A FALA DO ROSTO





És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra


Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos


Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas


Por ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos


É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento



José Tolentino Mendonça


Um Sonâmbulo na Corda Bamba

Os estóicos diziam que não somos aquilo que nos acontece. O que para nós, chamamos de acaso, e que portanto é visto com descaso, não era visto assim pelos os gregos. Para estes, os acontecimentos não aguardados se confundiam com sinais, com a auto-estima, como alguma coisa atravessada pelo divino. Restava-nos viver como amadores tateando nu labirinto de sinais. O livro de José Luiz Passos, “O Sonâmbulo Amador”, mostra-nos até que ponto os fatos são decididos por nós, e até que ponto são decididos por uma força maior onde o acaso detona uma série de sonhos, visões mal acabadas e irrealidades que como amadores tentamos desvendar. “O Sonâmbulo Amador” conta a estória de um funcionário de uma tecelagem no interior de Pernambuco. Jurandir, seu nome, é cidadão simples que está prestes a fazer uma viagem à capital do estado para resolver uma pendência burocrática. O protagonista aprender com a dor. Se solidariza com o sofrimento de um do operário da empresa onde  trabalha que teve o rosto desfigurado por um acidente de trabalho. Na função de porta-voz de uma espécie e cipa, Juandir tentará interceder por ele, na capital, e conseguir algum amparo pecuniário para a sua condição. 

Antes de viajar para Recife, Jurandir se depara com duas situações não de todo ordinárias. Primeiro, briga com uma colega de trabalho chamada Minie, com quem teve um caso e ainda mantem uma relação um tanto mal resolvida. Logo em seguida constata que ao chegar em casa, a mulher tinha transformado o quarto do filho num escritório. Isso basta para explicar o que está por vir. Jurandir começa sua viagem de carro para a capital. No meio do caminho para. Sai e  ateia fogo na Kombi.  O leitor tem a certeza de que Jurandir tem plena consciência de suas circunstâncias. Mas logo no capítulo seguinte, temos a certeza que o livro de Jose Luiz começa com a certeza estóica de que não somos, de fato, aquilo que nos acontece.

Muitas vezes, a dor, a violência, a tragédia esmagam a compreensão. Aristóteles dizia que o máximo do prazer apenas é atingido no exato instante do máximo de uma dor. Portanto, quem não tivesse essa dor tão forte e não tivesse, o corpo, ou a consciência, tomados por essa espécie de luz que ilumina o momento máximo da dor, que por exemplo poderia ser a perda de um filho, não saberia o que é o prazer.

No capítulo seguinte, como num desses sonhos mal explicados, Jurandir já aparece num manicômio. A trágica morte do filho adolescente, poderia ter esmagado sua compreensão. Mas na instituição psiquiátrica surgem os cadernos onde Jurandir descreve suas experiências tentando encontrar um norte argumentativo, no qual realidade e irrealidade entrelaçam-se iludindo o leitor amador num jogo de sono e vigília.


A partir daí o cotidiano dentro da clínica, sua vivência com Madame Góes, o enfermeiro Ramires e o Dr. Ênio começam a se confundir com seus sonhos. Nesse momento a narrativa adquire a tonalidade estranha e interessante de um filme de David Lynch. O passado, o presente, os sonhos, e a impossibilidade de futuro vão se fundindo e se confundindo numa também  impossibilidade narrativa. Interessante, e algumas vezes cansativa, a leitura destes sonhos nos induz a pensar que o que Jurandir busca é na verdade uma liberação de seus traumas através dos exercícios escritos sugeridos pelo Dr. Ênio. Através de reparações, ele tenta dar novos sentidos aos pesos do estigma que carrega: a falta de estrutura familiar, a perna manca por um acidente provocado, a perda do filho, o amor estranho e contemplativo que por um lado alimenta pela esposa, e o desejo que o consome pela amante sensual, o rosto do garoto que se queima... uma série de frustrações que vão se acumulando ao longo da vida, onde as tentativas de reparações não lhe trazem equilíbrio, e as tentativas de narra-las acontecem de forma fragmentária com frases curtas em poucos detalhes. Quando há detalhes, estes se tornam confusos, como os primeira hora da manhã quando tentamos rememora-los e colocá-los de uma maneira lógica, numa narrativa que se pretenda ser aquilo que nos acontece no sonho.

Os riscos que José Luiz Passos correu com esse livro, tanto no que escreve como no que procura esconder de sua escrita, em sua maneira própria de escrever, foram muitos. Risco maior foi arcar com a possibilidade de cair na travessia da corda bamba, em pleno sono. E neste contabilizamos o de tentar mostrar que, mesmo num contexto onde um protagonista tem sua humanidade anulada pela perda de um ente, da liberdade e da própria capacidade de concatenar conscientemente fatos e argumentos, ainda assim, consegue chegar ao outro levando uma idéia de justiça e de grandeza moral.

Mé e forévis, forever!


Quem já passou dos 40 anos lembra bem o que estava fazendo às 19:00hs, no primeiro domingo do mês de agosto de 1984. Estava assistindo Os Trapalhões! Naquele hiato entre o domingo de sol e aquela música horrenda do Fantástico a nos lembrar da segunda-feira, entrava o melhor programa da televisão brasileira para a molecada. Intelectuais de plantão irão dizer que o programa promovia violências intelectuais contra minorias étnicas, raciais e de gênero. Ô da poltrona, à época eu tomava cascudo dos guris mais velhos e cheguei a cair na porrada na porta da escola sem saber que isso era bullying por que o que importava para nós era  exatamente isso, Samba, Mé e Trapalhões!
A biografia do jornalista Juliano Barreto sobre Antônio Carlos Bernardes Gomes, o “Mussum”, lançado pela grande editora LeYa, é muito legal. Eu sei que o termo “legal” é impreciso, mas é o que me vem à cabeça quando lembro que não consegui levantar o forévis da cadeira enquanto não terminei o livro. O livro resgata memórias de um tempo em que as fotos coloridas ainda eram em papel fotográfico meio avermelhado e a família sempre aparecia meio desbotada. Não chega a ser uma ótima biografia, pois fiquei com um gosto de querer saber mais da história do Mussum e de sua vida pessoal. Mas reconheço o esforço do jornalista ao tentar resgatar o passado de um cidadão que nasceu pobre, filho de mãe solteira negra e analfabeta, batalhadora, e com no máximo uma certidão de nascimento, deve ter sido hercúloe.
A biografia  conta com partes de como cresceu num colégio interno esbanjando simpatia, trabalhando como mecânico, morando em cortiços para sobreviver, enquanto a fama não o tocava. Sempre enchendo a cara, mas sempre pontual, nas segunda-feira pela manhã, independente do tamanho da ressaca que o afligisse o homem era uma muralha. Partes tristes como quando teve que romper com Os Originais do Samba, e deixar para trás os amigos de longa data, para se dedicar aos Trapalhões, e inúmeras partes engraçadíssimas que te fazem rir sozinho. Em resumo, a biografia mostra  um grande homem por trás do humorista, mostra sua generosidade, sua impressionante capacidade de trabalho, e até mesmo sua relação com suas ex-mulheres que  - se recusaram a detraí-lo mesmo após a fama.
Sua trajetória televisiva, vista criticamente,  mostra o esteriótipo de um homem negro alcoólatra. O problema deste tipo de análise eram as segundas-feiras pois quando chegávamos à escola, as conversas inocentes sempre passavam pelo mé e pelo forévis de alguém. É inquestionável a presença de Mussum em nossas vidas, mesmo na das pessoas que juram de pés juntos não terem assistido Os Trapalhões.

Música do dia. Ray Charles and Betty Carter. Cocktails for two

Heráclito


Em 1935, o Partido Comunista botou o bloco na rua, chamou os revolucionários e achou que podia para fazer uma revolução. Não deu. E entre as maiores vítimas da tentativa de insurreição estava o ex-deputado alemão Harry Berger, que veio para o Brasil em 1935 junto com sua mulher Elise, para orientar comunistas urentes a conduzir massas ignotas à conquista do poder.   Se não me engano é ele que no livro Olga tem o dedo esmagado por um alicate de quebrar nozes assim que entra no carro da Polícia Especial de Vargas. O casal comeu o pão que o diabo amassou em terras tupiniquins. Elise foi estuprada na frente do marido e logo em seguida mandada de volta para a Alemanha, onde morreria num campo de concentração.
O destino de Berger foi inacreditável. Torturado com choques e porradas sem fim, foi deixado por um ano numa cela sem sol, sem corte de cabelo, sem banho, com pouca comida.... O tratamento desumano que Berger recebeu levou ao advogado Sobral Pinto a solicitar ao juiz responsável pelo caso a comparação de Berger a um cavalo. Levou o responsável pelo caso a concordar que:  se o Estado reconhece até os direitos dos animais, por que não haveria de aplicar o mesmo tratamento a um ser humano?
Este é um dos pontos mais interessantes do documentário “Sobral – O Homem que Não Tinha Preço”. Heráclito Sobral Pinto foi um homem vazado num molde que se perdeu ao longo da história do Brasil.  Torcedor do América, católico fervoroso e conservador, defendeu presos políticos do Estado Novo e da ditadura militar, incluindo o líder comunista Luis Carlos Prestes e foi responsável até mesmo pelo resgate de sua filha Anita Leocádia. Anos mais tarde atuou na defesa de Juscelino Kubitschek,  mesmo, conservador que era, sendo politicamente alinhado à UDN. Nos anos 80, já em idade avançada, ainda teve fôlego para subir ao palanque das Diretas Já. 

O documentário de Paula Fiuza tem partes engraçadas e tocantes: sua incapacidade para ganhar dinheiro, ou melhor saber ganhar dinheiro mas não saber como cobrá-lo de seus clientes, mesmo estando tão próximo ao poder, e sua culpa, que se arrastou até o fim de sua vida, por ter tido uma... “amiga”... nos anos de juventude. Sâo elementos humanos que tornam Heráclito um mito brasileiro.

Assistir este documentário dias antes de uma eleição presidencial como esta que passou, pode não ser aconselhável. Pode causar danos irreversíveis à tentativa desesperadora de dar sentido à nossa obtusa alma nacional. 

Discursos dos Eleitos

O Ilusão da Semelhaça renasce como Fawkes hoje...

Quando soube que Ronald Reagan não escrevia seus próprios discursos, confesso que passei a desconfiar do óbvio: o ator lia os scripts feitos sob medida pela equipe de Larry Speakes. A saia justa de Speakes em Reagan ao anunciar que os discursos do chefe eram um bando de citações clonadas e adaptadas às circunstâncias, nunca foi confirmada por Reagan que, ao contrário, preferiu desmentir o subordinado, afirmando que nunca confiou muito no seu Press Secretary. Mas o mais estranho de tudo é que, independente de quem as escreveu, duas frases de Reagan não me saem da cabeça hoje:
 

Status quo, you know, is Latin for “the mess we’re in”
 

I think the best possible social program is a job.



Sou um leitor compulsivo. Dentro de minha patologia, uma das alterações morfológicas mais evidentes pode ser vista em minhas prateleiras de livros: as biografias. Leio biografias de vivos e mortos. Em ambas há um interesse mórbido, no caso dos mortos, ou uma intenção no mínimo prosaica de especular sobre a vida alheia, no caso dos vivos. Mesmo nesse caso, não procuro o meramente factual na cara amassada do biografado acordando as 6.30 da manhã para trocar a fralda dos filhos, ou o cotidiano de uma entrega ao alcoolismo, mas aquela dose de criatividade, de fantasia, de porosidade por onde o cotidiano é filtrado na criação literária de um texto talentosamente bem escrito.  Por isso acompanho com alguma dose de curiosidade esse debate sobre a polêmica das biografias, num país onde é comumente dito que o público e o privado vivem de  maneira promíscua.

Na minha estante, há biografias autorizadas e não-autorizadas. Tenho  biografias de D. João VI, escrita pelo Oliveira Lima, à biografia de Bogart, escrita Sperber e Lax, de Patápio Silva, à várias do Sinatra,  Clarice Lispector, Billy Wilder, Vargas, Coltrane, Rio Branco, Balzac, Garrincha, David  Selznic,  Tim Maia, e até as não autorizadas do Roberto Carlos e do Noel Rosa. Portanto, ler biografias não-autorizadas  não está em minhas preferências, ao menos estatísticas. O interesse que me levou a ler a biografia escrita por Lord Roy Jenkins, não foi o mesmo que me levou a ler a biografia do Zico, evidentemente. Um fumava charuto, prevaricava todo o tempo e tratava socialistas como scumbags, o outro sonegou o fisco no Japão e na Itália, mas nem por isso, ou talvez por isso mesmo, nunca deixou de ser meu maior ídolo no esporte.

Ainda nesse tema sobre o direito que me pertence como leitor ao ler uma biografia, assisti a uma palestra de Paulo Cesar de Araújo em New Orleans, há uns anos. O rapaz se emocionou ao falar da biografia que escrevera e que se encontrava proibida de circular. Se emocionou  não pelo dinheiro que deixou de ganhar numa dedicação de mais de 20 anos de pesquisa, mas pela frieza com que O Rei o tratou na Corte, cara a cara, afirmando que só que tinha o direito de escrever sua – do Rei -  biografia seria ele próprio.

Sentimetalismo à parte, o  que está em jogo hoje é a biografia como ativo comercial. Todos querem ganhar. De um lado editoras - argentárias sim. De outro, artistas, esposas de artistas, advogados, proles, ex-esposas de artistas, encabeçando um grupo de interesse pecuniário chamado Procure Saber. Há um terceiro lado, que é o do biógrafo, mas esse não conta, por se tratar de um trabalhador braçal, aquele que só deseja segurança  para realizar seu trabalho e paz para se dedicar a sua escrita. Parafraseando o pai de um dos personagens envolvidos na polêmica, mais uma vez vivemos a velha  dicotomia de Raizes do Brasil, entre o aventureiro e o trabalhador . O primeiro, aquele que ignora as fronteiras e, onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes. Assim como o aventureiro, o artista também é desejoso dessas novas sensações e por consequência a consideração pública, pois no fundo é um homem público. Impedir um trabalhador de narrar feitos, sucessos e fraquezas  de um biografado é um desconforto para o leitor contemporâneo.

E o pior é que me foram incomodar até o François Dosse lá na École des Annales, para receberem uma resposta óbvia e desconcertante.

Dylan Thomas



Dylan Thomas há muito insiste em justificarnos e nos esclarecer o porquê do fazer o que fazemos...


In my Craft or Sullen Art – Death and Entrances (1946)

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercida na noite ainda
Quando apenas as raivas da lua,
E os amantes se encontram já na cama
Com todas as suas mágoas nos braços,
Eu trabalho ao som da luz
Não por ambição ou pão
Não por vaidade ou vontade de encantos
presentes nos palcos de marfim
Mas, apenas para um salário comum
Do que em seus corações há de mais secreto.

Não para o homem orgulhoso, além
Da lua furioso, eu escrevo
Nestas páginas chuviscadas,
Nem para os mortos altivos
Com os rouxinóis e salmos
Mas para os amantes, seus braços
Arrematam as dores dos séculos,
Para os que não dão elogio ou soldos
Nem os que se importam com meu ofício ou arte.


nota. já, já, I know... a tradução é tosca como uma rosca galega...

O que não se faz com uma corda.





“Teses sobre um homicídio” é um filme quase bom. Tem todos os elementos de um filme de suspense dos bons. Tem o mestre experiente duelando com o aluno talentoso, num ambiente acadêmico sem os expedientes de baixaria e puxada de tapete típicos do círculo. O grande Ricardo Darín encarna Roberto Bermúdez, um advogado, professor universitário respeitado, mestre experiente que recebe um novo aluno bem talentoso para um de seus seminários. O aluno é Gonzalo, filho de um casal amigo de diplomatas de longa data de Bermudez. O jovem, antagoniza com o mestre um intrincado jogo psicológico.

Gonzalo é um solteirão inveterado. Goza de uma posição acadêmica estável, e para um homem em sua posição, não é difícil conseguir arrastar uma aluninha ou outra, alpinista social, para o acalento de seu bureau. Seu ceticismo, marca talvez mais da carreira de advogado criminalista que da personalidade, transparece por completo em sua pratica docente. Fato é que, durante uma das aulas, o corpo de uma moça é encontrado no estacionamento da faculdade, aparentemente colocado de forma que Roberto pudesse avistar de sua janela e se importar com a investigação do crime.

Pouco a pouco, o professor descobre que a vítima era uma garçonete de um restaurante do qual costumava frequentar. Entre idas e vindas, Roberto é levado a crer no envolvimento de Gonzalo com o crime. Ao mesmo tempo, o rapaz tenta se aproximar de Bermudez sugerindo uma disputa velada, deixando uma série de sinais, pistas e frases, onde a vaidade perpassa a força bruta, nesse jogo de quebra-cabeça psicológico. Ao mesmo tempo em que tenta desvendar a autoria do crime, Bermúdez inicia uma relação  protetora e obcecada com Laura (a bonitinha Calu Rivero), a fragilizada irmã da vítima.

Bom, mas vamos lá. Vamos dar uma renegada básica a condescendência da empolgação  e vamos supor que um estudante, não dois, apenas para provar a si mesmo que pode cometer o crime perfeito, desafia os amigos e o professor, e resolve convidá-los para uma reunião no apartamento dele, e serve a comida em cima de um baú onde está escondido o corpo da vítima. Pois é, quem pensou em Patrick Hamilton, ou melhor em Rope, ou melhor, O Festim Diabólico, ganhou duas balas Juquinha. O filme tenta ousar na construção da trama, fugindo exatamente do pastiche do filme do Hitchcock, mas deixa um pouco a desejar nas resoluções das pequenas tramas.

Música do dia: Choro Triste – Rogério Souza. Violão Brasileiro.

Na Fronteira da Tarde


“O mundo é guiado pelo acaso, a contingência nos persegue todos os dias de nossas vidas...” Comprado em Manaus numa livraria de qualidade duvidosa de uma loja de departamentos , que em nada se parece com a papelaria do Mr. Chang, o livro que acabo de ler me aproxima um pouco do protagonista Sid Orr. O Livro: Noites do Oráculo do Paul Auster. O Acaso: dias antes estava eu numa reunião com o dono das lojas tratando dos princípios fundamentais dos grandes sistemas do marketing, do mercado, da produção, da distribuição, do consumo, da comunicação, dos partidos políticos, da eleições, onde o que estava em jogo, na verdade era o lucro. Fecha parênteses.

Em Setembro de 1982 o escritor Sidney Orr entra numa papelaria de um chinês do Brooklyn e compra um bloco de notas azul português. O dia é quente, abafado, como um dia normal da época das chuvas em Manaus.  A chegada à papelaria quase se poderia dizer que foi uma saga. Sidney, recém saído de um estado de convalescência, dá pequenas saídas à pé, sente-se inseguro, fraco e suas caminhadas são medidas como os passos de que reaprende a andar. Sid entra na papelaria de Mr. Chang e fica fascinado por um caderno de capa azul, que lhe tira da passividade. Traz de volta a vontade de escrever, depois de tantos meses parado. No momento em que o compra e trava um estranho diálogo com Mr. Chang, Sid não sonha que a sua vida começa naquele momento a perder, gradualmente, consistência. A sua mulher, Grace, começa a ter um comportamento incomum, passando por estados de extremo laconismo, seguidos de edulcoradas declarações de amor, que o deixam um confuso e em estado de pânico. Seu medo é  perder a pessoa mais importante da sua vida.

Nos nove dias que se seguem, tudo parece estar estranhamente vinculado ao caderno de notas, e no que nele é rabiscado. Parece que tudo que escreve no tal caderno ganha um peso sobrenatural de premonições, ou de apenas alucinações. Em todo o caso os acontecimentos são desconcertantes. Como aqueles em que você cruza com a mesma pessoa estranha duas ou três vezes num mesmo dia, em lugares completamente diferentes. Você nunca viu a pessoa, não sabe quem é, e imponderável e desnecessário  é procurá-la no facebook. No caso de Sid, os acontecimentos minam seu casamento com Gracie, que segundo ele passa a se comportar de maneira muito estranha. Mais uma vez, Auster constrói uma rede de narrativas em que personagens e situações se espelham e se sobrepõem. Na mesma semana em que adquire o tal caderno, o chinês fecha seu estabelecimento de forma absolutamente inusitada.

No caderno, Sid começa a escrever a estória de Nick Bowen, um editor que tenta se livrar de seu passado, e recomeçar a partir do zero num lugar onde ninguém o conhece – e claro que isso é uma metáfora em se tratando de Auster, pois o Eldorado nova-iorquino não existe. Bowen é casado com Eva. O casamento já tem cinco anos e entra numa redução em primeira marcha, com a falta de estímulo, e acaba estacionando no cotidiano. Nick prefere ficar numa oficina mecânica em Tribeca montando e desmontando um velho carro. A medida em que as estórias de  de Sid e de Bowen vão sendo contadas temos a impressão de que são paralelas. Numa sexta à tarde um manuscrito inédito de Sylvia Maxwell cai em sua mesa. O título da obra é Noite do Oráculo. Nela um  escritor que vê a sua filha morrer afogada e que faz uma ligação improvável entre o que aconteceu e aquilo que tinha escrito, deixa de escrever, pois "as palavras podiam alterar a realidade e, portanto eram demasiado perigosas para serem confiadas a um homem que as amava acima de tudo."
As estórias de Auster não necessariamente têm finais felizes – como no caso do aborto de Grace -, não necessariamente se encaixam, e  felizmente tudo parece humano demasiadamente humano onde as verdades são aquelas ilusões das quais falavam Nietzsche, que esquecemos serem ilusões - abre parênteses - contidas nos oráculos que imitam a vida.  

2012, a eternidade, a amizade e outras vagas noções da vida

 
Hamlet disse: Give thy thougths no tongue, Nor any unproportioned thought his act. Be thou familiar, but by no means vulgar. Those friends thou hast, and their adoption tried, Grapple them to thy soul with hoops of steel.

Pois então, duas dessas grandes amizade que que gostaria de agarrar, tal como queria o príncipe da Dinamarca,  à minha alma com mãos de aço:

Um é Thiago de Mello, a quem tive o imenso prazer de conhecer em Manaus e com quem passei uma tarde impressionante falando de poesia, Machado de Assis, Flaubert, Balzac e sobre uma infinidade de detalhes do Estatuto do Homem, dos detalhes de sua amizade com Bandeira e Neruda, e Miró e Benedetti... Thiago de Mello,  que um dia em Silêncio e Palavra escreveu... Estimo o velejar fácil de barca singrando o rio sem qualquer ânsia de porto. No singrar já se compraz. Em 2013, se a vida e o trabalho me derem um descanso, prometo injuriar a eternidade e visitar Thiago em sua casa na selva, nem que seja por um fim de semana.

Outro é o inigualável Simão Pessoa, com quem tive a honra, o prazer e a ajuda das Moiras, de trabalhar - além de derrubar hectolitros de Red Label em rodas de poetas e sindicalistas. Autor de quem Millôr um dia escreveu... Livro sincero, a começar pelo título. Um prêmio a quem encontrar uma linha politicamente correta. Obra-prima do gênero. Dei uma gargalhada por página... Assim é Simão, um homem que como todo o grande gozador é um cara sério. Para tanto se você colocar o ouvido direito no seu peito de Simão, ouvirá nitidamente uma grande algazarra. São vozes do Marques de Sade, Jacques Munier, Ovídio, Nabokov... pô Nabokov com certeza, vai quase prestidigitar as páginas do Diário de Dom Rigoberto do Vargas Llosa, orquestrados na clave daquele biriteiro que bebe ao nosso lado em qualquer botequim da vida... isso, claro, quem frequenta esses tipos de lugares, entenderá de que autores eu falo.

 
Música do dia: Fly me to the Moon. Do disco It Might as Well be Swing de Frank Sinatra and Count Basie, arranjado por Quincy Jones.

o gAtO biGodUDo

Guilherme: o nome do meu amigo que "transa vídeo", e que está por trás do O Bigode do Gato. Trata-se de uma série de entrevistas,  visões etnográficas, vastas impressões, estudos de representação dos hábitos, pensamentos imperfeitos, documentários, ou sei lá o que, mas que é muito bom.

As entrevistas são ótimas, os entrevistados melhores ainda. Na edição, capítulo à parte, Guilherme mostra toda sua habilidade. Recentemente, tive o imenso prazer de trabalhar e de dividir vários churrasquinhos de gato - perdão pelo paralelismo - nas noites intermináveis das edições. Enquanto uns editavam outros - me incluo neste grupo - tiravam um cochilo no imenso, confortável e horroroso sofá marrom da ilha de edição. As circunstâncias do trabalho, claro, não permitiam, mas o cara sempre tinha camisas de estampas interessantissimas e gestos elegantes, para além dos cinco ou dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém no tipo de trabalho, com o tipo de gente  que éramos obrigados a conviver.

Qualidades pessoais à parte, bom mesmo era ver o cara editando, mexendo nos controles da sua engenhoca com dedos mais rápidos que os olhos podiam seguir.