MAURA LOPES CANÇADO

 



Título Maura Lopes Cançado
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: xilogravura


Filha de José Lopes Cançado e Affonsina Álvares da Silva, Maura foi a nona entre onze filhos. Nasceu a 27 de janeiro 1929, na próspera fazenda de seus pais em Minas Gerais, no atual município de São Gonçalo do Abaeté. Oriunda de uma família católica, não necessariamente mais rica, mas uma das mais aristocráticas mineira, Maura descendia de figuras históricas com forte influência e destaque na política mineira e nacional, sobressaindo o nome de José Maria Lopes Cançado - primo do pai de Maura -, um dos parlamentares participantes da Constituinte de 1946. A mãe de Maura, por sua vez, é descendente de Dona Joaquina Pompeu, latifundiária e mítica escravocrata na história mineira. Assim, cresceu com uma difusa sensação de que nem tudo é tão difícil como parece na vida.

Filha temporã, sua infância foi cercada de cuidados intensos, por apresentar uma saúde muito frágil. Um ambiente opressivo, onde tinha inveja da irmã mais nova, Selva, por exemplo, por esta poder usar um chapéu vermelho. Principalmente, por que a mãe tinha feito uma promessa de vesti-la apenas de azul e branco, cores da Nossa Senhora, enquanto o pai não permitia que se lhe cortassem os cabelo. A promessa tinha prazo de validade: até que completasse 7 anos. Mas justamente quando deixou de usar as cores, coincidência ou não, ela teve a primeira crise epilética.

Sua imaginação sempre foi intensa fabulando versões de sua própria vida. Contava às amigas de infância que era filha de russos e que um seu tio nascera na China. Aos 14 anos quis estudar alemão para ser espiã nazista, e voar.

Em tempos de estudante, frequentou as boas escolas de elite mineira, tendo por um período estudado em colégio interno em Patos de Minas.  Aos quatorze anos começou a frequentar o aeroclube de Bom Despacho com a intenção de tirar o brevê de aviadora. Ali conheceu o jovem de dezoito anos com quem iria se casar, Jair Praxedes, filho de um coronel do exército, de quem engravidou logo após o casamento, realizado apenas no religioso, dando à luz um menino Cesarion - mesmo nome do filho de Cleópatra e Júlio César. A relação durou doze meses. O casamento terminou quando tinha apenas quinze anos de idade, ano também marcado pela morte do pai.

Anos mais tarde a escritora descreveria sua passagem da infância para a  adolescência como “superangustiada”, cercada por pesadelos, tanatofobias, ataques de epilepsia, e, segundo relatou no Hospício é Deus, foi abusada sexualmente três vezes por empregados da família. Sobre o breve casamento, Maura admitiu que, durante o curto tempo de matrimônio, no fundo em quem pensava mesmo, sexualmente falando, era no coronel Praxedes, seu sogro, “maravilhoso, alto, imponente e importante”.

Com o filho ainda bebê, a mãe a presenteia com um pequeno avião, um Paulistinha - mesmo sabendo que a filha era epilética -, no qual coloca o nome de “Cesarion”, mas pouco tempo depois, o avião estava completamente destruído num pouso forçado de emergência. Foi então para Belo Horizonte para concluir seus estudos, mas o fato de ser jovem, mulher, divorciada, nos anos 1940, não reverberava bem no tradicional costume mineiro.  Com essa espécie de estigma, por ser uma mulher divorciada, perambulou de pensionato em pensionato, até poder se hospedar num luxuoso hotel na cidade. Morando sozinha, estudando duas ou três línguas, passou a frequentar a boemia de Belo Horizonte. Saía muito, fumava, bebia e frequentemente se divertia com esses novos amigos, até que em 1949, aos vinte anos, quando se descreveria como nervosa, doente, magra e sem sono, Maura se interna pela primeira vez na Casa de Saúde Santa Maria, uma clínica psiquiátrica, na capital de Minas Gerais. 

O fato é que Belo Horizonte ficara pequena para essa mulher que pensava e se comportava à frente de seu tempo. Sem perspectivas, decidiu então viver no Rio de Janeiro, aos 22 anos, não sem antes, no final dos anos de 1950, internar-se no Hospital Gustavo Reidel, no Engenho de Dentro. Se dizia uma mulher bonita e com uma inteligência acima do normal. 

Quando começa a se aproximar de jornalistas do Jornal do Brasil e pelo Correio da Manhã já se percebia uma personalidade sedutora e explosiva. Em menos de 7 anos já teria alguns polêmicos contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, passando a conviver e a beber com intelectuais e escritores como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Reynaldo Jardim.

Os ventos iam de encontro a Maura, pois coincidentemente o Suplemento Dominical tinha aberto espaço para essa nova geração de escritores, jornalistas e críticos que ainda contava com Ferreira Gullar, Mário Faustino, Clarice Lispector e José Louzeiro.  alguns destes  se tornariam platéia cativa para as histórias fantásticas de Maura.

Para se ter uma idéia da influência deste caderno do Jornal do Brasil, a arte de vanguarda tinha seu lugar de discussão no Suplemento Dominical, onde, entre outras coisas, o poeta Mário Faustino assinava a revolucionária página “Poesia-Experiência” e onde também foi publicado, em 1959, o famoso Manifesto Neoconcreto.

Quando o jornalista Sebastião de França, que morava na mesma pensão de Maura, nas proximidades da rua Riachuelo, trouxera o original de um poema para o parecer de Assis Brasil junto a uma advertência, “ela é maluca e bipolar," Assis responde: “Então somos dois”.

Aprovado pela editoria, o poema sai na primeira página do Suplemento Dominical em 24 de agosto de 1958,  ao lado de um artigo e um outro poema:   O artigo era da temida Barbara Heliodora sobre a visita do ator e teatrólogo Alessandro Fersen, e sua montagem Il Diavolo Peter, no Brasil. O poema ao lado, era de um poeta amazonense, o bissexto  Antisthenes Oliveira Pinto, um dos articuladores do Clube da Madrugada manauara.

No período em que colaborou com esses jornais, teve sucessivas crises que a levaram a hospitais psiquiátricos, sendo que boa parte dessas internações foram voluntárias. Uma das primeiras dessas crises mais evidentes acontece justamente quando da publicação de “No quadrado de Joana”, conto publicado na primeira página do SDJB, onde a personagem catatônica, obsessiva, anda em linha reta, sem parar, pelo pátio quadrado de um hospício. Na ocasião, Maura agradece tão exageradamente a Reynaldo Jardim, que o episódio é narrado da seguinte forma pelo jornalista José Louzeiro, colega de Maura no Suplemento Dominical, “Ela ficou tão surpresa que no dia seguinte, nós estávamos na redação – era uma redação só para o suplemento, um espaço muito bem iluminado, o chão muito cheio de sinteco –, ela se atirou no chão pra agradecer o Reynaldo Jardim, de joelhos. Escorregou, esfolou os dois joelhos, nos deu um trabalho… Tivemos que levar Maura na farmácia pra remendar o joelho, ficou todo esfolado. Essa era a Maura.”

Segundo Carlos Heitor Cony, este foi o início de uma série de contos magistrais. Cony declarou certa vez que a comparavam a Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. “Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura”, conclui Cony.

Maura se tornou escritora revelação de 1958 quando publicou em 16 de novembro “No quadrado de Joana”. Um conto que traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício, conto, inclusive, que chega a ser elogiado por Clarice Lispector. No ano seguinte publica 3 contos no Suplemento Dominical, "O Rosto" em 19 de abril, "Introdução a Alda" na edição de 22 de agosto e "O Sofredor do ver" em dezembro do mesmo ano. No ano de 1961 publica "Rosa recuada" em maio, e em julho publica um de seus mais tocantes contos, "Espiral ascendente", que traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia, a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre -  tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra e ameaçou jogar-se de uma cachoeira.  Uma situação que lembra bem o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud no limite da fronteiras da sanidade, entre a arte e a vida. Outros 2 contos, "A menina que via o vento" e "Espelho morto" seria publicados respectivamente em dezembro de 1964 e novembro de 1965. 

Já, tanto nesses primeiros contos, como em seu primeiro livro Hospício é Deus, apresentava uma escrita diferente. Uma preferência pela técnica narrativa da autoficção, permeada por uma veia confessional.  Não por acaso o crítico Assis Brasil, um dos poucos, senão o único crítico renomado a analisar seu livro de contos, a considerava uma revelação literária da virada dos anos 50 para os 60.

Ainda trabalhando na redação do Jornal do Brasil, tinha surtos bipolares. Num dos episódios de extrema agressividade, Maura atirou uma máquina de escrever pela janela da redação do JB. Também chegou a jogar uma estante sobre um colega sem nenhum motivo aparente. Reconhecendo sua própria fragilidade se internou voluntariamente, em 1959. Internou-se no Hospital Gustavo Riedel do Engenho de Dentro, ficando entre outubro de 1959 e março de 1960.

Nesse período, já com 30 anos. Por sugestão de Reynaldo Jardim, escreveu o diário que viria a ser publicado cinco anos mais tarde como O hospício é Deus: diário I, publicado em 1965, enquanto os contos que haviam sido lançados no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã viriam a ser publicados na coletânea O sofredor do ver, seu segundo e último livro com uma coleção de contos, em 1968.

Em O Hospício É Deus, descreve a infância passada na fazenda e analisa os precoces embates em seu mundo interior. As expressões e modo de narrar, denotam o contexto opressivamente religioso e católico que a obrigara a usar azul e branco até os 7 anos de idade. Denuncia os abusos sofridos por Maura e outros pacientes no Gustavo Riedel e foi um marco na luta antimanicomial:
Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providencias para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. […] o professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”.

Os diários teriam supostamente uma segunda parte que foi esquecida por José Álvaro, editor do livro, dentro de um táxi. Nunca foi encontrada. 

Após este período de internação,  já passava por dificuldades financeiras, dividindo apartamento na rua Riachuelo com uma bailarina e trabalhando como escrevente datilógrafa no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Permaneceu nesse trabalho, como funcionária pública, por oito anos, sempre entre uma licença e outra para se internar ainda às custas do IPASE, o extinto Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado.
Já nos anos 1970, estava num estado de completa pauperização. Dependia da ajuda de amigos e de seu incansável filho, Cesarion, agora com 27 anos. Ele a acompanhava e custeava as internações, algumas pela via de convênios médicos.

Segundo Carlos Heitor Cony, quando calma, era uma mulher “doce, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.”  

Numa dessas internações, na noite de 11 de abril de 1972, Maura, recolheu-se à noite para dormir. Cerca de três horas depois, foi até o consultório médico, dizendo a uma funcionária que havia matado uma das pacientes, que se encontrava na enfermaria do Hospital Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma jovem grávida, morta por estrangulamento, com uma faixa de pano rasgada de um lençol. O médico plantonista relatou que Maura assumiu a responsabilidade pela morte da jovem paciente.
Maura foi julgada pelo Tribunal do Júri e, em 15 de outubro de 1974. Foi considerada inimputável - incapaz de responder ao caráter criminal dos fatos cometidos. O juiz aplicou uma medida de segurança de internação em um estabelecimento psiquiátrico judiciário com uma duração de seis anos.

Nesta época, o manicômio judiciário do estado do Rio de Janeiro não aceitava mulheres e as clínicas e hospitais psiquiátricos particulares se recusavam a recebê-la. Maura foi então enviada à Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, onde ficaria por 6 anos.

A jornalista Margarida Autran encontrou a escritora em julho de 1977 no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito. Encontrou-a abandonada, numa cela imunda, infestada de percevejos. A jornalista a descreve como uma mulher envelhecida, desnutrida, parcialmente cega e com dentes podres, sem nenhum acompanhamento psiquiátrico. O banho de sol lhe era negado, por seu comportamento constantemente irascível, e seu único contato com o mundo era um radinho de pilha. Por meses ninguém a visitava. José Louzeiro e outros amigos do Sindicato dos Escritores do Município do Rio de Janeiro, compadecisdos, se prontificaram, à época, a pagar uma clínica psiquiátrica e a operação de cataratas, tendo votado a enxergar. Mas depois de seis anos de reclusão no hospital psiquiátrico, Maura foi solta em 1980, passando por várias outras clínicas nos 13 anos seguintes, sem nunca mais voltar a escrever.

Nos últimos anos, com a saúde debilitada pela asma e por não aceitar parar de fumar, passou a ser constantemente internada no Centro de Terapia Intensiva. Em 19 de novembro de 1993, Maura faleceu vítima de insuficiência respiratória decorrente de “doença pulmonar obstrutiva crônica”, aos 64 anos de idade, no Rio de Janeiro (RJ)
“Morreu esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas particulares”, escreveu Carlos Heitor Cony (1916-2018), em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo em junho de 2007.

No mesmo ano, Flávio Moreira da Costa organizou no Brasil a obra “Os melhores contos de loucura”, na qual é a única escritora mulher, que ainda estaria na expectativa de ser revisitada. Em 2011, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil reeditou pela primeira vez a íntegra do livro “O sofredor do ver” que possuía apenas uma edição conhecida e muito rara datada de 1968.



CAROLINA MARIA DE JESUS

 


Título Carolina Maria de Jesus
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: litogravura sobre xilogravura
 
Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira, escreveu Carolina Maria de Jesus em um dos seus livros mais emblemáticos. Nasceu a 14 de março de 1914, na cidade mineira de Sacramento. A mãe era uma pequena agricultora, sendo que o pai era um homem bastante agressivo. Ambos semi-letrados. Cresceu sempre com alguns problemas respiratórios e aos sete anos, a mãe obrigou-a a frequentar a escola. Mas ela abandonou os estudos no segundo ano, por já entender que sabia ler, escrever, e perceber que tinha já apego suficiente à leitura, para que não precisasse mais da escola.
Quando sua mãe morreu, tinha 23 anos e migrou para São Paulo, tentar a vida. Na cidade, trabalhou como babá, doméstica, explicadora, e catadora de papel. Por um tempo foi empregada doméstica de um famoso cardiologista paulista, o que permitiu Carolina ter acesso à biblioteca do médico, nos dias de folga.
Em 1937, se muda para o novo bairro do Canindé, uma comunidade pobre às margens do Rio Tietê, onde constrói, ela própria, uma casa com restos de papelão, madeira e chapas de metal. Aos 33 anos, desempregada e grávida tem seu primeiro filho de uma relação com um marinheiro português, passando a dividir seu tempo entre cuidar do bebê e sair pelas noites para coletar papel, a fim de conseguir dinheiro para sustentar a nova família. Carolina teria mais dois filhos em 1949 e 1953. Os três filhos, como ela mesmo disse, foram de relacionamentos diferentes e todos frutos de gravidezes não planejadas, o primeiro filho nasceu de um português, o segundo de um comerciante espanhol e a terceira  de empresário brasileiro que a agredia e humilhava. Carolina nunca quis se casar para, ainda segundo ela, não ter que ser submissa aos homens.
Ao mesmo tempo em que trabalhava como empregada doméstica ou catadora, ia registrando o cotidiano da comunidade onde morava nos cadernos que encontrava e no material que recolhia. Em algo como 15 anos, juntou mais de vinte cadernos de escritos, cujos crassos erros gramaticais e de grafia, ao mesmo tempo em que denunciavam sua pouca escolaridade, não a impediram de fazer sucesso no mercado editorial. Um destes cadernos, um diário que havia começado em 1955, deu origem a seu livro mais famoso, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado em 1960, no qual ela supostamente diz, Sou Carolina Maria de Jesus, Sou uma cidadã negra brasileira.  
Qualquer aluno da área de humanas em estudos latino americanos numa universidade americana, qualquer mesmo, já folheou Quarto de Despejo, que na versão deles saiu com um título mais edulcorado: Child of the Dark. Alunos brasileiros não tiveram esse privilégio intelectual por algumas décadas, pois suas reflexões sobre o Brasil, a miséria, a desesperança, a violência, e a condição da mulher negra na miséria brasileira, não se encaixaram no Modernismo, nem em suas versões regionalistas plastificadas, nem em sua terceira fase de prosa urbana, e nem na prosa memorialista ou autobiográfica de um Pedro Nava ou Érico Veríssimo. E, muito, muito menos no otimismo dos 50 anos em 5 do período Kubitschek.
Estima-se que o livro, ao longo dos anos vendeu mais de 1 milhão de cópias. Em 1962, Quarto de Despejo foi publicado nos Estados Unidos pela editora E. P. Dutton com o título Child of the Dark. No ano seguinte, como parte da coleção Mentor, a tradução ganhou uma edição de bolso publicada primeiro pela New American Library, depois pela Penguin USA. No Brasil, chegou a ficar na lista dos mais vendidos por meses, batendo inclusive Gabriela, cravo e canela do já renomado Jorge Amado.
Segundo o historiador americano Robert Levine, somente das vendas desta edição, que totalizaram mais de trezentas mil cópias nos EUA, Carolina e sua família deveriam ter recebido, pelo contrato original, o equivalente a mais de cento e cinquenta mil dólares. Mas a autora nunca viu a cor desse dinheiro.
As hipóteses para que isso tivesse acontecido são muitas, e envolvem um compreensível desconhecimento da autora sobre as falcatruas do mercado editorial, um certo mau-caratismo de editores, e até uma suspeita de estelionato intelectual. Tudo vago e nebuloso, numa óbvia maciota, onde mesmo que ninguém possa provar nada contra ninguém, fica aquela pulga atrás da orelha.
É certo que Carolina tinha direito a dez por cento do preço de venda das traduções, com trinta por cento de sua parte reservada ao jornalista Audálio Dantas, que trabalhava como uma espécie de copidesque, revisor e agente literário. Até aí, tudo bem. Ela recebia pequenos pagamentos em dólares das editoras americanas, mas, por força do contrato original, não podia autorizar traduções de sua obra: este direito fora cedido à editora Paulo de Azevedo, uma filial da editora Francisco Alves.  
De uma certa forma, o encontro com o jornalista Audálio Dantas, da Folha da Noite, em 1958, foi fundamental para que Carolina Maria de Jesus fosse conhecida como escritora. Alegou-se por muito tempo que o jornalista foi até a comunidade para fazer uma reportagem. Em lá chegando viu uma mulher negra, magra, mercurial, esbravejando contra uns homens que tomavam o espaço destinado às crianças, e ameaçando-os: caso não saíssem dali, iria colocá-los em seu livro. Audálio, com seu faro jornalístico, quis ver os manuscritos do tal livro. O nexo que fez aquele alagoano ir até a rua A, barraco número 9, entrar na casa humilde, constatar a miséria, pegar alguns daqueles cadernos encardidos, folheá-los, certificar-se dos imensos erros gramaticais, e assim mesmo levá-los consigo para ler com mais calma em casa, é um desses mistérios da intuição sobre o cheiro da notícia, que o jornalismo somente mostra para os bons jornalistas.
Carolina permitiu que Audálio levasse uma meia dúzia desses cadernos, dos quais primeiramente publicou trechos na Folha da Noite, em 1958. Os cadernos tinham 13 entradas com contos, poemas, confissões, e começavam em 1955. Audálio Dantas, então, organizou este material e começou a publicá-los homeopaticamente, conseguindo inclusive uma publicação da revista O Cruzeiro - com a qual ele passaria a colaborar em 1959, chegando a viajar por vários países da América Latina em reportagens como correspondente. Paralelamente, tocava as negociações com a Livraria Francisco Alves para que Quarto de Despejo mantivesse a grafia original, revisando apenas a pontuação.
Anos mais tarde, misteriosamente, essa versão é desmontada pelo próprio Audálio no livro Tempo de Reportagem (Leya), ao menos parcialmente. O autor afirma que durante anos Carolina andara pelas redações dos jornais, inclusive do Rio de Janeiro(!) anunciando-se como poetisa negra, sem ser levada muito a sério por nenhum repórter. Segundo o próprio jornalista, Carolina já tinha sido protagonista de uma reportagem, nos anos quarenta, e também já tinha publicado alguns de seus poemas na Folha da Manhã em fevereiro de 1940, sem muita repercussão. Ou seja, é como quem diz, não sou o responsável nem o culpado pelo que se gerou, pois Carolina já se entendia como escritora e perseguia esse momento de glória por mais de 20 anos.
O relacionamento pessoal de Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus, sempre foi marcado por uma certa tensão exposta nos diários dela, o que leva pesquisadores contemporâneos a questionarem até mesmo a idoneidade de Audálio Dantas, já que ao mesmo tempo em que a estimulava para que escrevesse cada vez mais, insistia para que Carolina continuasse escrevendo numa linguagem confessional no formato de diários do cotidiano. E a razão era transparente. O mercado aceitava. E mais, o mercado queria textos desse formato, vindos de uma escritora negra e marginalizada. Ele entendera isso desde o primeiro livro. Ela também, mas se rebelava contra essa certa imposição classista que beirava o racismo.
Daí surgiram vários atritos, que não se limitavam a questões estilísticas do texto de Carolina. E as divergências surgiram justamente quando começavam a entrar os primeiros dinheiros da publicação. Exemplo: em 1961 ela compra uma casa num bairro de classe média paulistana, ainda com os móveis dos antigos moradores dentro, dos quais não conseguia se livrar. Audálio intermediara a compra dessa primeira casa de alvenaria para Carolina. Uma casa entulhada de moveis velhos, suja e infestada de pulgas. E não parava aí. Ele sugeria em como gastar seus proventos, abria suas correspondências, e estava sempre por perto quando se tratava de dinheiro e controle das novas experiências de socialização nos novos círculos literários. Audálio Dantas já tinha até nome para o novo livro que o mercado queria: Casa de Alvenaria.
Uma relação profissional de altos e baixos que extrapolava o profissionalismo. Uns dias ela se queixava de Audálio, comparando-o inclusive a um senhor de escravos, e em outras ocasiões dava-lhe acesso aos talões de cheque e até mesmo a chave da casa para que entrasse quando quisesse.  
No ano seguinte ao lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, o crítico de teatro Decio de Almeida Prado deu notícia da adaptação da obra para teatro feita pela escritora gaúcha Edy Lima - uma escritora sem experiência em adaptações teatrais. Com Ruth de Souza no papel de Carolina, a peça teve direção de Amir Haddad e cenário de Cyro Del Nero. Ruth de Souza, que era dez anos mais nova que Carolina e aceitou o papel como um desafio numa fase de transição da vida. A atriz, que já estudara na Howard University em Washington D.C., a convite do Itamaraty, e com peças e filmes marcantes na carreira, vinha militando no Teatro Experimental do Negro desde meados dos anos 40, sempre com papéis secundários. Resolveu deixar o grupo para encarar novos desafios no grupo Vera Cruz - o que gerou inclusive algum atrito com Abdias do Nascimento. Já com participações em filmes como Sinhá Moça, e peças marcantes na carreira como Oração para uma negra, de 1958 de William Faulkner, Ruth vai à Favela do Canindé com Carolina e o local onde ela havia residido antes do sucesso repentino. A peça em si não agradou muito aos críticos, que viram uma adaptação mais para o cômico – focando nas brigas e bate-bocas da comunidade – que para o drama. Entretanto, Ruth de Sousa foi poupada das críticas, assumindo que a atriz sustentou realisticamente até o fim o peso dramático do sofrimento da protagonista Carolina Maria de Jesus.
Com o lançamento do primeiro livro, já adaptado para o Teatro, mesmo que numa montagem mal feita - segundo os críticos -, Carolina se lançou em novas veredas. Poucos sabem, mas além de escritora Carolina  cantava e tocava violão. E bem. Chegando inclusive, em 1961, a gravar um disco com 12 faixas, raríssimo hoje em dia, chamado Quarto de Despejo, com músicas de sua autoria. As loas se seguiam. As traduções do livro para o inglês, francês e italiano já estavam no prelo internacional e até a revista Paris Match chegou a fazer um perfil completo da escritora. Enquanto no Brasil recebia críticas e comentários elogiosos de escritores e intelectuais como Sérgio Milliet, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira, no exterior, Carolina era recebida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octávio Paz.
Certamente, Quarto de Despejo, é uma narrativa cheia de melancolia, com muitas lacunas sobre a vida pessoal, mas que propicia ao leitor um mergulho no cotidiano de uma mãe solteira, negra, pobre, que luta para manter os filhos em meio a um ambiente hostil cercado por vizinhos pouco solidários. A autora relatou no livro que muitos dos moradores da favela eram rudes e a hostilizavam, e isso ficou claro principalmente quando começou a fazer sucesso. Carolina definiu a favela como "tétrica", "recanto dos vencidos" e "depósito dos incultos que não sabem contar nem o dinheiro da esmola." Algo que Lima Barreto também chegou a dizer, certamente com muito mais resignação, sobre subúrbio do Rio.
O cotidiano da vida no Canindé, narrado no livro é violento, cheio de doenças, inveja, histórias de alcoolismo, fome e esquecimentos. A fome, aliás, logo de início, é definida como a escravidão do Brasil moderno. Nesse sentido o livro já começa com um soco no estômago do leitor. Logo no início, ela fala que não tem dinheiro nem sequer para um presente de aniversário da filhinha mais nova, Vera. O jeito foi arranjar um sapato no lixo “e dar uma arrumada nele para que a menina não ficasse sem a lembrança na data especial”.
Nestes anos seguintes a vida tinha melhorado. Não muito. Um pouco. Carolina e a família, após vários problemas de relacionamento com a vizinhança, já não moravam em Santana. Agora vivam numa casa mais simples em Parelheiros, Zona Sul de São Paulo, a duas horas do centro. A essa altura, em 1963, publicou, por conta própria, o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, que apesar de não trazerem muito retorno financeiro, vinham num momento da vida em que a luta desesperada pela sobrevivência dera uma trégua.  O filho mais velho, já com 21 anos, trabalhava numa fábrica, e os dois menores ainda estavam concluído seus estudos secundários. Nesses primeiros anos em Parelheiros, por algum motivo deixou de receber seus direitos autorais, e novamente, Carolina Maria, foi obrigada a voltar às ruas para catar papelão e garrafas para vender, além plantar abacates, bananas e mandiocas para serem vendidos num mercado local. Ou seja, vida melhorara, mas parece irônico que para uma escritora já com quase 50 anos e quatro livros publicados, e um destes sendo vendido em 14 países, não melhorara o suficiente para tirá-los da linha da pobreza.
O tempo passava e o estrondoso sucesso do primeiro livro foi ficando datado e opaco na memória, enquanto os subsequentes não chegavam a empolgar. O público leitor brasileiro, que esperava os diários seguintes com um mínimo de confissões e indiscrições, não parece ter visto grandes novidades nas obras posteriores. E aquele livro, que fora abraçado pelo leitor de classe média e se tornara fenômeno editorial, edulcorando um certo fetiche de objeto exótico da pobreza, foi ficando esquecido.
Com as quedas das vendas dos livros, houve um afastamento natural entre Audálio Dantas e Carolina Maria de Jesus. Coincidência ou não, em 1965 Dantas e Carolina cortaram relações e em 1966, Audálio trocou a revista O Cruzeiro pela Quatro Rodas onde foi ser editor de Turismo. Nesta época virou correspondente da revista Veja em uma guerra que acontecia em Honduras nos tempos do golpista Lopez Orellano. Em 69, mudou para a revista Realidade. Diz que nunca mais viu Carolina.
Recentemente, alguns estudos acadêmicos, afirmam que o trabalho do jornalista não se limitou à edição e ao prefácio do livro. Acredita-se que Audálio usou menos de 10% do material recebido de Carolina ( que passavam das 2000 páginas), exercendo uma forma de controle sobre sua fala. Isso dizem os acadêmicos. Os manuscritos de Casa de Alvenaria, por exemplo, teriam mais de 700 páginas. Algo que seria inviável do ponto de vista editorial.
Além disso, há passagens inteiras em Casa de Alvenaria que ela nem sequer escreveu o que aparece no livro tal como publicado, como o encontro da escritora com o ator Grande Otelo, por exemplo – que de fato aconteceu, mas que não há vestígios de registro nos originais, até o momento. Chega-se a desconfiar que Audálio mesmo não tendo interferido no contrato com a edição brasileira, chegou a interceder nos acordos de tradução entre a Francisco Alves e editores estrangeiros, mas não necessariamente em benefício próprio. Nos diários, muitas vezes, Carolina afirma que Dantas sacava no banco as transferências que vinham do exterior, e fazia os pagamentos para a escritora em dinheiro. Como aconteciam atrasos e variações cambiais, a escritora passara a ficar desconfiada. Em 11 de dezembro de 1963, ela escreve no diário: “O povo fala que o Audálio ficou rico com meu livro […] que espoliou minha ingenuidade. Mas tudo tem um dia de libertação. E agora eu estou livre! Mas quem continua recebendo o dinheiro dos direitos estrangeiros é o meu sinhô Dantas…”. As recentes leituras dos diários também dão conta que os dois tiveram um caso, numa dessas viagens ao exterior, e tudo pode não ter passado de um grande mal entendido passional – ou não.
O próprio biógrafo Tom Farias, trata a questão toda com muita honestidade e profissionalismo. Mas o fato é que para limpar essa barra de homem branco, opressor e aproveitador da biografia de Audálio Dantas, nos dias de hoje, vai ser difícil. Mesmo sabendo que ambos eram adultos e vacinados, e mesmo sabendo que pouco antes de morrer, Carolina de Jesus dissera em entrevista que Audálio era uma “boa pessoa” e não mais aquele “sinhozinho” que escrevera nos idos 1963, a pulga sempre fica atrás da orelha.
E escritora publicou quatro livros em vida. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada; Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada; Pedaços de fome e Provérbios e postumamente foram publicados mais seis livros, entre contos e fragmentos adicionais de diários. 
Carolina Maria de Jesus morreu aos 62 anos em seu quarto, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977. Vítima de uma crise de insuficiência respiratória devido à asma, doença que carregava desde seu nascimento. Sua trajetória como escritora e mulher negra, que tinha muito a dizer, nos faz pensar na grande balela que é a ideologia da meritocracia no Brasil, já que usar Carolina de Jesus como exemplo do "quem quer, vence" sempre pode ter algo de inequívoco, dependendo sempre de qual berço a pessoa veio.
 

CAMILO PESSANHA

 



Título Camilo Pessanha
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Camilo de Almeida Pessanha, conhecido como Camilo Pessanha, nasceu em Coimbra, Portugal,
no dia 7 de setembro de 1867. Filho de Antônio de Almeida Pessanha, um estudante do terceiro ano de Direito, e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira, uma empregada de sua casa. Mesmo que a relação nunca tenha sido oficializada, o casal teve 5 filhos três homens e duas mulheres.

Camilo Pessanha viveu pouco tempo de sua infância em Coimbra, para onde retornaria apenas para terminar seus estudos secundários e ingressar na faculdade em 1884. O pai, recém formado, era transferido constantemente de postos. Inicialmente como juiz itinerante para os Açores, na Ilha de São Jorge, permanecendo ali por alguns anos, e depois para Lamego, região do Douro, onde Camilo Pessanha teve sua instrução primária, e em seguida estudou no Liceu Central de Mondego. Curiosamente, o pai só o veio a perfilhar para efeitos burocráticos de ingresso na Universidade de Coimbra.

Durante o período acadêmico, teve uma carreira satisfatória, mas teve que interromper os estudos por dois anos. Nos sete anos, entre o ingresso e a formatura, que passou na Universidade de Coimbra, experimentou a poesia e a vida boêmia, o que refletia em sua saúde. Neste período começou a colaborar com alguns jornais da época, publicando seus poemas em revista e jornais, entre eles, “A Gazeta”, “A Crítica”, de Coimbra e o “Novo Tempo”, de Mangualde. Nas férias, tentava se restabelecer, na casa da família, na Quinta de Marmelos, em Mirandela. Alguns de seus poemas foram publicados nas revistas “Ave Azul” e “Centauro”.  

Em 1891, concluiu o curso de Direito. No ano seguinte passa em quarto lugar, em concurso público de 50 vagas, e é nomeado Procurador Régio de Mirandela. Dois anos depois vai para Óbidos, onde advoga, ao lado de seu grande amigo Alberto Osório de Castro, até 1894. Data deste período a mítica que o segue: Devido a uma desilusão amorosa, justamente pela suposta paixão não correspondida por Ana de Castro Osório, irmã de seu melhor amigo, decide largar tudo e ir embora para Macau. Nas cartas trocadas entre Camilo e Ana, há uma sincera cumplicidade, mas não verdadeiramente algo que se possa chamar amor. Uma declaração comovente sobre sua vida, suas dificuldades e a doença da mãe, que sofria dos nervos. Decidido por partir, concorre, então, a uma vaga de professor de filosofia no recém criado Liceu de Macau. O concurso, aprovação e partida acontece em menos de seis meses.

Nunca voltou para Portugal, ao menos definitivamente. Mas retornava frequentemente para passar férias e outras vezes por motivos de sua frágil saúde. Nessas vindas e passagens por Portugal, por vezes a pretexto de tratar da saúde, sempre que podia as prolongava. Dividia suas estadas entre uma quinta da família perto de Braga, e em Lisboa, hospedava-se no Hotel Francfort, no Rocío, onde era frequentador assíduo da boemia do café Martinho e da cervejaria Trindade.

Na primeira vez que volta a Portugal, dois anos após a partida fica na quinta da família, mas consultas médicas o levam a Lisboa. Uma oportunidade excelente para conviver com a intelectualidade lisboeta. Numa destas estadas, acabou conhecendo Fernando Pessoa -  que aprendera e memorizara suas poesias. Retornado a Macau, depois de sua segunda estada em Portugal, é nomeado como Conservador do Registro Predial, cargo que exerceria paralelamente às aulas do Liceu.

Supostamente, nessa vinda de 1896, deixara um filho em Macau recém-nascido de data incerta, cuja a mãe era supostamente uma concubina – a quem ele tinha comprado de um comerciante chinês. Nesse intervalo de 3 anos, visita novamente Portugal. E somente iria perfilhar o filho João Manuel de Almeida Pessanha  em 24 de Agosto de 1900. Consta em cartório que teve como testemunhas  dois colegas do Liceu, João Pereira Vasco e Mateus António de Lima. Ou seja, Camilo, que somente foi reconhecido como filho tardiamente, fez o mesmo com o filho, sendo que supeita-se ainda que o pai de Camilo também era um filho bastardo.

Não se sabe ao certo quando se tornou maçom, nem em que período da vida em Macau viciou-se na neurose do ópio. No trabalho, diziam que era um tanto desleixado em seu dia a dia, mas mesmo assim foi nomeado Juiz de Direito Substituto em 1904. No ano seguinte, adoece gravemente, e volta a Portugal em estado bastante grave, apenas regressando a Macau em 1909. Neste meio tempo, instala-se na quinta de um primo, nos arredores de Mirandelo, para recuperar sua saúde frágil, já a essa altura bastante tomada pelos efeitos do ópio e suas abstinências. Sabe-se ao certo que foi por conta de João de Castro Osório e da própria Ana de Castro que seus poemas tomaram materialidade, já que declamava-os de memória sem ter manuscritos. Na empreitada, ambos conseguiram transcrever 30 poemas, que em 1920, graças a seu primo João de Castro Osório, que preparou os manuscritos, e Ana de Castro Osório  - a mesma que tinha recusado seu pedido de casamento -   que cuidou da edição final dos papéis, nasce “Clepsidra”, o livro de poesia que o imortalizou.

Na terra a que um dia chamou de “o chão antipático do exílio”, aprendeu a falar cantonense, traduziu poemas da dinastia Ming e foi um colecionador de arte oriental.Tinha muitos serviçais e concubinas, e não se furtava, muitas vezes de deixar-se fotografar como um mandarim magro, vesgo e viciado em ópio. Quando a mãe de seu filho João Manuel de Almeida Pessanha morreu, deixara dois filhos. João e uma menina, a quem chamaria anos mais tarde “Àguia de Prata”  -  e que tomaria em todos os sentidos o lugar da mãe na vida do poeta.

Figura proeminente na vida pública, Pessanha era chamado constantemente para proferir conferências em cerimônias oficiais do Estado Português, onde  os altos estamentos da burocracia colonial, de certo modo, faziam vista grossa para suas concubinas, e o vício do ópio. Mas isso era longe, do outro lado do mundo. Em suas estadas em Portugal, sem o ópio, bebia radicalmente, e com isso aumentava a imagem de poeta maldito de alma inquieta, viajando de forma intensiva para a colônia do Oriente.

Quando morreu, deixou a maior parte de seus bens para companheira e enteada, Kuoc Ngan Yeng, conhecida como “Águia de Prata”, em detrimento do filho -  nesse caso, seu irmão - João Manuel Pessanha.

No Cemitério de São Miguel Arcanjo, em Macau, encontra-se uma singela campa, onde repousam os restos mortais de Camilo de Almeida Pessanha, falecido em 1 de Março de 1926. Ao lado de Augusto Gil, Raul Brandão e Antônio Nobre, outros autores que também se destacaram no Simbolismo português, Camilo Pessanha virou nome de rua e seu rosto magérrimo de olhos cruzados, foi bastante amenizado na sua figura estampada nas notas de 100 patacas macauenses, por muitos anos.


GRAMIRO DE MATOS

 


Título Gramiro de Matos 
Dimensões: 9x9cm
Data: Janeiro de 2022
Técnica: Xilogravura

É como se para um poeta fosse um grande azar ter nascido na terra de Gregório de Matos, Caetano e Dorival Caymmi. É muito complicado se falar de um poeta baiano desconhecido, maldito e esquecido, mas Ramiro Silva Matos Neto nasceu em uma pequena cidade do interior da Bahia, Iguaí, em março de 1944. Filho de Izaias Rocha de Matos, um construtor de casas e pintor naif e Anália Silva Matos, fez o curso primário em sua terra natal, transferindo-se para Vitória da Conquista – BA, onde estudou e concluiu o curso ginasial. Em Jequié-BA estudou o colegial e em Salvador – BA, pela Universidade Federal da Bahia, formou-se em Direito, em 1973.

Durante o curso de direito frequentou as aulas de teatro na Universidade Federal da Bahia, onde fez parte de movimentos artísticos que emergiam por toda a cidade de Salvador. Em 1972, Ramiro Silva Matos Neto adotou o nome de Gramiro de Matos, nome adotado após o encontro descrito pelo próprio como: “messiânico e telemental com o poeta medieval Gregório de Matos”, publica Urubu-Rei pela Editora Gernosa, um livro radicalmente experimental, com uma poética  tributária das culturas indígenas brasileiras, e das experimentações vanguardistas herdadas do concretismo e da cultura riponga da década de 60.

No início da década de 1970, Ramirão, como era chamado, juntou poucas coisas, pegou uma sacola hippie e partiu com a namorada hippie para o Rio de Janeiro. Na cidade, conviveu com grandes intelectuais como Jorge Amado, Glauber Rocha e era amigo de Waly Salomão e Torquato Neto, fazendo parte do movimento tropicalista, juntamente com esses seus dois parceiros. Entretanto, não teve a mesma sorte de Jose Agrippino, no grupo do desbunde tropicalista.  Enquanto Agrippino, antes de despirocar de vez da cabeça, apostou na estratégia áudio-visual fazendo filmes para permanecer lembrado, Gramiro de Matos, não - talvez por sua personalidade mais reflexiva, menos falante, introspectiva. De qualquer maneira Gramirão, ainda como estudante de de direito frequentou os lugares míticos da geração desbunde, como o “Solar da Fossa” ou as “Dunas da Gal”, na companhia de Waly Salomão e Torquato Neto. E de certa forma interagiu com toda a experimentação artística desse grande grupo.

Urubu-rei foi um livro bastante elogiados pela crítica na época. O autor, igualmente, cuja literatura foi considerada “impenetrável”, devido ao exagero nos experimentalismos concretistas e pop. O tropicalista que foi ficando esquecido, nos anos 1970 era um dos  protegidos de Jorge Amado e do parceiro de Waly Salomão. Chegou a ser considerado por Jorge Amado como “a mais nova experiência da linguagem depois de Guimarães Rosa”.

Jorge Amado, aliás, mesmo achando-o meio doidão, escreveu o texto de apresentação em Os morcegos estão comendo os mamãos maduros pela Editora Eldorado em 1973, um dos livros de contos de Gramiro de Matos. De certo, Gramiro era diferente. Inventava uma espécie de linguagem que mesclava português colonial com espanhol, que quase gerava um dialeto Crioulo, ou mesmo um Galego falado na Galiza. Impulsionava relações idiomáticas entre línguas indígenas e africanas, constituindo multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas.

Ou seja, livros como Panamérica (1968), de José Agripino de Paula, Me segura que eu vou dar um troço (1972), de Waly Salomão, Urubu-Rei (1972) e Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (1973), de Gramiro de Matos e Catatau, de Paulo Leminski (1975), foram inseridos nesse grupo pela crítica literária da época, apesar de suas diferenças de estilo e proposta.

A partir de 1974, o autor decide seguir a carreira acadêmica. Vai realizar uma série de viagens à África e Portugal durante seus anos de doutorado, financiado pela Fundação Caloustre Gulbenkian. Sua intenção era a de investigar o impacto da literatura brasileira nos autores das colônias lusas, até então. O afastamento da sua terra trouxe um afastamento do universo literário, também. Durante esses anos de estudo presenciou a Revolução dos Cravos e escreveu algumas impressões e vivências sobre o episódio. Nesse período também ficou mais próximo de Glauber Rocha, que nessa época residia em Sintra. Acompanhou sua agonia e sua luta para filmar Império de Napoleão.

Em 1978 publicou um romance histórico-surrealista A conspiração dos búzios. Mas,apesar da tentativa de se reconectar com o ambiente cultural brasileiro, o autor caiu no esquecimento na década seguinte. De seus estudos acadêmicos, resultou nas mais de 600 páginas de uma tese de doutorado: “Influências da literatura brasileira sobre as literaturas africanas de língua portuguesa”, defendida na Universidade de Lisboa, 1982 e publicada posteriormente no Brasil. 

Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, de 1973, tiveram ampla divulgação em estudos profundos empreendidos por Silviano Santiago(2000), bem como na imprensa da época. Santiago em Os Abutres, num ensaio de 1972, parte da peça Urubu-Rei de Gramiro de Matos discutir a geração do desbunde de 1960. Ele defende a “curtição” da cultura, em contraposição à sua leitura sociológica do bom e do mau gosto.  Ou seja, ao incluir o Urubu-Rei de Gramiro de Matos no grande quadro do Tropicalismo, colocando-o justamente como um “abutres do lixo americano”, tornou o lixo da sociedade de massa brasileira, algo que pudesse ser reinventado num outro diapasão que misturasse prosa, linguagem de computador, poesia, cérebros eletrônicos, dialetos indígenas, mitologia negra, o portunhol das peças de Anchieta, ou seja, uma literatura que não cabia apenas na literatura.Um diapasão que não se  limitasse ao Modernismo nacionalizante. 

Talvez o grande mérito da leitura de Urubu-Rei e Os Morcegos estão comendo os mamãos maduros, resida no fato de despertar questões referentes a sua linguagem desestabilizadora e política, impulsionada por relações idiomáticas entre o português, o espanhol, línguas indígenas esquecidas e as diversas variações do crioulo português afircano, constituindo-se por multiplicidades lingüísticas em uma zona de vizinhança entre línguas. O autor tenta trazer para as ranhuras do Tropicalismo a antropofagia de Oswald de Andrade: junta e separa palavras, cola recortes de jornais, inunda a sintaxe de estrangeirismos e barbarismo, desrespeita a língua como quem ironiza a autoridade gramatical, ousa reescreve o conto Cabeça Caxinauá numa versão pop, e chega a citar poemas inteiros de Gregório de Matos. Ou seja, independente do que os críticos digam, um tipo de leitura para fortes: ou você ama, ou simplesmente faz pose e analisa academicamente.

Alguns intérpretes, consideram a literatura de Gramiro de Matos uma forma de luta política contra a violência da língua padrão e, ao mesmo tempo, um conceito de " combate em línguas ", tanto para propósitos acadêmicos como estéticos. O que é uma suposição até cabível, numa literatura de contracultura que já tinha sido considerada inclassificável pelos críticos da época de seus primeiros livros.

A Conspiração dos Búzios é um livro de 1976. A primeira edição era absolutamente artesanal financiada pelo próprio autor e ilustrada pelo fotógrafo Mario Cravo Neto. O enredo era uma mistura incomum de roteiro de cinema com narrativa histórica, em que o autor  reencena a Conjuração Baiana do século XVIII. Ainda no diapasão da porralouquice, era numa espécie de paródia épica que flutuava entre lirismo, surrealismo e o tom de documentário que retrata as reminiscências de revoltosos condenados à forca, nos dias que antecedem à condenação, dando uma espécie de sobrevida a cada um dos conspiradores que saem do Pelourinho para serem enforcados na praça da Piedade. Na passeata fúnebre, o autor mostra detalhes da cidade, do casario e da vida dos personagens.

Ainda em Portugal, publicou em Lisboa uma Antologia da novíssima poesia brasileira (Livros Horizonte, 1982), que reunia as experimentações poéticas das vanguardas concretistas e tropicalistas, e das poéticas resultantes, dos anos 60, 70 e 80, trazendo  textos de Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, Carlos Nejar, Chacal, José Carlos Capinam, Roberto Schwarz, Afonso Romano de Santana, dentre outros.

Quando volta ao Brasil, nos 1980, continuou sendo considerado um autor impenetrável pelas novas gerações.

E agora, em meados dos anos de 1980, com um canudo de estudos africanos embaixo do braço, e uma tese de 600 páginas ilegíveis, decepcionado com a falta de interesse das universidades pelos estudos africanos, afastou-se aos poucos da escrita e da academia. Tocou a vida como comerciante, marchand, depois colecionador de quinquilharias.

Mesmo tendo publicado em 2016, pela Civilização e Barbárie A conspiração dos búzios, romance-experimental inédito escrito em 1976, ainda durante os estudos de doutorado, Gramiro de Matos é considerado “o tropicalista esquecido”. Hoje, raramente é citado entre as principais figuras literárias da sua geração, e sequer tem verbete no Wikipedia.


O tropicalista, marginal e reinventor de linguagens, Ramiro Silva Matos Neto vive hoje em Salvador, completamente afastado dos círculos literários toca sua vida longe da literatura. Divide seu tempo colecionando moedas antigas, administrando sua pousada, e fazendo comentários nas redes sociais - geralmente contra governos de esquerda – defendendo a Democracia.

 

 


HERBERTO HELDER


Título Herberto Helder 
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira. Este é, ao certo, o nome próprio que consta em sua certidão de nascimento. Nasceu no Funchal, em 23 de novembro de 1930, e era o filho caçula da família, composta por mais duas irmãs mais velhas. A mãe morre quando o menino tinha 7 anos. O fato abalou as estruturas da família, e com certeza, a sua relação com o mundo – quem duvidar disso, pode ler A Colher na Boca, que o poeta iria publicar com 31 anos. A partir dos 18 anos, a vida de Herberto Helder se torna literalmente a vida de um judeu errante e misterioso.

Conclui o curso no liceu de Lisboa, para onde foi aos 16 anos. Em 1948 entrou na Faculdade de Direito em Coimbra, mas logo no ano seguinte mudou de curso, transferindo-se para a Faculdade de Letras. Nesta, passou três anos, e sabe-se que frequentou as aulas de filologia românica, mas igualmente não concluiu o curso.

De regresso a Lisboa, teve o seu primeiro emprego, na Caixa Geral de Depósitos, um emprego que abandonaria logo, como inúmeros no decorrer da vida. A partir desse momento, passa a ter diversos trabalhos. Foi agenciador de publicidade, meteorologista na Ilha da Madeira - para onde tinha regressado em 1954 -, representante de laboratório farmacêutico, redator de publicidade, editor.

Como o pai tinha negado um empréstimo para ir ao Brasil - a exemplo das irmãs que já lá estavam -, Herberto Helder resolveu tentar a sorte percorrendo a Europa. Entre 1958 e 1960, perambulou por França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, trabalhando, aí sim, nas mais inusitadas funções. Já tinha uma relação com Maria Ludovina Dourado Pimentel, e precisava de dinheiro para o nascimento da primeira filha que estava a caminho. Neste período, trabalhou como descascador de batatas na Bélgica, agenciador de marinheiros em bairros de prostitutas na Antuérpia, estivador, empacotador de aparas de papelão, tudo o que se pode imaginar, não necessariamente nesta mesma ordem. E reza a lenda que chegou a passar fome, já que quando retornou, repatriado, teve de fazer um tratamento para avitaminose.  

Antes de partir, às pressas, deixara os manuscritos de O Amor em Visita com Luiz Pacheco, que à época era apenas um brilhante iconoclasta poeta surrealista. Herberto ainda deixou alguns poemas publicados nas revistas Cadernos do Meio-Dia, KWY e Folhas de Poesia, antes de partir para sua primeira parada, França. Ficavam para trás a mulher grávida e as tertúlias do Café Gelo, onde se encontrava frequentemente como António José Forte, Hélder Macedo, João Vieira, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco.

Forçado a regressar a Portugal, arrumou talvez aquele que fosse o primeiro trabalho estável em décadas. Como bibliotecário da Fundação Gulbenkian, percorreu vilas e aldeias da Beira Alta, Ribatejo e Baixo Alentejo, num projeto de biblioteca itinerante. E nesses anos publica justamente o que os especialistas consideram a obra em homenagem a sua mãe, A Colher na Boca, além de Poemacto e Lugar.

Entrou para a Emissora Nacional em 1963, como redator do noticiário internacional, mas permaneceu ali apenas cerca de um ano. Tempo bastante para publicar Os Passos em Volta em 1963, um livro extremamente autobiográfico e premonitório de sua constante transitorialidade:

“Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.”

Em 1964, publicou com António Aragão, o n.º1 de Poesia Experimental, uma série que teve em suas páginas poetas como Mário Cesariny, a concretista Salette Tavares, e o poeta barroco alemão  Quirinus Kuhlman. Eclético, foi alimentando a aura de enigmático, enquanto lutava para pagar as contas do mês. Trabalhou como tradutor de bulas e literatura explicativa de medicamentos para laboratórios, além das obras literárias de Hans Christian Andersen e Italo Calvino. Também se submeteu como voluntário para testes de grupos psicanalíticos no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria.

Publicou, em 1968, Apresentação do Rosto pela Editora Ulisseia, que foi rapidamente apreendida pela polícia, sendo destruídos os quase 1.500 exemplares impressos, de uma vez. No ofício de proibição, de 22 de julho de 1968, os “críticos literários” da PIDE descrevem a obra como uma “autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética, que como obra literária não mereceria qualquer reparo, se não apresentasse passagens de grande obscenidade”.

Herberto, já estava na alça de mira da PIDE desde a publicação de A Filosofia na Alcova, edição portuguesa do Marquês de Sade de 1966, prefaciada por David Mourão Ferreira e por Luís Pacheco. A tradução era justamente de Herberto Hélder, usando o seu único pseudônimo conhecido Helder Henrique. Antes de Apresentação do Rosto, aquilo já havia lhe custado um processo judicial, afinal a obra de Sade ainda por cima vinha ilustrada. O fato é que a cassação deu a Herberto uma certa aura de maldito. Nessa época, abandona a grupoterapia, passa a trabalhar num atelier de arquitectura e pouco depois como diretor literário da Editorial Estampa. Ainda participa, como ator, no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, o que pode ter sido sua última aparição em público.

Em Julho de 1969, nasce seu segundo filho, Daniel João Figueiredo de Oliveira, de uma relação com Isabel Figueiredo. Herberto Helder sempre foi obsessivamente discreto em relação à sua vida privada. Entretanto, mesmo neuroticamente silencioso, coincidentemente, ou não, consta que Herberto Helder apesar dos dois filhos, nunca teve uma união estável com uma companheira. Afinal, coincidentemente ou não, sempre que nasce um filho, Herberto Helder decide viajar. E para longe.

Dessa vez, volta a perambular pela Europa. E pouco mais de um ano depois parte para ser correspondente em Angola. O amigo João Fernandes, frequentador do Café Gelo, em Lisboa, arranjou-lhe a vaga de jornalista na ainda colônia portuguesa.

Em 1971, fez reportagens para a revista Notícias sob vários pseudônimos, e publicou Vocação Animal, publicação onde se afirmava que o autor deixara de escrever em 1968. A aventura em Angola deixou marcas profundas. Trabalhou em Luanda, De 1971 a 1974, onde foi redator da Notícia, uma revista editada pela empresa Neográfica, cujo capital era dividido por Manuel Vinhas do grupo Vinhas, da CUCA, a primeira cervejeira de Angola, e pelo banqueiro português Cupertino de Miranda, dono do Banco Comercial de Angola, BCA. Em Luanda encontra nova companheira que o iria acompanhar pelo resto de sua vida, a assistente social Olga Ferreira Lima, que conheceu num célebre bar, a Mastaba, uma espécie de sucursal do Gelo lisboeta, onde se reuniam artistas e intelectuais, os chamados reviralhos.

Mas a aventura em Angola dura pouco. No ano seguinte, após um grave acidente de carro, partiu para os Estados Unidos, em 1973, ano em que publicou "Poesia Toda", reunindo a sua produção poética até então, e fez uma tentativa falhada de publicar "Prosa Toda" – que se reduziam tecnicamente, a dois livros Os Passos em Volta (1963) e Apresentação do Rosto (1968).

Em seus artigos e escritos deste período, manifesta a admiração por Jack Kerouac e Ginsberg, Bob Dylan, Leonard Cohen, Jim Morrison. Cita Patti Smith em Photomaton & Vox de 1979 e aconselha a todos a leitura de Henry Miller, antes que seja tarde demais.

A Portugal, mesmo, só retornou depois do 25 de Abril, para trabalhar em rádio e em revistas, como meio de sobrevivência, tendo sido editor da revista literária Nova, da qual se publicaram apenas dois números.
Depois de publicar, nos anos seguintes, mais algumas obras, entre as quais Cobra em 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra em 1978.

Alguém já disse, com razão, que apesar da linguagem rítmica, sua poesia deveria ser lida com o incômodo físico de uma pedra no sapato. O poeta era um atormentado, mas sendo bem lido tem algo de sentido de humor dentro e fora de sua poesia. Dizem que na ocasião da publicação de O Corpo, o Luxo, a Obra, havia decidido com Victor Silva Tavares de fazerem uma edição quase artesanal, de apenas 250 cópias. Mas, um amigo encontra uma versão pirata da obra numa das livrarias de Lisboa, assinada pelo sempre irônico, e safado, Luiz Pacheco, ex-editor da Contraponto, que decidira por conta própria publicar o mesmo livro, engabelando o velho amigo. Aquilo deixou Herberto furioso, e com razão.

Quando se encontraram num café, o tempo fecha, e o aldrabão, depois de provavelmente ter a mãe xingada várias vezes e seu esfíncter vilipendiado com as mais deselegantes metáforas, joga um copo de cerveja na cara de Herberto. Este, revida quebrando uma garrafa em sua cabeça. Todos pensavam que aquilo não ia terminar bem. Como em muitas das histórias obscuras de Herberto, realmente não se sabe como terminou. Não se sabe se o tacanho Luiz Pachedo pagou aquela rodada de cerveja, ou não, saldando a dívida de copyright, mas o fato é que pouco tempo depois já estavam os dois de boas, dizem uns e outros que até rindo da situação.


Por isso, pediu aos amigos que não falassem dele num documentário que António José de Almeida pretendia realizar para a RTP2, em 2007. Muitas perguntas ficam no ar sobre sua neurótica aversão a entrevistas, e sobre seu desejo de separar o público e o privado de maneira obsessiva, escondendo-se como pessoa. Alguns dizem que a desconfiança da imprensa devia-se ao fato de reconhecer-se homem de ambiguidades e contraditório - o que realmente não explica nada.
Alguns trabalham com a hipótese da tentativa de se preservar – o que explica menos ainda. Outros, como o velho Luiz Pacheco, associam a misantropia com uma estratégia de marketing editorial 

O fato é que recusa o Prêmio Pessoa em 1994, “por razões pessoais”  -  recusa que o tornou mais famoso. Em 1988 já tinha recusado os 10 mil Euros do Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1988. Aos 64 anos o poeta que disse certa vez que “nada é mais apaziguador que ter falhado em todo os lados da biografia,” na certa pensou que 30 paus não vão fazer diferença nenhuma para um camarada que como eu, fui estivador, bibliotecário e até agenciador de putas… Do pouco que conhecemos Herberto, na certa o pensou, mas para manter a aura de enigmático, não o disse.

Em 2007 Pen Clube de Portugal indicou o nome de Herberto Helder para  Prémio Nobel da Literatura, o que igualmente seria uma tremenda perda de tempo. A essa altura, nem o desdentado Luiz Pacheco duvidaria que Herberto Helder daria uma de Jean-Paul Sartre.

JOSE AGRIPPINO DE PAULA

 




Título José Agrippino de Paula 
Dimensões: 9x9cm
Data: Dezembro de 2021
Técnica: Xilogravura


Figura de difícil definição, José Agrippino de Paula e Silva é um desses personagens que passam pelo cenário cultural de um país, sem que se saiba bem se esteve mais perto da margem da genialidade ou da porralouquice completa. Nasceu em 13 de junho de 1937. Como filho típico da classe média paulistana, tinha tudo para dar certo nesses moldes. Filho do advogado Oscavo de Paula e Silva e da professora Claudemira Vasconcelos, viveu seus primeiros anos em Itu, no interior do estado. Retornando para São Paulo apenas em 1942.

José Agrippino fez seus primeiros estudos no Ginásio do estado, no bairro da Lapa, onde a família morava. Formou-se, então, no científico em 1955, e no ano seguinte ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). O pai morre quando Agripino tinha 20 anos. O fato abalou a família profundamente e Agrippino pede uma inexplicável transferência para a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro.
 
No Rio de Janeiro, envolve-se mais profundamente com o pessoal do teatro, mesmo que ainda que em São Paulo já começara uma amizade com o cenógrafo Flávio Império. Na nova faculdade assiste as aulas do recém chegado ao Brasil, diretor italiano Gianni Ratto.  Ratto dividia seu tempo com as aulas de teatro - nas quais Agrippino se engajou - e as montagens teatrais. Quando em 1959, Agrippino adapta romance Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoievski, seu mentor Ratto já trazia na bagagem montagens como Mambembe de Arthur Azevedo, A Pulga Atrás da Orelha de Georges Feydeau e Ilha dos Papagaios de Sérgio Tófano  -  ambos com Fernanda Montenegro no elenco; além de Moratória de Jorge de Andrade.
 
Na montagem de Crime e Castigo, Agrippino interpreta o protagonista Raskólnikov, mas também assina a Direção, Montagem e Cenário, no espetáculo que teve palco no teatro da faculdade, no bairro da Urca. No ano seguinte já formado arquiteto, passa a fazer alguns trabalhos para a televisão, além de iniciar os rascunhos de Lugar Público – livro que seria lançado seis anos depois com a orelha assinada por Carlos Heitor Cony. 
 
Mas a vida adulta de recém formado não foi generosa nos 5 anos seguintes que passou Rio de Janeiro. Retorna para São Paulo em 1965, com uma mão na frente outra atrás, no mesmo ano em que é lançado Lugar Público. Nesse tempo, conhece a coreógrafa Maria Esther Stockler. Mesmo com os apertos da falta de dinheiro, produz incessantemente nesses cinco anos seguintes. Mesmo que a qualidade dessa produção seja duvidosa, entre altos e baixos, Agrippino publica As Nações Unidas em 1966, e no ano seguinte publica um de seus clássicos o romance PanAmérica. Também é dessa época a fundação do Grupo Sonda, um misto de grupo de teatro, dança, meditação e porralouquice que junto a Maria Esther seria o responsável por criar uma órbita de criação constante, doideiras psicodélicas e inovação estética. Ainda nesse período montaram Tarzan Tereceiro Mundo, o Mustang Hibernado. Logo depois o casal se muda para o Rio de Janeiro e começam uma parceria com o grupo de rock Os Mutantes, para a montagem do espetáculo O Planeta dos Mutantes.
 
Os roteiros e enredos, dos livros e dos filmes eram tão loucos que era possível ver o herói dividir a cena com John Wayne e travar duelo de western, fugir do Dops, encontra-se com Che Guevara, dar uma trepada com Marilyn Monroe e até salvar o planeta, que bem podia estar sendo ameaçado por anões verdes que saem do útero da atriz americana. Se você acha que isso é impossível, até no Cinema, você está redondamente enganado/a. Este é o enredo de PanAmérica!
 
Em 1968, Agrippino dirige o filme Hitler Terceiro Mundo, uma obra completamente experimental, quase tão sem nexo, quanto as anteriores. O jovem diretor Jorge Bodanzky, que conhecia Agrippino desde essa época, conta que Agrippino tinhas as idéias, mas não tinha a menor noção técnica para realizar um filme. Mesmo assim, como tinha simpatizado com Agrippino e como já frequentava as discussões filosóficas do Sonda, resolveu ajudá-lo na realização técnica. Bodanzky tinha acabado de voltar da Alemanha onde tinha ido estudar Cinema no Instituto de Cinema Ulm. No retorno, já havia trabalhando com o diretor Antunes Filho no filme Compasso de Espera – que aliás, fora censurado no ano de 1969, sendo liberado apenas 3 anos depois - e na filmagem da peça Balcão, baseada na obra de Jean Genet, com produção de Ruth Escobar.
 
Bodanzky, apesar de figurar nos créditos do filme como Diretor de Fotografia, junto a Maria Esther, foram os grandes responsáveis pela conclusão do filme, que contava com o esforço do pessoal do Grupo Sonda, além de Ruth Escobar, Eugênio Kusnet e Jô Soares, que já fazia sucesso na televisão com Família Trapo. Jorge coletava restos de filmes que não tinham sido utilizados em outras montagens, juntava tudo em sacos pretos e usava-os em sequências curtas na montagem do filme de Agrippino – prática aliás, muito comum no grupo do Cinema Marginal.
 
O resultado, foi um filme esteticamente estranho e aparentemente genial. Com cenas inusitadas, filmadas num necrotério, com mortos reais, ou com um obeso Jô Soares vomitando – um vômito real - num restaurante japonês, depois de tanto comer, o filme torna-se um ícone cult da geração. O filme ainda conta com uma cena onde Hitler dialoga, com um áudio editado ao contrário, como no som de um disco girado no anti-horário, em que críticos a consideram genial – mas que de fato, pode ter sido uma afronta do estúdio de montagem de áudio, por não receber os honorários. Enfim, coisas de Agrippino.
 
Entre 1969 e 1970, o casal ainda produz o espetáculo Rito de Amor Selvagem, mas a coisa muda de figura a partir dos anos de 1970. A essa altura, o casal vivia no bairro de classe media alta de Perdizes, em São Paulo, numa casa imensa. Uma espécie de BBB sem voyeurs, onde rolavam festas psicodélicas. Por conta da Ditadura, ou não, recebia constantes batidas policiais. Na casa vivam Agrippino, Maria Esther e a amiga Maria do Rosário, pivô das brigas constantes do casal. Os amigos dizem que depois dessas invasões policiais Agripino nunca mais foi o mesmo, e que seus primeiros sintomas de esquizofrenia aconteceram após esse episódio dramático. Carlos Heitor Cony, contesta. O escritor afirma que Agrippino já não era um camarada muito bem da bola na época do lançamento de Lugar Público. Fato é que numa dessas festas regadas a doideiras e ácidos, Agrippino ouve uma voz de prisão. Mas nao era dentro de uma viagem. E era real.  No dia seguinte vira capa do jornal Última Hora, numa foto algemado e com olhar de pavor.
 
Maria Esther, dizem, era uma mulher forte e decidida, e assim como Agrippino, teve forte influência sobre os tropicalistas. Caetano Veloso, inclusive, diz em seu livro Verdade Tropical que ela revolucionou seu gestual cênico no palco, chegando a participar de O Cinema Falado. O problema é que a barra pesava por conta da Ditadura, e da presença cada vez mais constante de Maria do Rosário, e eles tiveram que se autoexilar. De repente Maria Esther aparece com um traveler’s check. Agrippino, Esther e o irmão de Esther, o ator José Ramalho, vão embora.
 
Passam a década de 1970 viajando pelo mundo e produzindo pequenos documentários, com uma câmera super-8. Nessa época, o escritor dedica-se ao romance Terracéu, sobre o qual há pouquíssimas informações. Acredita-se inclusive que foi perdido com uma das malas do escritor, numa passagem por Londres. Enfim, coisa de Agrippino. Passaram por Mali, Senegal, Marrocos, filmando coreografias de danças rituais, e tudo que aparecia pela frente.
 
Mas de onde vinha tanto dinheiro, quando, no Brasil, eles não tinham sequer dinheiro para produzir seus filmes experimentais? Simples: Maria Esther, nos anos 1970, além de talentosa coreógrafa, ainda era a herdeira de um poderoso grupo financeiro, o Banco Haspa, instituição que iria falir em 1983, mas que nesta época tinha o todo poderoso Delfim Neto como um dos sócios das contas de poupança. Não se sabe se por medo, ou por uma estratégia da família de mandar aquela turma estranha para longe, antes que aquilo pudesse respingar nos negócios, Maria Esther, o irmão e o companheiro, partem para o Continente Africano, com uma câmera na mão, muitas idéias na cabeça e um generoso cheque de 5 mil dólares.  
 
Retornaram ao Brasil indo morar numa praia hippie na Bahia, fora dos holofotes. Ali, ainda produzem o curta Céu Sobre Água, que foi o último filme do autor, onde Maria Esther aparece em cenas realmente poéticas, boiando grávida na água. Nessa década Agrippino teve duas filhas, uma com Maria Esther (Manhã, sim colocou o nome na filha de Manhã) e outra do relacionamento com justamente Maria do Rosário (Chara, sim Chara, uma analogia ao nome do cigarro de maconha, chamado “charo”). Pelo abuso de drogas ou não, seus sintomas esquizofrênicos foram se agravando, e o casamento acabou pouco tempo depois do nascimento da filha do casal. Cada um foi para seu lado e a menina, ainda pequena foi ser criada pelo irmão de Agrippino.
Em 1979, volta a morar com Claudemira, numa convivência muitíssimo difícil, inclusive com episódios de surtos onde quebrava os objetos da casa e agredia fisicamente a mãe que vem a falecer 1988, depois do relançamento de PanAmérica e de uma mostra de filmes realizados por Agrippino. Ambas, as quais, o escritor não compareceu. Neste mesmo ano foi lançado um documentário extremamente poético chamado Sinfonia PanAmérica. Agrippino já alheio a tudo, morando em Embu, se isolava cada vez mais.
 
Por essas e por outras, importantes escritores como Nelson Oliveira e até mesmo Sérgio Sant’anna reverenciaram e prestaram constantes homenagens à obra Lugar Público e a sua reinvenção da narrativa fragmentada do nouveau roman, pautado no objetivismo e no antipsicologismo dos personagens -  sem aquela narrativa chata que caracteriza o gênero. Sérgio Sant´anna em artigo no Caderno Mais!  do jornal Folha de São Paulo (em fevereiro de 1997) diz literalmente que a literatura de Agrippino é “exasperadamente reiterativa e antipsicológica” e se pergunta: “Subliteratura? Não: superliteratura (a fronteira é tênue, bicho)”
 
Por essas e por outras, em Muito dentro da Estrela Azulada, disco de 1978, Caetano diz indiretamente, claro, que graças a Agrippino, os novos baianos passeiam na garoa paulista e que as Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo de Zumbi, mexem fundo naquilo que acontece no seu coração quando cruza a Ipiranga e a avenida São João. Mais claro que isso, impossível. Ou não.
 
O chamado “guru do Tropicalismo” já estava completamente pancado da cabeça, desde a década de 1980. Diagnosticado com esquizofrenia, se isolou em na cidade de Embu das Artes, distante 22 quilômentros do Centro de São Paulo. A casa não tinha nem rádio nem televisão   - que o escritor quebrou provavelmente numa neura, na época em que a mãe estava viva. O escritor passava boa parte do dia enrolado em trapos e mantas velhas, na varanda de sua casa, olhando para a rua e escrevendo. Recebia pouquíssimas visitas, um ou outro documentarista ou estudante de graduação querendo resgatar algo do buraco negro que se tornou sua cabeça. Escreveu até morrer de infarto, aos 69 anos, em julho de 2007, deixando 173 cadernos numerados, e um romance inédito, chamado Os Favorecidos de Madame Estereofônica. Enfim, coisas do Agrippino.  


ITAMAR ASSUMPÇÃO

 



Título Itamar Assunção
Dimensões: 9x9cm
Data: Outubro de 2021
Técnica: Xilogravura


No início da década de 1980, à margem de toda e qualquer imposição mercadológica que poderia ser ditada pelas gravadoras, uma nova cena cultural surgia em São Paulo. Ao redor do Lira Paulistana, um teatro localizado no bairro de Pinheiros, um certo Francisco José Itamar de Assumpção, pulou para lado de fora dessa margem para engrossar o caldo, e lançou o seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, pelo selo independente do próprio teatro da Lira.

Bisneto de escravos de origem angolana, o baixista, poeta e performance Francisco José Itamar Assunção, nasceu em 13 de setembro de 1949, no Tietê. Era neto de um alfaiate e seu pai, Januário, era fiscal do Instituto Brasileiro do Café, órgão criado no segundo governo de Getúlio Vargas, onde os fiscais tinham cargos vitalícios. Junto com a mãe, Cida, tinham um terreiro de umbanda em Arapongas onde Januário era Pai de Santo e a mãe recebia igualmente entidades.  Aos 12 anos de idade, quando sua avó materna, que era católica, morre, Itamar se muda para Arapongas no Paraná. Diga-se de passagem, ele e os dois irmãos, Narciso e Denise - que mais tarde se tornariam atores - cresceram ouvindo batuques, seja no terreiro da família ou os festejos de tambú, com as danças de umbigada, de comunidades remanescente de escravos bantu.

Em Arapongas iniciou estudos de contabilidade, abandonando o curso para atuar no teatro e fazer shows em Londrina. Começou a andar com a turma do GRUTA – Grupo de Teatro Universitário de Arapongas. Em 1971, Itamar participa do IV Festival Universitário de Música Popular de Londrina com a canção Caboclo da Mata, interpretada pelos seus irmãos. Ganham o prêmio de “Melhor Apresentação Total” deste ano, e o do ano seguinte. Essas primeiras composições ainda estavam muito marcadas pela tendência à música de protesto, gênero que abandonou logo. Mas na cidade, conhece em 1973 outro músico, que também viria a se tornar marginalmente famoso, e com quem iria colaborar por longos anos, Arrigo Barnabé. Moravam na mesma “república” e isso, para quem já participou de alguma confraria, tem muita importância na vida de um cara.

No final dos anos 70, formou com o guitarrista Tony Penhasco, a primeira banda, a Mão de Pilão, e compôs Nego Dito. A canção ficou em terceiro lugar no Segundo Festival da Feira da Vila Madalena em 1980. Para Arrigo Barnabé, esse momento foi o ponto de inflexão de Itamar, largou a música de protesto e deu aquela afinada que faltava no estilo.

O cara que “aprendeu da importância de não dar muita importância” e “ficar com os seus pés no chão”, entrou e saiu do panorama poético e musical brasileiro, mantendo sua eterna integridade e coerência. No final da década de 1970 as gravadoras internacionais captavam artistas de grande projeção, pois enxergavam no país um grande e lucrativo mercado de disco. Esse não foi, definitivamente o caso de Itamar Assunção. E se foi, ele fez o possível para criar nuvens de fumaça suficientemente espessas para sair de fininho.

O Lira, como era chamado, era um teatro de 150 lugares, onde diversas manifestações culturais dessa nova vanguarda paulista tiveram lugar. Muitos grupos musicais alternativos passaram por seu palco como o Língua de Trapo, Rumo, Premeditando do Breque, e até mesmo o rock de grupos como o Gang 90, Titãs, Violeta de Outono e Ultraje a rigor, passaram por seus holofotes alternativos.

Quando Beleléu, Leléu, Eu é lançado, pelo selo independente do teatro Lira, Itamar Assunção já tinha uma turma ao redor suficiente visionária. Ao lado de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, entre outros jovens artistas, Itamar desbravou a senda de fazer música com dinheiro do próprio bolso. Não à toa, Ás próprias custas S.A. é o termo que dá título ao seu segundo LP, de 1981. Mas voltando ao primeiro, Beleléu, Leléu, Eu, o cantor lançara o disco em 1980, acompanhado da banda Isca de Polícia. Esse é um dos seus discos mais famosos e faz parte, inclusive, encontra-se na 86ª posição da lista dos 100 Melhores Discos de Música Brasileira de todos os tempos organizado pela revista Rolling Stones. Isto é, se você tem uma coleção de discos de música brasileira, você precisa ter este disco.

As performances de Itamar Assunção eram um capítulo à parte. Um homem que na vida privada, cuidava das filhas, amava a mulher, e tinha um carinho especial por plantas e orquídeas, no palco se transformava quando interpretava por exemplo Nego Dito. No palco, criava uma relação meios que simbiótica entre o marginal e o homem, encarava o público, as vezes o destratava.  A cada olhar, a cada movimento de seu corpo, parecia que Francisco José, um homem massacrado pela condição de pobre e periférico, ia tirar uma navalha do bolso, para se defender da vida como pudesse, para cobrar dela aquele boleto vencido. Às vezes, descia do palco e encarava uma pessoa a esmo na platéia, caminhava em meio ao público e começava a dialogar rispidamente com ela. Se pudéssemos fazer algum paralelo com um artista estrangeiro, talvez, apenas um Tom Waits, ou Nick Cave, guardadas as proporções, chegariam perto do nível de desempenho de um papel no meio de uma manifestação artística.

Em sua vida há várias situações mal explicadas de atitudes hostis sofridas por ele. Como num episódio em que Itamar corria pela rua para entregar o cartão da esposa, branca, e que um policial encarou como assédio. Ou, mais grave ainda, no episódio em que foi preso por suposto roubo. O parceiro da letra Prezadíssimos Ouvintes, Domingos Pellegrini, conta no Vol.2 do Song Book de Itamar Assunção um episódio passado em 1972, quando o artista tinha 23 anos. Pellegrini tinha lhe emprestado um gravador, que Itamar levou-o consigo para casa. No caminho, a polícia o prendeu e o encarcerou por 5 dias, numa cela incomunicável, simplesmente por acreditar que ele tinha roubado o gravador. Ainda que o poeta tivesse encarado o episódio com bom humor, chegando a criar o nome da nova banda, Isca de Polícia, a partir do episódio, para bom entendedor pode haver sim algo de estrutural no nexo que liga esses eventos às “sutilezas” das várias camadas do racismo que imperam no Brasil.

Em outros momentos, esse racismo não era expresso de forma tão grosseira e brutal, mas de maneira eufemizada sob a máscara da denegação. No documentário Daquele instante em diante (2011), dirigido por Rogério Velloso, Arrigo Barnabé – companheiro de caminhada de Itamar – conta que, ao apresentar seu trabalho nas gravadoras, Itamar quase sempre tinha sua obra ignorada e algumas vezes foi encorajado a gravar discos “de preto”: pontos de umbanda ou samba.

Arisco ao mercado fonográfico e a movimentos políticos organizados, não foi um poeta negro que fez de sua etnicidade um bastião de luta constante. Mas os ecos da condição social impostas e da opressão policial sempre estiveram em sua lírica.  Como na música Cabelo duro em que fala categoricamente “eu tenho o cabelo duro mas não o miolo mole, sou afrobrasileiro puro, é mulata a minha prole”, Ou mesmo na Negro dito, “tenho o sangue quente, não uso pente, meu cabelo é ruim”.  E o que dizer de “a textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura” ? Quando alfinetava, igualmente, a ética Bandeirante em Cultura Lira Paulistana.

E não que ele não tenha feito discos de samba, como fez de fato na obra dedicada a Ataulfo Alves em 1996. Ou seja, cantou samba – à sua maneira – mas não por exigência de vontades de gravadoras. Na única vez em que teve um disco seu lançado por uma grande gravadora, foi em 1988, Itamar não deixou de ser irônico com sua própria condição de marginal. O homem deu nome ao disco lançado pela Intercontinental: Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!! 

E foi além. Usando gancho as práticas de marketing da indústria fonográfica, criou as vinhetas como Pesquisa de mercado I, II e III; canções como Sutil e Mal menor ganharam uma roupagem radiofônica, comercial. Tudo com fins mercadológicos, trazendo refrões fáceis, melódicos e harmonias buscando os hits e batidas mais populares.

Em meados da década de 1990, já se via um Itamar cansado da pecha de maldito, entretanto foram os anos mais prolífico para o poeta em termos de shows e rearranjos de clássicos da música brasileira.  Em 1993, compôs “Só vejo azul” com Rita Lee, que, em troca, participou da faixa “Venha até São Paulo” de Itamar Assumpção, no disco Bicho de 7 cabeças I.  E outras ações artísticas inusitadas foram Bicho de 7 cabeças de 1993, que foi assinado por Itamar e pela banda Orquídeas do Brasil, composta apenas por musicistas mulheres, e o já citado disco dedicado à obra de Ataulfo Alves em 1996. Um dos pouquíssimos projetos que o quase obsessivo artista deixou pela metade foi Pretobrás – Por que que eu não pensei nisso antes? (1998 – 2010), cujos volumes 2 e 3 sairiam somente após a sua morte precoce, em 2003.

A música Código de Acesso, mostra bem sua relação com as gravadoras e com a Indústria Cultural.

Para muitos, Itamar não passava disso: um doidão. Um doidão desses geniais, que tanto podia acordar cedo para cuidar das orquídeas, das plantas e fazer o café da manhã dos filhos, cuidar das orquídeas e fazer o café da manhã para as crianças, depois de um show, sem dormir por três noites à fio.

Uma nova geração de músicos independentes, têm nele uma referência fundamental. Por exemplo, a cantora trans Liniker fez uma versão para Fim de festa, e a banda Teto Preto cantou recentemente, Já deu pra sentir, bem como Metá Metá remusicou Tristeza não. Outros que revisitaram o poeta foram o grupo Tono Nega música e o cantor Criolo com O tempo todo. Além do resgate musical, Itamar Assunção é tema de inúmeras teses na área de história e estudos literários.

Dono de uma incansável cabeça criativa, quando morreu Itamar deixou diversos escritos e rascunhos de letras e canções, que foram reunidos e lançados pelo Itaú Cultural no volume Cadernos Inéditos.

No ano de 2000 os médicos descobriram um câncer no seu intestino. Mesmo doente, em meio a cirurgias e pesados tratamentos, Itamar manteve a rotina de shows nos intervalos das internações. Nesse período também gravou um disco em parceria com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que acabou cancelado, e num segundo volume de Preto Brás iniciado em 1998, que ele pretendia que fosse uma trilogia de discos. Lutou por três anos contra as complicações decorrentes do câncer, mas a doença reincidira para a região pélvica.

O cantor, poeta e compositor paulista Itamar Assumpção morreu na noite de 12 de junho de 2003, aos 53, em sua casa.