— Besteira, mulher!... Tomei nada! Matei o bicho! A vontade que eu tinha era estar mesmo bebinho, pra me esquecer de tudo quanto é desgraça!...
Em O Quinze, de Rachel de Queirós.
Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Certo dia, ao acordar após sonhos estranhos, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso inseto. Mas, Gregor é vocacional, não se preocupa com sua transformação, e sim com o fato de estar atrasado para o trabalho.
Chega ao trabalho e sem se dar conta de seu aspecto meio escroto, Gregor, após muitas dificuldades, consegue abrir a porta do local. Todos se assustam, inclusive o gerente, que sai correndo. Samsa avança em direção a ele, forçando-o a entrar de volta no escritório. Após esse episódio, Gregor é demitido. Demitido nessas circunstâncias com esse aspecto, sua família o rejeita e sua única alternativa é o confinamento social HORIZONTAL. Entendeu?
A partir daí, Gregor, que sem conseguir fazer nada, ouve sua família discutindo aos berros como vão fazer para se sustentar a casa. Agora, tinham uma renda a menos na casa, e como pagariam a educação dos filhos, as aulas de violino da menina…
A propósito, em alguns momentos de seu drama, a irmã mostra certa compaixão por ele levando uma comida, e tal.
Nisso, Gregor sente uma forte angústia por não poder fazer nada, nem opinar sobre o que fazer. A família compadecida com a falta de espaço do quarto, retira os móveis, mas na operação de retirada, Samsa tenta fugir, no que é impedido pelo pai que lhe atira uma série de maçãs.
No final das contas os Samsa, (sem contar com a opinião de Gregor, claro) decidem sublocar um quarto para complementar a renda. O quarto é alugado por três inquilinos, que vivem na casa por um tempo. Num certo dia, Ana esquece a porta, que ligava a sala ao quarto de Gregor, aberta.
Justo na hora da jantar, Greta tocava o seu violino para os inquilinos. Gregor, do seu quarto, ouve inebriado o som e segue em direção à sala de jantar. Nos primeiros momentos, ninguém o percebe, mas após alguns segundos um dos inquilinos o vê e grita de pavor.
Sr. Samsa tenta afastar os inquilinos de modo que não vejam o inseto e ao mesmo tempo fazer com que a criatura volte para o seu quarto.
Depois desse incidente, Greta, a única que ainda via Gregor com certa compassividade e não como um monstro horroroso que atormentava a sua família, perde toda a compaixão e chega à conclusão que eles devem se livrar dele.
Kafka ainda fala várias vezes sobre a maçã, atirada pelo pai, e encravada nas costas de Gregor, que vai apodrecendo gradualmente em suas costas.
Depois é o que se sabe. O personagem de Kafka, confinado HORIZONTALMENTE não tem de se levantar cedo para ir trabalhar, continua vivendo confinado no seu quarto, deitado no canto mais escuro e convencido de que se transformara em algo muito diferente de um homem. Como se recusa comer, acaba morrendo, com o corpo exaurido e seco, encontrado pela dona diarista.
Após sua morte, a família sente um grande alívio. Ana acabar de limpar o quarto do falecido, a família sai da casa feliz. Já não pensavam na morte de Gregor e viam uma certa esperança num futuro próximo, em que poderiam comprar uma casa mais confortável.
Os três períodos da relação da família perante Gregor são sintomáticos. No primeiro, a família sente medo mas deixa-o ali pela na casa; no segundo aceita-o, mas esconde-o do mundo; já no terceiro, odeia-o, vê ele como um peso desnecessário e quer livrar-se dele a qualquer custo.
Nesse momento político meta-pós-apocalíptico-carnavalesco-pandêmico brasileiro(!) em que não há nem esquerda combativa, nem oposição coerente, nem imprensa confiável, nem Supremo imparcial, nem Legislativo mínimamente ético, nem porra nenhuma, o meio social degradado gera uma consciência social igualmente degradada. Posso até estar enganado, mas esse nosso nazifascisminho moreno que se apossou de um meio social totalmente degradado é um falso axioma por que o raciocínio do fascista moreno é todo baseado em falsas verdades. Formado por uma tropa de choque vinda de um lumpesinato, bastante semelhante às milícias militares de baixa patente e segmentos fanatizados de cultos religiosos, sem falar na classe média temerosa de seu empobrecimento e rancorosa em seus preconceitos temos hoje uma família Samsa muito unida. O único problema, é que o inseto que apodrece no quarto somos nós, os que não foram e nem querem se incluir.
Ernest Pinard foi um ministro do Interior francês, facilmente olvidável, a não ser por alguns detalhes de sua biografia. Nivelados por baixo, Pinard e Sérgio Moro guardam alguma semelhança. Ambos tinham ambição maior que seus estômagos, e ambos tiveram carreiras meteóricas.
Pinard decidiu ingressar no judiciário e, em maio de 1849, sendo nomeado procurador adjunto em Tonnerre. Em dezembro de 1851, ele se tornou procurador adjunto em Troyes e, em dezembro de 1852, em Reims. Em outubro de 1853, foi nomeado procurador adjunto no Tribunal do Sena em Paris onde aí sim começou uma espécie de Lava Jato dos bons costumes franceses.
Apenas para contextualizar, Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, Sobrinho de Napoleão, que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac – uma espécie de Haddad das bandas de lá. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas. E é justamente aqui que Marx escreve "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.
Com a faca e o queijo na mão, Pinard não pensou duas vezes. Lascou de processar todo mundo. De repente quis moralizar tudo. Em 1857, foi a vez de Baudelaire,
por causa dos poemas de Flores do Mal; depois, Eugénie Sue por seu Os Mistérios do Povo, e por fim, Gustave Flaubert por Madame Bovary.
Contra Baudelaire, ainda conseguiu banir 7 poemas do conjunto do Flores do Mal, por temática, ora veja você, lésbica (!) e sadomasoquista (!). Diga-se de passagem, a proibição permaneceu até 1948!
Já contra Flaubert, o distinto se deu mal. Flaubert não só foi absolvido, como o processo rendeu uma excelente publicidade à sua preciosa história de adultério, decadência e miséria provinciana que enredava seu Madame Bovary.
Pinard bem podia ser um personagem secundário de Flaubert, em A Educação Sentimental - escrito poucos anos depois do processo levantado por ele em sua opération lava jatô pessoal. Eu particularmente desconfio, se me permitem, dada a licença poética, que Jacques Arnoux tem algo dos cornos cuspidos e escarrados Ernest Pinard. Mas se nem Lukács, nem Bourdieu falaram nada dos cornos que menino Moreau colocou na testa de Sr. Arnoux, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia?
O fato é que em Pinard passou para a história com justiça poética: como apenas uma anedota verborrágica e censória. E nos anos 1980, ainda que alguns intelectuais tentassem imputar em Flaubert vários delitos de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, abuso de menores e algumas outras vigarices, Flaubert permaneceu um gênio da descrição, do mal e da minúcia. Para mim, A Educação Sentimental, mais até que Madame Bovary, é um clássico de formação para um jovem. Ele tem um força incontida, indomesticável, que busca o absurdo e a beleza em cada descrição dos meandros psicológicos dos personagens.
Este mês se celebra 140 anos de morte de Flaubert.
Flaubert continua Flaubert, e o malandro Ernest Pinard, não passou de um
burocrata da Segunda República francesa. Mas ainda assim, conseguiu cavar uma
vaguinha como procurador geral francês em Douai,e terminar a vida com uma
aposentadoria legal … Moro, muito mais perigoso que Pinard, ainda está
aguardando o desfecho do nosso 18 Brumário, pra ver se ele também consegue beliscar
alguma daquelas prebendas prometidas lá atrás, durante o golpe do impeachment, na
negociação com MPF da República das Araucárias, jogada no ventilador pelo The Intercept, no episódio da prisão de Lula nas vésperas da eleição, impedindo sua candidatura… enfim, quem sou eu para
ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia?
Primeiro construí na areia, depois na rocha,
Quando a rocha ruiu,
Não construí mais nada.
Depois construí muitas vezes de novo
Ora na areia, ora na rocha, porém
Eu aprendi.
Aqueles a quem confiei a carta
Jogaram-na fora. Os outros, que nem notei,
A mim a trouxeram de volta.
Então aprendi.
O que eu mandei fazer não foi realizado,
Mas quando cheguei ao lugar
Vi que seria errado. O certo
Foi feito.
Disso eu aprendi.
As cicatrizes doem
No tempo frio.
Mas eu digo sempre: só o túmulo
Não me ensina mais nada.
BRECHT, Bertolt. "Der Lernende"/"O aprendiz". Trad. de Wira Selanski. In: SELANSKI, Wira (org.). Fonte: Antologia da lírica alemã. Rio de Janeiro: Editora Velha Lapa, 1999.