homem que disparou 4 tiros: dois na coluna vertebral 1 na mandíbula e 1 na cabeça. Encontrado horas depois, aos seu lado havia uma máscara preta. Muito se especulou, maliciosamente, à época sobre algumas possíveis causas de seu assassinato, entre elas, o envolvimento do rapper com o mundo do crime quando era mais jovem. A falsas acusações, entretanto, são veementemente negadas por seus amigos e familiares, haja visto que Sabotage tinha desistido da vida criminosa por volta de 10 anos antes de sua morte.

 Em 2016, 13 anos após sua morte, o álbum que leva o mesmo nome do cantor foi lançado no serviço de streaming Spotify. Nele estão diversas canções feitas na semana em que o rapper foi assassinado.

Sai da Frente 

Sai da frente, o mar, não tá pra peixe, entende?

Minha gente, quem não for do corre, sai da frente
As águas, sei, tão turvas, aqui ou no Oriente
A fome em Sampa arruína, esmagadora, brava gente
Click-clack-bang
Sai da frente, gente
Bala perdida é igual cadeia, a dor ardente
Me disseram: "O sol nasceu pra todos"
Pra quem será que dizem, mano?
Pra nós os pobres ou pro simples tolo? " 

 


A alma


Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.

Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.

Sou o que fui …
Sou o que serei …

Augusto Frederico Schmidth


xilogravura. Ghost Project. 12"x12" 
#lynkcollective 
#finssocal

Heinrich Karl Bukowski

Escrita

frequentemente é a única
coisa
entre você e a
impossibilidade.
nem um trago,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
se igualar.
nada pode salvar
você
exceto
a escrita.
ela evita que as paredes
desabem.
que as hordas 
se aproximem.
ela explode as 
trevas.
a escrita é tua

decisiva
psiquiatra,
A mais gentil
deusa de todos os
deuses.
a escrita encurrala a
morte.
não conhece a
desistência.
a escrita
ri de
si mesma,
na dor.
é a última
expectativa,
a última
explicação.
e isso
é o que
é.

Extraído de blank gun silencer - 1991


Writing 

often it is the only
thing
between you and
impossibility.
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.

from blank gun silencer - 1991



Os Riots não roem a roupa do rei


George Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.

 

- vinte merréis, um Jackson. pqp.  

 

O fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência policial, o preconceito, a hipocrisia…

 

Não sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos. Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados, humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo de cara…

 

- sim estou puto sim, foda-se.

 

Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.

 

Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto, e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de fantasmas e ausências  históricas faça com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o homem negro, já  que para o policial o mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico, o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime. Óbvio!

 

Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou, quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?

 

 - Óbvio é o cacete. Correto porra nenhuma!

 

Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça” ele se declarava pertencer. O menino João Pedro Mattos Pinto, morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é diferente!

 

- vdd!

 

Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil. Então, para que riots ao sul do Equador?  Ora bolas!

 

 - O problema é que o buraco é muito muito muito mais embaixo…

 

O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas - sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares, geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados, tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e tem de conviver com a ausência do Estado.

 

- Tudo separado… sei…

 

A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art. 3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de 5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística, por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai você vai vendo.

 

A eficácia desses números não se mede pela sua capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?  

 

Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo prazo, e não podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos dizem ser apenas de classe.

 

O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil, como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário do ato hipócrita.

 

O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

 

- Eu também gosto do Milton Santos…

 

Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por acaso estão mais negros e pardos que brancos,  e isso não deixa de conter uma certa ironia azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.

 

Nota: não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.

 

Ana Cristina Cesar

Rádio Batuta disponibilizou  alguns áudios de Ana Cristina Cesar. A poeta falou a alunos de uma faculdade do Rio de Janeiro seis meses antes de morrer, em 1983.




morTe dO leiTeiro

Morte do leiteiro 

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro
.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade - A rosa do povo