Nosso Grão Mais Fino


Vim considerando, ao ler 'Nosso grão mais fino' que quem gosta de ler um livro com um lápis na mão, sublinhando, como eu, belas passagens, para refletí-las a posteriori quando a memória falha, terminará este livro com a sensação de que tudo é intenso na beleza rara e enigmática da escrita de José Luiz Passos. Neste livro, episódios fictícios se mesclam a outros - tais como a passagem do Zeppelin por Recife, que presumo terem realmente acontecido, haja vista as constantes alusões que o texto faz a detalhes que seriam não de todo impossível inventados por um bom manipulador de palavras como Luiz Passos é - e extravazam a capacidade simplesmente inventiva que a ficção comporta. E uma tendência, grata, da literatura atual vista já vista em Jose Luis Peixoto

'Nosso grão mais fino' centra-se na estória de Vicente Campelo e Ana Corama, dois ex-amantes que reencontram-se após longos anos de separação. Ainda que centre seu foco sobre dois personagens somos temporariamente convidados a seguir as ações da memória dos amantes supostamente incestuosos, já que não necessariamente eram relativos sanguíneos. Quando eram jovens suas vidas tomaram rumos distintos. Ana casou-se e tornou-se escritora de livros infantis. Vicente vagou pelo mundo. Agora, quando ela vive um casamento em ruínas, ambos se reencontram e tentam dar sentido às memórias do passado. Memória muitas vezes dolorosas como as da morte do pai de Ana na ocasião da passagem do Zepelim por Recife, quando ele sem razões aparentes, comete suicídio atirando-se do dirigível. Nesse exercício mnemônico de acerto de contas com o passado Vicente também tenta reconstruir a memória de sua decadente família de usineiros. Tudo, a começar pelo título, gira em torno ao processo de fabricação do açúcar, tão intensivamente injusto quanto aquele retratado nas vigorosas páginas de Casa Grande e Senzala ou nas metódicas descrições de Stuart B. Schwartz. Em tudo que circunda a usina – mesmo que o leitor jamais tenha pisado numa, como é meu caso - há algo de familiar e estranho na continuidade da força patriarcal. A paisagem canavieira e o laboratório são o pano e fundo para várias estórias rememoradas e complexa história de paixão entre Vicente e Ana onde a dissolução familiar é apenas um apêndice.

Talvez seja um livro, que em minha modesta opinião, esforce-se por criar referências aos amantes que serviram de modelo demorando-se as vezes em algumas cenas e sendo bastante breve em outras – como por exemplo a cena do suicídio de Dahirou. É uma narração que varia entre uma terceira pessoa onipresente e ao menos duas primeiras pessoas. Nos primeiros capítulos, de fato o leitor se sente confuso com a vozes, mas aos poucos vai se familiarizando com as de Vicente e Ana que vão tomando conta da narrativa, e que de fato são distintas em estilo e propósitos.

Apesar de notar que houve a franca intenção de me levar a visitar a consciência dos personagens, suas culpas, seus arrependimentos, suas lutas internas contra a atração incontrolável de um pelo outro, achei insatisfatória a insistência na taxação do affair entre Vicente Campelo e Ana Corama como um incesto. Passos evoca até mesmo Asmodeu para nos convencer do tabu. Por outro lado, este é um livro que põe em xeque qualquer tentativa de crítica, pois é necessário ao leitor contorná-la dela com extrema cautela. Não é um livro fácil, não há didatismos fáceis nas imagens e metáforas. Há nelas sim, uma fascinante pluralidade, uma abiguidade, uma lúdica riqueza que algumas vezes podem até se perder por excesso, mas jamais por imprecisão. Há poucos dias encontrei uma resenha na internet onde o resenhador dizia...”Há sempre uma palavra sobrando: uma mulher não arranha as costas do amante - ela arranha "a pele que lhe recobre as costas". O leitor será capaz de adivinhar o que é a "cicatriz do canal por onde saciou a primeira fome apegada ao fôlego do simples cordão torcido e vigoroso"? É apenas uma perífrase barroca para dizer "umbigo". Poderia até concordar, caso não tivesse acabado de ler há poucos dias um livro de Philip Roth onde o protagonistas não fazia cerimônias, não se perdia nas tais perífrases barrocas alusivas para definir sua predileção pelo esfíncter da modelo dinamarquesa com quem se casou. Tudo bem, é Roth, mas há outras maneiras de velar e desvelar. A opção do Luiz Passos foi acertada do ponto de vista estético e narrativo. Primeiro, por que narrar é um exercício constante. Segundo por que escrever literatura requer um exercício constante de linguagem.

Se não fosse por essa opção, não teríamos trechos belos como este:

Ana Corama me olha com sua visão agravada por olheiras lilases. Seu cabelo espaventoso recusa trégua. Diante dela sou eu quem se emaranha pelos sortilégios que armam à sua volta uma impressão de densa maciez [...].

Por fim, não vou entrar nas análises sobre se a obra é regionalista, se tem ecos de Freyre ou a densidade de uma prosa anti-cabralina, se a linguagem é experimental, ou se os personagens são plausíveis, pois isso é assunto para a intelligentsia. Termino o livro com a impressão de um amargor, alguma coisa de aspereza mesmo em seus grãos mais finos.