JAMIL SNEGE





Título: Jamil Snege

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Dezembro 2021


Mais um da extensa lista que o Brasil fez questão de esquecer, é Jamil Snege. O escritor do Sul do Brasil, vem de uma família de descendentes árabes, por parte de pai, e italianos, por parte de mãe. Cresceu no elegante bairro da Água Verde na Curitiba dos anos 1940, e como todo o menino da sua idade, queria ser jogador de futebol. Felizmente, por inabilidade ou pura incompetência, e para felicidade de seus leitores, por volta dos 17 anos, sua paixão não foi correspondida e abandonou o sonho de ser jogador, ingressando logo em seguida no serviço militar.  

Prestou serviço militar nos anos 50, no Centro de Operações de Oficiais da Reserva (CPOR), e para felicidade de seus leitores, foi logo expulso por “falta de idoneidade moral”, como dizia o seu boletim de expulsão da época.

Após uma série de pequenos deslizes disciplinares, ele acabou provocando um incêndio num exercício de tiro. Participava de um exercício com peças de morteiro e começou imprudentemente  “levianamente”, em suas próprias palavras – a encostar a brasa do seu cigarro nas cápsulas auxiliares da munição dos morteiros dos companheiros de tropa, em Campo Largo da Roseira, colocando em risco a vida de toda a tropa. O incêndio se alastrou, pois havia um vento muito forte no momento, e todos tiveram uma tarde de muita fumaça, muito fogo e perigo de vida.

Além de escritor trabalhou com publicidade e marketing político. A propósito, formou-se em Sociologia e Política pela Pontífica Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), e destacou-se na publicidade pela ousadia e irreverência na criação de campanhas comerciais, políticas e educativas de grande êxito.  

Pode-se dizer que o “Turco”, como era chamado pelos amigos, como publicitário, ganhou a vida em sua agência de publicidade sempre promovendo os outros. Participou de diversas campanhas politicas de sucesso como a de José Richa e Roberto Requião. Richa foi eleito governador do Paraná em 1982. E no mandato, Snege desenvolveu projetos sociais de marketing, engajando-se também na campanha das Diretas Já, para a Presidência da República.

No campo literário, além da reconhecida qualidade de sua obra ficcional, notabilizou-se por recusar sistematicamente as propostas recebidas de grandes editoras, optando por financiar com recursos próprios a publicação artesanal de seus onze livros.

Alguns dizem que Snege define melhor a alma curitibana que o próprio Dalton Trevisa. Entretanto Jamil Snege sempre recusou o rótulo provinciano de escritor regionalista, com o argumento de que quando se olha para a literatura americana ou latino-americana, não existe a literatura da Carolina do Norte ou a literatura da California.

Dono de uma ironia sarcástica, enxuta, corrosiva, uma forma de heroicizar as misérias com um lirismo negativista, Snege tinha um olhar impiedoso sobre a condição humana. A diferença é que sempre escrevia com algo de auto-biográfico. Escritor reconhecido pela classe literária, publicou, entre outros, “O Jardim, a Tempestade” (minicontos, 1989), “Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo” (memórias, 1994) e “Os Verões da Grande Leitoa Branca” (contos, 2000).

Deixem-me arder
……..Deixem-me queimar as asas
nesse vela,
nesse sol, nesse leiser que envenena
as couves embrutecidas
pela treva.
…….Deixem-me arder.
…….Se ofendo sua lógica,
sua prosódias, seus anéis
de sempre elegante curvatura,
esmaguem minha musculatura
e os ossos que a sustêm.
…….Mas me deixem arder
…….Deixem-me arder de infinito
nesse iníquo delíquio
de existir.
…….E se os ofendo,
soprem minhas cinzas,
derramem minha lixívia,
mas me deixem auferir
as estrelas como o úmero roto
açoita o músculo que seu vôo
desencanta.
…….Deixem-me luzir
definhar meu luminoso espanto
onde só lhes é permitido
sobraçar espasmos
e guarda-chuvas.
…….E seu eu venha a ferir,
opacos, o lusco-fusco
de seus baços,
o hálito de hortaliças,
o bolor de queijo
que amadurece em seus
atrios
absteçam-me de mil insultos
…….
Mas me deixem incender.

SABOTAGE



Título: Sabotage

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Drypoint, Etching

Data: Dezembro 2021



Mauro Mateus dos Santos nasceu na periferia de São Paulo 3 de abril de 1973 e morreu assassinado na mesma cidade a 24 de janeiro de 2003.  Nestes breves 29 anos de vida, o poeta ficou conhecido pelo seu nome artístico Sabotage, Mauro Mateus fez de tudo um pouco. Foi poeta, traficante de drogas, rapper, cantor, compositor, e ator brasileiro. A origem do apelido Sabotage deu-se por ter quase sempre conseguindo burlar as normas com algum êxito, como entrar em bailes, festas e boates sem permissões, e sair ileso de inúmeras confusões e brigas. Artista que combina raramente fineza e simplicidade numa prosa agilíssima, Sabotage foi criado na favela do Canão, capital paulista. Cresceu e viveu numa cidade que mata em média mata 700 pessoas por ano, em meio à criminalidade, à fama, o descaso, à morte e o sucesso. Começou a trabalhar aos 8 anos em seu primeiro emprego, como “olheiro” - nome dado aos que trabalham do tráfico de drogas avisando aos chefes locais quando a polícia se aproxima. Filho mais novo de 3 irmãos, teve um dos irmãos mortos, após fugir da cadeia, e outro, dominado pela loucura do alcoolismo. Mauro, pai de 2 filhos, nasceu na Zona Sul de São Paulo, onde, depois de ter sido assaltante e gerente de tráfico encontrou a saída no rap, entrando na música e percebendo o seu verdadeiro dom. 

Sabotage fez um único disco solo, o “Rap é Compromisso!”, e participou de vários CDs com grupos como  RZO, SP Funk e outros. Seu único disco, de 2001, é um marco na historia da poesia Hip-Hop brasileira. Considerado uma lenda na Zona Sul, ele inspirou vários rappers, como Rhossi, Pavilhão 9, além de ter ensinado Paulo Miklos, cantor de ascendência húngara da banda de rock Titãs, como ser um malandro de verdade, no filme "O Invasor", de Beto Brant, com quem escreveu até uma música.

Sua música, mistura letras inteligentes, frases contundentes e rimas ágeis, com ritmos que não necessariamente são apenas de rap, mas também gêneros como o Samba, Rock, e Música Eletrônica.

Também fez parte de dois filmes, o já citado "O Invasor", e o premiado "Carandiru", além de ter recebido vários prêmios, como personalidade, revelação e outros no Hútus, o grande festival de premiação de rap no Brasil. Vale ressaltar que Sabotage era o próprio compositor e cantor de suas músicas. Em toda sua carreira, compôs dezenas de trabalhos e alguns deles se tornaram uma espécie de hino para jovens da periferia. Para muitos, Sabotage é uma rica expressão da constante luta que o pobre enfrenta diariamente para viver dignamente e isso fez com que vários outros artistas usassem suas obras como samples, colagens e scratches de seus trabalhos".

Na manhã do dia 24 de janeiro de 2003, em frente ao número 1877 da avenida Professor Abrão de Morais, no bairro da Saúde, próximo a sua casa, Sabotage levou sua mulher, Maria Dalva da Rocha Viana, ao ponto de ônibus. Na despedida, disse à esposa que iria para o Fórum Social Mundial, na cidade de Porto Alegre. Após entrar no carro, segundo testemunhas, foi abordado por um homem que disparou 4 tiros: dois na coluna vertebral 1 na mandíbula e 1 na cabeça. Encontrado horas depois, aos seu lado havia uma máscara preta. Muito se especulou, maliciosamente, à época sobre algumas possíveis causas de seu assassinato, entre elas, o envolvimento do rapper com o mundo do crime quando era mais jovem. A falsas acusações, entretanto, são veementemente negadas por seus amigos e familiares, haja visto que Sabotage tinha desistido da vida criminosa por volta de 10 anos antes de sua morte.

 Em 2016, 13 anos após sua morte, o álbum que leva o mesmo nome do cantor foi lançado no serviço de streaming Spotify. Nele estão diversas canções feitas na semana em que o rapper foi assassinado.

Sai da Frente 

Sai da frente, o mar, não tá pra peixe, entende?

Minha gente, quem não for do corre, sai da frente
As águas, sei, tão turvas, aqui ou no Oriente
A fome em Sampa arruína, esmagadora, brava gente
Click-clack-bang
Sai da frente, gente
Bala perdida é igual cadeia, a dor ardente
Me disseram: "O sol nasceu pra todos"
Pra quem será que dizem, mano?
Pra nós os pobres ou pro simples tolo? " 

 


A alma


Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.

Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.

Sou o que fui …
Sou o que serei …

Augusto Frederico Schmidth


xilogravura. Ghost Project. 12"x12" 
#lynkcollective 
#finssocal

Heinrich Karl Bukowski

Escrita

frequentemente é a única
coisa
entre você e a
impossibilidade.
nem um trago,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
se igualar.
nada pode salvar
você
exceto
a escrita.
ela evita que as paredes
desabem.
que as hordas 
se aproximem.
ela explode as 
trevas.
a escrita é tua

decisiva
psiquiatra,
A mais gentil
deusa de todos os
deuses.
a escrita encurrala a
morte.
não conhece a
desistência.
a escrita
ri de
si mesma,
na dor.
é a última
expectativa,
a última
explicação.
e isso
é o que
é.

Extraído de blank gun silencer - 1991


Writing 

often it is the only
thing
between you and
impossibility.
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.

from blank gun silencer - 1991



Os Riots não roem a roupa do rei


George Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.

 

- vinte merréis, um Jackson. pqp.  

 

O fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência policial, o preconceito, a hipocrisia…

 

Não sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos. Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados, humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo de cara…

 

- sim estou puto sim, foda-se.

 

Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.

 

Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto, e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de fantasmas e ausências  históricas faça com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o homem negro, já  que para o policial o mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico, o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime. Óbvio!

 

Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou, quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?

 

 - Óbvio é o cacete. Correto porra nenhuma!

 

Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça” ele se declarava pertencer. O menino João Pedro Mattos Pinto, morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é diferente!

 

- vdd!

 

Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil. Então, para que riots ao sul do Equador?  Ora bolas!

 

 - O problema é que o buraco é muito muito muito mais embaixo…

 

O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas - sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares, geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados, tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e tem de conviver com a ausência do Estado.

 

- Tudo separado… sei…

 

A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art. 3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de 5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística, por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai você vai vendo.

 

A eficácia desses números não se mede pela sua capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?  

 

Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo prazo, e não podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos dizem ser apenas de classe.

 

O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil, como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário do ato hipócrita.

 

O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

 

- Eu também gosto do Milton Santos…

 

Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por acaso estão mais negros e pardos que brancos,  e isso não deixa de conter uma certa ironia azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.

 

Nota: não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.

 

Ana Cristina Cesar

Rádio Batuta disponibilizou  alguns áudios de Ana Cristina Cesar. A poeta falou a alunos de uma faculdade do Rio de Janeiro seis meses antes de morrer, em 1983.




morTe dO leiTeiro

Morte do leiteiro 

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro
.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade - A rosa do povo

O Declínio Do Império Americano

Um dos personagens de Oscar Wilde – não lembro qual, agora – dizia que só fala mal da sociedade quem não consegue frequentá-la, e acho que esse poderia bem ser o adágio do filme de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano. 

O filme começa com uma entrevista à Rádio CBC da professora de História da Universidade de Montreal, Dominique St. Arnaud, em que conta a Diane sobre seu novo livro, Variações sobre a idéia de felicidade, que discute sua tese: a fixação da sociedade moderna na autoindulgência. 

Na próxima cena, quatro professores universitários conversam animadamente sobre assuntos diversos enquanto preparam um early dinner. Ao mesmo tempo, na academia de ginástica da Universidade, quatro mulheres, incluindo Diane e Dominique, colegas dos professores,  também conversam animadamente sobre os problemas de relacionamento entre homens e mulheres.

 


A partir da metade do filme, as mulheres chegam, e o grupo de amigos inicia um jantar animadíssimo. Todo o filme, extremamente dialógico, gira em torno desses oito professores universitários, Historiadores diga-se de passagem, que num agradável fim de tarde almoçam e conversam sobre seus relacionamentos, o amor, o sexo, as angústias e variações do que seria a tal da Felicidade. 

À medida que o jantar avança, os homens e as mulheres conversam principalmente sobre suas vidas sexuais, com os homens sendo abertos sobre seus adultérios, incluindo Rémy, que é casado com Louise e que já se relacionou com quase todas á mesa. A maioria das mulheres do círculo de amigos já fez sexo com Rémy, embora ele não seja atraente, mas elas escondem isso de Louise para poupar seus sentimentos, afinal todos são mais que amigos, todos pertencem ao mesmo departamento.  

Ainda no ginásio, quando as amigas conversavam, Louise revela que esteve em uma orgia com Rémy, mas acredita que ele geralmente é fiel. Claude é o único amigo homossexual no jantar. Ele também fala abertamente sobre sair com outros homens de maneira imprudente, mas com medo de doenças sexualmente transmissíveis, enquanto secretamente teme estar infectado por AIDS – problema  que ainda assolava a todos na década de 80. Dominique, por sua vez, fala sobre sua teoria que dá conta do declínio da sociedade, com Louise antagonizando-a e  expressando ceticismo. Para contra argumentar contra Louise, Dominique revela que fez sexo com Rémy e seu amigo Pierre, causando um colapso emocional e um mal estar geral no jantar.

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar.

Pela manhã, era como se a noite anterior não tivesse passado de um samba de Paulinho,  um grande pagode na casa do Vavá: “Vi muita nega bonita, fazer partideiro ficar esquecido, mas apesar do ciúme, nenhuma mulher ficou sem o marido”. E Louise se senta ao piano, toca, e todos se abraçam, e os relacionamentos voltaram ao normal, afinal e contas são todos amigos, e acima de tudo, lavou tá novo

A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Os protagonistas realizam uma verdadeira auto-avaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles a liberação sexual, valor moral da intelectualidade, e a tendência de todos se desculparem por seus próprios erros ou de aceitar com facilidade os próprios defeitos, principalmente quando a conversa começa a esquentar. No fundo Demy mostra que na prática, a teoria é outra. 

Pessoalmente acho sensacional como Denys Arcand se auto define. Um périmé catholique. Mais interessante, como ele retrata os valores americanos, já que americanos tem um grande preconceito contra os canadenses. Os canadenses não são servis como outros grupos imigrantes, e talvez por isso os americanos os consideram bárbaros caçadores de alces e ursos. Os canadenses por sua vez, não estão nem aí para os americanos. E isso é interessantíssimo quando visto aqui de dentro. Mas no filme Dominique, prevendo um colapso no "Império Americano", baseado na autocomplacência, na condescendência, na tolerância e indulgência consigo,  afirma ironicamente que Quebec, apesar de falar francês e se colocar olimpicamente na periferia, embarca de roldão nessa decadência dos costumes. 

Denys Arcand coloca em xeque os relacionamentos modernos, marcados por problemas amorosos e sexuais. Ele faz um estudo crítico dos anseios e frustrações de uma classe média intelectualizada e escrava dos divãs de analistas. Quatro professores universitários, três deles casados e um gay, preparam um jantar em uma casa de campo. Conversam sobre sexo. Enquanto isso, suas mulheres estão juntas em um clube e, da mesma forma, dividem seus segredos. Quando se encontram no jantar, estão prontos para o embate.

Outro filmaço que preciso rever é o Invasões Bárbaras, 2003, com os mesmo protagonistas, 17 anos depois.


Fury and sound

Yoknapatawpha "Country", um país bem grande da  América do Sul, é um lugar onde a vida vale muito pouco, e parece uma ficção relatada por um desbocado retardado mental, cheio de Som e Fúria.

Moral da arte pela arte

Em junho de 1936. Atenção: mês de junho. Federico García Lorca  foi perguntado o que ele pensava da Arte pela Arte. Ele respondeu que "já nenhum homem verdadeiro acredita no conceito da arte pura, de arte pela arte". E acrescentou: "Neste momento dramático do mundo, o artista deve chorar e rir com o seu povo". Dois meses depois, em agosto, o poeta foi fuzilado de costas pelos fascistas que, tomaram pelas armas Granada e enterraram o corpo numa vala comum. Atenção: Fuzilado de costas. As circunstâncias do encobrimento desse assassinato foram exaustivamente pesquisadas pelo historiador irlandês Ian Gibs, autor de biografia com farto material sobre Lorca.

Sam Peckinpah Again!

(Filme e postagem de 2011, mas... me peguei assistindo o Peckinpah again, ontem) 

Western Crepuscular ou Tráiganme la cabeza de Alfredo García 

"El Jefe" é milionário “fazendeiro”,  mejicano e cheio de capangas mejicanos,  descobre que sua filha Teresa está grávida. O cidadão em vez de ficar feliz por ser avô, fica furioso. Primeiro por que por que a criança vai nascer sem pai, segundo por que a menina era virgem – veja bem, estamos falando de caras mexicanos, ano de 1974, com outro diapasão. El Jefe, então, aplica uns safanões na menina para saber quem seria o pai da criança. Entre uma bordoada e outra a moça acaba revelando que o pai é Alfredo Garcia, justamente o homem que El Jefe tinha preparado para ser seu sucessor – ai você pensaria… ahh, Freud explica.

Para lavar a honra tanto da filha como de sua película apassivadora, contrata dois pistoleiros maus e internacionais, que na verdade encontram-se na outra margem do Rio Grande, e oferece 1 milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do tal Alfredo Garcia.

Dois pistoleiros chegam a um bar do baixo meretrício mejicano en Ciudad de Méjico, onde encontram o pianista Bennie, um ex militar americano que vendo a pinta dos pistoleiros se faz de desentendido. Eles oferecem um bom tutu pela informação do paradeiro de Alfredo Garcia, mas querem como prova a cabeça de Garcia. O pianista já andava meio na bronca com Garcia pela folga com a cantora Elita, seu trelêlê oficial,  e fica de dar a resposta aos bandidos. Bennie vai atrás de Garcia e se certifica que ele estivera com Elita. Mas a cantora lhe diz que Garcia foi embora para sua cidade no interior do México, onde sofreu um acidente de carro e morreu. 

Mas é claro (!)  que Bennie não acredita nessa estorinha fiada de Elita.  E no melhor estilo brasileiro compra um terçado e parte com Elita rumo à cidade onde Garcia foi enterrado, para conseguir a prova da morte de Garcia, ou seja, literalmente a cabeça de Alfredo Garcia. 

Mas como isso tudo é uma estória de western pop crepuscular pensada por Peckinpah, o mais gótico dos diretores do gênero, os assassinos não confiam em Bennie e sem ele saber o seguem até a um vilarejo no interior do Méjico, onde então ocorrerá a emboscada e a pendenga semi-final. Afinal, pensa comigo. Por que eles vão pagar ao cara, se pode embolsar a grana e ainda matar o infeliz do Bennie, não é mesmo. Isso é Óbvio. O filme foi um dos mais baratos do Peckinpah, e justiça seja feita, fez milagres. Se o Peckinpah tivesse metade da grana e dos amigos do Tarantino...

Com orçamento enxugadíssimo e um roteiro barato, não deu outra, Bennie encontra a sepultura de Alfredo Garcia e ao tentar desenterrá-lo é atacado pelas costas. Quando desperta, está enterrado. Com muito esforço consegue se desenterrar, mas constada que sua amante, Elita, enterrada ao seu lado está morta.  Bennie ao ver a sepultura de Garcia aberta, constata que o corpo não tinha a cabeça, levada enquanto esteve desacordado e então passa a desconfiar que se os dois assassinos de aluguel o seguiram até aquele fim de mundo, e levaram a cabeça de Alfredo Garcia, por que a cabeça do morto vale muito mais na mão dos sicários que na dele. 

Enfim, depois tremenda troca de tiros, ele recupera a cabeça de Garcia e a coloca num saco com gelo e dirige com a cabeça no banco do lado. 

O monólogo de Bennie com a cabeça morta de Alfredo Garcia é uma cena surreal, mas fantástica. Talvez o ponto alto do filme seja esse convívio de Bennie com a cabeça decepada. 

O filme tem várias reviravoltas. Os matadores Sappensly e Quill acabam fazendo uma emboscada, quando Bennie vai devolver a cabeça à família de Alfredo Garcia. Quill mata toda a familia de Garcia, mas é morto por Bennie. Sappensly, desolado como um matador olhando para seu parceiro morto, diz que não pagará Bennie, e também toma um caroço na cabeça. 

E nesse meio tempo, Bennie continua conversando com a cabeça. Chega ao hotel, lava-a e pretende levá-la ao Jefe, com o pretexto de receber os US$ 10K.  Em meio a mais tiros, Bennie finalmente consegue o endereço do Jefe. 

Consegue chegar justo no dia do batizado do rebento. O Jefe estava até feliz. Bennie se apresenta, entrega a cabeça e relata quantas pessoas morreram por aquela cabeça. Quando o Jefe diz para ele pegar seu dinheiro, jogar a cabeça para os porcos e ir embora, ele lembra que Elita se incluía naquele monte de mortes em vão, e aí é possível ver como o semblante de Warren Oates muda ao constatar que tudo aqui tinha sido em vão. 

Ai meu amigo... acho que não era nem mais o Beniie que estava ali, e sim o Oates, vaqueiro do Kentucky, amigo do Steve McQueen.  Foi tiro pra todo lado. Bennie, enfurecido,  mata um monte de capanga do Jefe. 

A mocinha entra com o filho no colo e pede que mate seu pai. Ele pega a cabeça e vai em direção a porteira da fazenda levando o Jefe, junto a Teresa. 

Chegando na porteira, ele se vira pra Teresa e diz assim mesmo do jeito que eu estou te falando: “Agora, você coisa da criança, que do teu pai cuido eu…”  UAU ! podia terminar ai né! Mas não…. Isso é um filme de Sam Peckinpah.

Como esses mafiosos, traficantes, milicianos tem sempre capangas pra caramba, surgiu mais um monte do nada e rasgaram Bennie com rajadas de metralhadoras. 

Nota. Sam Peckinpah já foi partícula apassivadora em tiranicídia contenda entre meu concunhado e eu. Enquanto eu dizia que o cinema americano não era autoral, ou seja, não tinha uma linha de cineastas que faziam filmes classificáveis pelo toque de Midas da linha autoral, o concunhado dizia que havia Peckinpah: "brutalidade mimética, estética da violência e ódio fiduciário". Dito assim, de maneira tão bonita, pode até ser.






Música do dia. El Justiciero. Mutantes.