...como dizia Balzac ao
descrever o senhor Grandet, em Eugénie Grandet,
«O senhor Grandet desfruta em Samur de uma reputação cujas causas e efeitos
não podem ser totalmente compreendidos por pessoas que não tenham vivido muito
ou pouco numa província»,
...por essas e por outras, imagino que o livro Marcelino, de Godofredo
de Oliveira Neto, talvez deva ser compreendido com esse olhar, nesse diapasão
de quem tem parentes na roça, e que ao mesmo tempo vê, escuta e sente tudo, com
a devida familiaridade da matuta estranheza. Ou seja, um olho na roça e um olho no Modernismo.
...a estória se passa nas costa do litoral de Santa Catarina, onde vive Marcelino
Alves Nanmbrá dos Santos, o herói - ou anti-herói do romance. Marcelino é um jovem
pescador, neto da mistura de uma avó índia, com um escravo e um açoriano. Profissionalmente, Marcelino cruza e cabeceia, é uma espécie
de arrais, pescador e contramestre, que pilota um barco de pesca, o Divíno
Espírito Santo, presente se sua avó a quem dedica toda sua memória e
agradecimento. A embarcação, que aos 15 anos recebera de presente, é uma
baleeira de onde tira seu ganha-pão e que seria razão de sua vida, e diga-se de
passagem, do início de sua desgraça.
...eventualmente, Marcelino, trabalha para o ex-senador da República e alto
funcionário do governo federal Nazareno Correa da Veiga di Montibello, casado com Emma Alencastro quando
este passa férias na Villa Faial, na praia do Negro Forro: tipo assim, leva para passear, traz
um peixinho fresco… e por ai vai.
...os Di Montibello são uma família politicamente poderosa. A casa e a rua são a mesma coisa. Usufruem da coisa pública de uma maneira semelhante com que administram a casa. Os cientistas sociais diriam assim ó, dos Montibello: o aconchego e as formas emotivas, falsamente próximas, com que tratam os empregados são levadas à esfera do Estado com naturalidade sem maiores dramas quanto à reserva do que é privado ou público.
...além da grana, da ascendência baseada no patrimonialismo, e do poder baseado na imbricação política, os Di Montibello tem dois outros tesouros. As filhas Sibila e Martinha. Sibila é uma menina que, na flor da puberdade, insinua-se para Marcelino – que não é bobo né! Não que aos 18 anos o rapaz não sentisse falta de uma mulher. Sentia. Obvio que sentia. Imagine, você leitor, os hectolitros de testosterona, próprios dos 18 anos, projetados numa Sibila andando por ali pela praia do Negro Forro. Mesmo em seu silêncio, Marcelino, que é jovem de vida simples, e que cuida de pássaros, e que vive em harmonia com a natureza e com os vizinhos, tem seus momentos de reflexão e divagação romântica, se é que vocês entendem quando se fala de Romantismo. Ou seja, no plot do livro, Marcelino sabe que se chegar junto em Sibila a treta fica cheia de complicações.
...Nego Tião é o amigo de Marcelino que entende da vida prática. O rapaz é aquele anjo torto que todo o amigo tem. Nego Tião tá de olho em tudo. Vê que a moça se insinua para Marcelino de uma maneira diferente, mas que este estranhamente não corresponde às investidas. Nego Tião então o instiga para conhecer as mulheres do “L’Amore”, onde, segundo o próprio, Rosália lhe ensinaria tudo. Ou seja, tudo. Nesse caso tudo é tudo, entendeu? Mas ele não consegue convencer a um Marcelino que dispensava no “Amore” tanto quanto tudo aquilo que poderia encontrar em Sibila. Enquanto no “L’Amore”, segundo reflexões de Marcelino, estavam as mulheres de todos e, portanto, nenhuma que se encaixasse em seu universo idílico, filha do senador, não fazia por menos em mostrar-se sempre superior, elitista, cosmopolita - caso se pudesse dizer isso de alguém do Rio de Janeiro. Mas de fato, sempre quando Sibila passava férias na Villa Faial, o jogo de sedução se repetia, ano a ano.
...os
personagens secundários são igualmente um universo à parte nesse mosaico
balzaquiano que o autor vai montando aos poucos. Mesmo sem dar muito ouvidos ao
Nego Tião, é só junto aos companheiros do colégio Luis Delfino que Marcelino se
sente em casa, à vontade, com os seus. Seus como a professora Ednéia, como Martinha, filha de Ézio, da
venda de Praia do Nego Forro, menina sonhadora que queria casar - talvez com Marcelino. Ou seus, como o
próprio Tião do Luiz Delfino, um amigo próximo, que é o responsável por
desvendar a razão do estoicismo de Marcelino. Tião é quem descobre ter sido Marcelino embruxado pela alemoa Eve,
a governanta dos Di Montibello. A mulher que pelo apodo de “potranca polonesa”
devia mesmo ter nada de metafísico e muito de femme fatale. No
fundo, Marcelino só tem olhos para a governanta do doutor Nazareno Correa.
Sendo mais claro, Marcelino só tem olhos para butique da alemoa.
...e justamente no momento em que a paixão por Eve é revelada na trama, sua vida
parece virar de ponta a cabeça. O jovem tem seu destino mudado a partir de uma
tempestade no mar que causa grandes estragos a sua embarcação e pior que isso,
resulta na morte de um de seus ajudantes, um menino aprendiz de nome Edinho. De
volta à Praia do Negro Forro (vizinha de Santo Antônio de Lisboa, Ilha de Santa
Catarina – se não sabe onde é, dá ai um Goolgle), atormentado pela perda, Marcelino
Nanmbrá, ou simplesmente Lino Voador, retorna desnorteado, remoído pelo
arrependimento, ferido gravemente na mão.
...gravemente
ferido na mão e deprimido, Marcelino está entregue a uma espécie de letargia, quando Eve aparece em sua casa. Ele interpreta a visita como algo
mais que solidariedade. Dá-se um diálogo de surdos. Ele, ainda atormentado pelo
infortúnio, e a polonesa falando de planos mirabolantes que consistiam em
Marcelino salvar o Brasil. Percebendo que suas palavras não surtiam efeito nos
pensamentos ausentes do pescador, Eve começa a insinuar-se, o que faz com que
Tião, um tipo digamos mais sagaz para esse tipo de coisa, dias mais tarde interpreta
o evento de maneira prosaica, comentando que a polaca anda com calor
nas partes.
,,,as férias acabam. Os Di Montibello retornam ao Rio. A mão ferida piora por
falta de tratamento. A febre toma conta de seu corpo, a gangrena é inevitável e
a amputação da mão uma consequência natural. Tudo podia ser trágico, mas o
autor estanca aqui o calamitoso.
,,,aqui, Godofredo começa com suas investidas no triller de espionagem. Diga-se de passagem, muito bem fundamentado em fatos históricos e em detalhes históricos que passam pelas transmissões do Reporter Esso, e pelas linhas das revistas Seleções, Diretrizes, e por ai vai. A série de
acontecimentos e infortúnios em torno ao acidente de Marcelino desencadeiam uma
manipulação de bastidores dos inimigos políticos de Nazareno Correa.
...Eve e o Senador convencem Lino a passar uns tempos no Rio para se recuperar e cuidar dos pássaros do Senador, entretanto, o que está em jogo é uma ação muito mais ambiciosa. A casa do senador é frequentada por políticos, empresários, agricultores, exportadores, banqueiros e toda uma gama de gente do andar de cima, simpatizante ou não do governo. O próprio senador é homem que tem livre acesso ao Palácio do Catete. Estamos mais ou menos nos inícios dos anos 1940, época da política das barganhas de Vargas. Anos antes, Karl Ritter é declarado persona non grata, pelo governo brasileiro, o Wilhemstrasse paga com a mesma moeda expulsando Moniz Aragão da Alemanha, o Eximbank manda dinheiro para a constução da CSN e por trás desses grandes acontecimentos pendulares internacionais entre os pró-americanos e os simpatizantes do Eixo, existe a política palaciana no Catete muito mais local e realista como foi o governo Vargas. E é ai que entra o Claudionor!
...Claudionor
é dos assessores políticos de Vargas, visto por aqueles dias de estada de
Marcelino no Rio com Eve e seu grupo. A figura nefasta na política das paragens
da praia de Negro Forro, por ter interferido na decisão de Getúlio em romper
relações com o Eixo e consequentemente contra a Alemanha. Em seus diálogos
internos, Eve sonha com ver Lino matando-o a tiros. E Lino, aos poucos passa a
acreditar nos sonhos megalomaníacos da amante, e entende, em sua maneira
peculiar de entender o mundo, que ele salvaria o Brasil eliminando Claudionor.
...bom, eu também paro por aqui, respeitando o clímax da estória, e dou um salto
de algumas páginas para o final reconciliador. Marcelino regressa a Santa
Catarina num cargueiro sujo e infestados de arganazes. Esquecido e “perdoado”
pela família dos patrões grã-finos. O Marcelino que retorna à praia do Negro Forro como um farrapo humano. Chega irreconhecível - aqui, por volta do capítulo 98, pode haver um pequeno erro de continuidade, pois o protagonista é algemado...como algemado? Entendeu?
Os Di Montibello acharam por bem, melhor dizendo, que pobre coitado fora enganado pelos nazistas. No dia seguinte, todos correm para a àrvore onde Marcelino pendura suas gaiolas em galhos altíssimos. Anda de galho em galho, vago nos princípios e impreciso em suas desilusões, carregando memórias absolutamente enigmáticas. Para os que o viam do pé da árvore, não faziam do que ocorrera no Rio. Estes, pensam que se jogará. Martinha murmura de amor. Tião sobe para tentar socorrê-lo. A professora chama-o manumisso. Talvez fosse. Talvez não. Fato é que todos os personagens desconhecem sua intenção, e inclui-se aí o leitor, já que Godofredo Neto, habilmente segreda o foco narrativo de Marcelino, calando-o nos momentos decisivos da trama. O alçapão de Marcelino, ou melhor, a gaiola de Godofredo de Oliveira Neto não é feita para pegar trouxas. Ou é…
...pois um muito trouxa como eu, tem a
impressão errônea, ao fechar o livro, de que Marcelino figura como um títere.
Um objeto de mofa utilizado pela família do senador, por Eve, e pelos seus
amigos. Mas essa idéia vai se desfazendo aos poucos, ao se perceber que do
ponto de vista da construção do personagem, Godofredo de Oliveira Neto rompe
logo de cara com duas idéias genéricas contidas no Modernismo. Primeiro, seu
livro se encaixa talvez muito de longe na proposta Regionalista. Há ali
obviamente essa tal tensão entre o idílico e o realista, o vinco entre a
oralidade e a língua culta (inclusive atentando para as idiossincrasias do
português falado na Negro Forro e no Rio de Janeiro), entre o campo bucólico e
cidade perversa. Mas pára por aí e não se prolonga nisso de maneira lá muito
exaustiva. Segundo, o autor, mantendo a estrutura narrativas de tempo,
respeitando a separação muitas vezes irreconciliável entre o culto e o popular
– clara quando Marcelino trauteia uma ària de ópera ouvida na casa dos Di
Montibello - , imprime um profundo respeito com a linguagem, e não assume o
texto como um relato, onde o narrador é onipresente. Nesse ponto, rompe e
ultrapassa a herança modernista e meio tosca de herói. Godofredo tira Marcelino
do espectro desse herói... daquele herói..., que sem nenhum caráter, que
racionalmente se posiciona acima do bem e do mal, que por isso mesmo isenta-se
da moral, é um herói que por malabarismos linguísticos transforma-se no herói a
procura de um caráter.
...a pretensão de Godofredo de Oliveira Neto é clara, ao menos para mim. O autor
tenta fugir da retórica do Modernismo, que a reboque de tanto academicismo, de tanta
bobagem, criou, e tenta refundar seu Marcelino claramente como um herói
pré-moderno, nos moldes dos heróis vencidos bem próprios e mais próximos de um
protagonista da obra de Lima Barreto - o mais visionário e avançado dos
modernos. Na verdade, pra ser sincero, nem sei se Godofredo de Oliveira queria
criar novos heróis literários ou prender no visgo do seu alçapão os ainda tentam
sobreviver.
Música
do dia. Matador de Passarinho. Rogério Skylab.