Matias na Cidade

“Por que é que não consigo viver feito os demais?
Entre albums de famílias, bens, trens, mobília e paz”
Matias na Cidade é o primeiro livro de Alexandre Porto. Um livro ágil e veloz que narra em terceira pessoa quatro dias da vida de Matias Grappeggia. O livro nos fala de um homem aparentemente bem-sucedido, aparentemente bem casado, pais de dois filhos e que considera sua vida uma vida aparentemente equilibrada. Em suma, um homem de classe média, visível em qualquer grande centro urbano. Visto de longe, Matias inspira confiança em cada passo. Sua segurança se confunde com arrogância numa carreira profissional onde alcançou o ápice. Mas as coisas não são bem como parecem. Certo dia o protagonista desperta num quarto de motel, nu, sem dinheiro e sem memória imediata. Desde esse fatídico dia Matias torna-se um homem angustiado e aflito com a iminente perda de memória, e ao despertar após quase trinta horas de sono, tenta a todo o custo, sem sucesso, lembrar da prostituta com quem passara a noite.

Ao acorda nauseado, vomitando, mas não necessariamente bêbado, decide procurar Henrique, o médico e amigo, para uma bateria de exames detalhados a saber se havia sido intoxicado. Nesses dias passa por uma via crucis pessoal. Imagina-se gravemente doente, fragilizado, desconhece-se, definha por dentro com a sua própria condição, certifica-se que seu casamento é uma falácia e em meio ao suspense de quem seria aquela mulher misteriosa do motel, busca obsessivamente por respostas, por uma cura talvez.

Aos poucos descobrimos nos detalhes de sua vida que Matias é um cidadão desencantado com a promessa de estabiliade e felicidade conjugal. Uma pessoa distante no trato com a família, com os amigos - que apenas aparecem para fins utilitários ou políticos -, e com os empregados. Nos detalhes. No sexo. Nos detalhes do sexo com a esposa, após um jantar na casa de amigos. Na impaciência. Na relação distante com o filhos e netos. Na distância. No detalhe do bilhete deixado para a mulher anunciando que iria fazer um checkup...

“S.
Vou fazer uns exames para o meu check-up e passarei a noite na clínica do Henrique. Voltarie amanhã de manhã. Não se preocupe, não é nada sério. Beijo, M.”


Nos pequenos detalhes, em tudo arde as imagens de um para o outro. Assim, sem mais, Matias procura constantemente outras mulheres. Procurando o tempo todo encontrar alguém que bastasse para ele povoar sua solidão, luta paradoxalemente contra a falência dos planos de juventude. A infelicidade conjugal não é uma arma para ferir a mulher, ao contrário, é a maneira que Matias encontra para manter convívio com Susana, sua esposa. No convívio dos dois não há o demoronamento das grandes crises, nem a violência das grande discussões. Ele nem sequer cogita em momento algum deixá-la, e vice-versa. Nenhum dos dois quer ir embora com asco, sem olhar para trás, preferindo a hipótese de que, como diria Lygia Fagundes Telles, o amor apodreça e se torne insuportável seu cheiro. Preferem a hipocrisia da família tradicional brasileira: marido, esposa, dois filhos e respectivos amantes. Tudo em nome da paz conjugal.

Em realidade, a esse pântano conjugal agregam-se outros mistérios no decorrer dos três dias restantes. Matias descobre-se só em seu universo de conforto e consumo onde o que o incomoda de fato é a cor e o modelo de seu carro. Os resultados dos exames parciais não revelam grande coisa. Os exames finais, o autor não nos permite saber aumentando ainda mais a incógnita sobre as neuroses de Matias. Susana descobre-se grávida já perto da menopausa. No enterro de Matias, constam apenas os dois filhos e os netos, Susana, e alguns poucos.

Last but not least, encerro fazendo beiçinho literário de crítico sapiente da Folha Ilustrada dizendo que a terceira pessoa é artifício seguro que o narrador usa para manter a distância tácita entre o desprezo e a compaixão por um protagonista ‘galinha’, hipocondríaco e solitário. Artifício eficiente, também, para exibir o fio condutor do enredo relacionando as personagens a um único vínculo, e por isso talvez apresentando-as um tanto estanques, de fato, como se fossem apenas acessórios da órbita de Matias. Certamente há algum deslize para o pseudolírico nas últimas passagens quando tenta chegar a casa de Orlanda na periferia para o batizado da neta da empregada e pára inopinadamente numa birosca para tomar uma cerveja e jogar sinuca com um desconhecido. Lá encontra uma balconista de com quem transa naquela tarde esquecendo-se de todos os demais compromissos - sem dúvida uma cena inverossímil. Pergunto. Houve ou não certo exagero nessa última possibilidade de felicidade romântica? Alexandre Porto certamente diria que não. Eu acho que sim, que ele aliviou a barra do seu protagonista. Enfim...
Há de se ler, Matias na Cidade!
Nota. Esse livro vira filme. Anotem.
Música do dia. Tarzan, Filho do Alfaiate. Noel Rosa.

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