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DYONELIO MACHADO

 



Título: Dyonélio Machado

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Junho de 2021

 

Dyonélio Tubino Machado nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Quirai, fronteira com o Uruguai, a 21 de Agosto de 1895. Filho de Sylvio Rodrigues Machado e da costureira Elvira Tubino Machado. Ainda criança, teve a vida marcada por uma tragédia. O pai, que era despachante aduaneiro na fronteira, foi assassinado quando ele era ainda um menino. Orfão de pai aos sete anos, o menino tinha uma família, agora, arruinada, constituída apenas pela mãe e pelo irmão mais novo Severino. 

Dyonélio nasce durante os anos da instauração da República, entre 1893 e 1895, travou-se cruenta luta entre as facções oligárquicas pelo comando do Estado, à qual se deu o nome de Revolução Federalista. Os republicanos – chimangos – estavam agrupados no Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e os liberais –maragatos -, no Partido Federalista.

Anos mais tarde, Dyonélio explicaria o contexto da morte do pai. Em cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995, Dyonélio disse: “Quaraí, é uma cidade de fronteira, com um movimento grande de importação e exportação. Toda a produção de lá tinha vazão pro Uruguai, pois para transportar charque pro Nordeste, passava-se dentro do Uruguai, o que dava margem a mil e uma safadezas.”

Aos oito anos, ele já vendia bilhetes de loteria para ajudar no sustento da casa. E menos de um ano depois do assassinato do pai, outro fato marcante ocorre. Um dia, na rua, encontrou o assassino do pai. O homem queria comprar um bilhete. Esse encontro é narrado pelo próprio escritor: “Não queiram passar pelo momento que passei: negociar com quem me fizera órfão era renegar uma adoração que nada abalaria. Mas trocar por dinheiro os poucos bilhetes de loteria que eu carregava, era obter meio quilo de carne. Cedi. Nossa transação se fez sem palavras. Sabia também o que me esperava em casa: era minha mãe chorando”.

A falta de recursos econômicos, não o impediu de estudar. Matriculou-se e ao irmão menor na recém-aberta Escola de Aurélio Porto. Para pagar a escola para os dois, Dyonélio dava aulas para os meninos das classes mais atrasadas. Com 12 anos, independente e solitário, começou a trabalhar como servente no semanário O Quaraí, o que lhe permitiu conhecer os intelectuais locais. Foi também balconista na livraria de um parente, João Antônio Dias. Não se sabe exatamente quando se tornou Comunista, mas por volta de 1911, aos 15 anos, funda em Quaraí o jornal O Martelo, nome sugestivo e que já demonstrava o seu interesse pelo marxismo.

Aos vinte anos já colaborava com os jornais Gazeta do Alegrete, Correio do Povo, Diário de Notícias e o Diário Carioca, vindo a se casar em 1921, aos 26 anos, com a professora de piano Adalgisa Martins. Três anos mais tarde entra para a Faculdade de Medicina, e ainda durante os estudos publicaria seu primeiro livro, Um Pobre Homem. No início dos anos 1930, o já formado, o Dr. Dyonélio continua com seus hábitos antigos dos chás e chimarrão.

Não gostava de médicos nem de remédios. Quando adoecia só tomava Melhoral, um analgésico e antipirético. E talvez por isso especializa-se em Psiquiatria, rumando para o Rio de Janeiro. Nesse momento iniciava-se um período político e econômico conturbado, na capital e no Brasil. Getúlio Vargas se torna o presidente e permaneceria no poder nos próximos 15 anos.

Durante o período de estudos acadêmicos, escreve em 1933, Uma definição biológica do crime, Um ensaio, parte da tese de doutoramento do autor que foi a precursora da bibliografia freudiana no Rio Grande do Sul. Nesse mesmo período, ainda encontrou tempo para traduzir a obra Elementos da psicanálise, do psicanalista italiano Edoardo Weiss.

No ano seguinte, de volta a sua terra, envolveu-se na greve dos gráficos da Livraria do Globo, por isso, foi preso pela primeira vez, ainda que por pouco tempo, num quartel militar, na Praia de Belas. Como homem de esquerda, tornou-se membro dedicado do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Após ser solto, ainda vai para o interior ajudar um familiar doente.

A segunda prisão ocorreu no dia 2 de outubro de 1935. Era uma quarta-feira. Nesse dia, Dyonélio Machado foi detido e levado para a carceragem do quartel do Terceiro Batalhão da Brigada Militar, devido sua participação na paralização dos gráficos do Rio Grande do Sul. Acusado de incitar os trabalhadores, Dyonélio foi enquadrado no artigo 19 da recém criada Lei de Segurança Nacional, instituída durante o governo de Getúlio Vargas. Aliás, ele foi um dos primeiros intelectuais a sofrer nas garras da “Monstruosa” como era chamada a lei que também encarceraria, um ano mais tarde, o alagoano Graciliano Ramos, por anos. Curiosamente, no mesmo dia da prisão, recebe a visita do jovem repórter, Rubem Braga, que registraria dias depois no jornal A Manhã, o recebimento do Prêmio Machado de Assis, em reconhecimento a Os Ratos. O escritor ficaria seis meses nessa prisão até ser transferido para o Rio de Janeiro, amargando um total de 2 anos de reclusão.

Segundo o próprio Dyonélio, a estória de Os Ratos o acompanhava há mais de 9 anos, estava toda em sua cabeça. Nessa época trabalhava em três hospitais. Chegava em casa do trabalho de médico, sentava-se à mesa e punha-se a escrever à mão em folhas de papel. Dormia muito pouco naquelas noites. Mas segundo ele, foram vinte noites mal dormidas. Escreveu Os Ratos em 20 noites. Pela manhã cedo, deixava o que escrevera à noite para que sua mulher fizesse a primeira revisão dos manuscritos. E no mesmo dia a esposa os entregava a uma funcionária empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo, para o trabalho de datilografia.

O livro, baseado num pesadelo que sua mãe havia lhe contado há anos,  tem um enredo bastante simples, linguagem seca e direta, que muito lembra a de seu companheiro de prisão Graciliano Ramos. Até os anos 1960, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava na base de um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados.

O personagem principal dessa obra é Naziazeno, um funcionário público, que dispões de apenas um dia para pagar uma conta com o leiteiro. Desesperado, chega no trabalho e pensa em pedir um empréstimo com o chefe da repartição. Sem sucesso, recorre ao amigo Duque. Ambos não foram trabalhar naquele dia. A doença do filho o desespera. Precisa conseguir dinheiro para o leite e o tratamento. Angustiado, Naziazeno consegue algum dinheiro emprestado para apostar num cassino. Entre as indecisões de apostar num número ou noutro, acaba ganha quinze mil-réis.  Guarda dez no bolso. Pega cinco, e compra mais fichas, na esperança de multiplicar seus ganhos. Porém, ele perde tudo.

No fim do dia, encontra os amigos Alcides e Duque, e os três procuram casas de agiotas, sem sucesso. Duque convence Alcides, que possui um anel penhorado com um agiota, a reavê-lo e renovar a penhora com outro agiota. Porém, para recuperar o anel, o trio é levado a fazer um outro empréstimo com outro agiota, Mondina.

Com o anel em mãos, Naziazeno e Alcides são instruídos por Duque a procurar Dupasquier, um comerciante de ouro. O dia está quase no fim, o tempo passa, e o leitor não consegue se livrar do efeito psicológico que a angustia do protagonista causa. O conselho de Duque não funciona.  Dupasquier trabalha apenas com venda, não com penhora. Quando finalmente os três conseguem negociar o penhor do objeto, e conseguem o dinheiro, Naziazeno chega em casa, exausto.  

Naziazeno, muito abalado, pensa e repensa o dia que passara, a angústia se torna uma espécie de paranóia e logo passa a ter umas alucinações entranhas com uma ratada. Ouve ruídos vindos da cozinha, entre pratos e panelas. A legião crescente de ratos invadem a casa e roem o dinheiro que obtivera, reduzindo-o a migalhas. E de repente tudo fica em silêncio.

Naziazeno se dá conta que está sentado na cama ao lado de sua mulher, Adelaide. Ele fica assim por horas a fio, até o amanhecer. Naziazeno só dorme após perceber o leite sendo deixado à porta de sua casa.

Em junho de 1937, obteve sua libertação, beneficiado que foi – como tantos outros – pela “Macedada”, nome do então ministro da Justiça Macedo Soares. De volta ao sul, foi a Quaraí (RS) se reunir com a família. Na cidade, passa a ter dificuldades de aceitação por parte da comunidade, em virtude de suas ligações PCB. Antes de se tornar comunista, Dyonélio tivera ligações poliíticas com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Ele fora muito amigo do governador Borges de Medeiros, de Protásio Alves e de toda a direção do PRR, além de ser parente do senador Francisco Flores da Cunha. Nessa fase, pós-prisão, a família sobrevivia às custas das aulas de piano ministradas por dona Adalgiza, esposa do escritor.

Após a celebrada recepção de Os Ratos, publica O Louco do Cati, em 1942, que foi mal aceito pelas editoras e critica.  Com o fim da Era Vargas, elege-se deputado estadual nas eleições de 1947, pelo PCB (ainda legalizado). Tornou-se líder desta bancada, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Mas com o decreto da ilegalidade do Partido, a bancada é cassada e Dyonélio volta a clinicar e militar no jornalismo político.  

Seu reconhecimento somente viria no final dos anos 1970, quando o escritor já tinha 88 anos. Nesse interregno publicou Eletroencefalograma (1944) e tardaria vinte anos para voltar a publicar Deuses Econômicos (1966), Endiabrados (1980), O Sol Subterrâneo (1981), e Ele vem do Fundão (1982).

O “Lobo Solitário” da literatura gaúcha, como o chamou Érico Veríssimo, deixou uma obra composta de 12 romances, um livro de contos, um volume de memórias e vários ensaios. Com uma vida cheia de traumas, prisões, independência e solidão,  faleceu no dia 19 de junho de 1985, no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, em decorrência das complicações de uma cirurgia no fêmur.

GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO 



Título: Glaucomattoso

Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

O nome no CPF é outro:  Pedro José Ferreira da Silva. Nasceu em São Paulo a 29 de junho de 1951. De ascendência italiana, entre Vila Mariana e Mooca, morou em diversos bairros de São Paulo. Os pais viam o menino estudioso, leitor compulsivo, e sonhavam e vê-lo advogado. Entretanto, Pedro José tornou-se bibliotecário. Formado em biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, também estudou Letras na Universidade de São Paulo, mas não chegou a concluir o curso.

Logo após a faculdade, já funcionário do Banco do Brasil, vai morar em Santa Teresa no Rio de Janeiro. Dalí para o Centro Cultural do Banco do Brasil, onde trabalhava na seção de numismática, era um pulo. Nesse mesmo período em que começa a colaborar com revistas e jornais alternativos, agrava-se o problema de visão que o acompanha pela vida. Pedro José desenvolveu um caso raro de glaucoma que o tornaria completamente cego em 1995. Mas ainda em meados dos anos 1970, assume o nome artístico de Glaucomattoso, um engenhoso trocadilho que envolve sua perda de visão com sua admiração por Gregório de Matos, de quem se considera o herdeiro na sátira fescenina. O novo Pedro José, então, passa a meter o dedo na ferida, na vida, na língua, nos orifícios, na dor e no prazer alheios.

Entre 1976 e 1994, colabora com periódicos no Rio de Janeiro, como Pasquim, 34 Letras. Participa dos primeiros movimentos LGBT’s do Brasil, o Somos, e colabora o jornal gay, Lampião. Em São Paulo como Chiclete com Banana no Jornal da Tarde. Com Nilto Maciel, organiza uma coletânea do conto marginal, Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal. Como ele mesmo disse recentemente: “Eu me identifico com os marginais porque publicávamos nossos livros com recursos próprios e não estávamos nem aí para as editoras".

A coletânea de poemas publicados na imprensa nanica e alternativa da ditadura, se concretizou num livro. O Jornal Dobradil, foi lançado em 1981 – um trocadilho do Jornal do Brasil, num formato de papel dobrado com poemas satíricos. E chegava a mandar sua criação para figuras como Millôr Fernandes e Tom Jobim. Neste mesmo ano, ainda escreveu um pequeno livro paradidático para a editora Brasiliense, Que É Poesia Marginal?

Paulistano convicto, com o agravamento da doença, volta para São Paulo. E entre a década de 1980 e 1990 participa ativamente de palestras e debates envolvendo a poesia marginal. Talvez por se considerar abertamente um produto do rock, da contracultura e do gibi, muito críticos embarcam na solução fácil de considerá-lo apenas um poeta de linguagem obscena e muitas vezes chula. Entretanto, sua obra é altamente elaborada. Abrange uma produção inicial de poemas concretos, visuais, passando a sonetos elaboradíssimos.

Até o início dos anos 1990, a visão, já muito comprometida, ainda lhe permitia ler e escrever. Nessa década, entretanto, com o agravamento da doença, que o impediu de fazer esse essencial para um poeta, se isola.

Entre altos e baixos, é tomado por uma depressão, e graças a amigos próximos, dá a volta por cima. Fã declarado do humor britânico, por, segundo ele, encararem as piores desgraças pelo lado mais grotesco, viaja a Inglaterra e trava contato com a cena punk britânica, especialmente grupos punks gays. De volta ao Brasil, já com a visão muito comprometida, passa a produzir CDs de punk e rock alternativo pelo selo independente Rotten Records, que fundou em 1995, e pelo qual orbitaram importantes nomes do cenário punk brasileiro. Em 1996 lançar o Urbanoise, dos Garotos Podres, e nesse mesmo período torna-se amigo de figuras como Redson Pozzi, guitarrista e vocalista do Cholera, Clemente Tadeu, guitarrista e vocalista dos Innocentes – e posteriormente Plebe Rude - e de João Gordo, dos Ratos de Porão.

Completamente cego, homossexual, sadomasoquista e podólatra, não necessariamente nessa ordem, Glaucomattoso ainda manteve uma carreira paralela como tradutor, durante os anos 1990. Em 1993, trabalha na tradução para o português da Bíblia do Skinhead de George Marshall para a Trama Editorial.  E na fase mais brava, após o desengano de qualquer operação corretiva para a visão,  o amigo Jorge Schwartz fez uma proposta de trabalho que, em certa medida, resgatou o velho Glauco: traduzir Fervor de Buenos Aires, obra de estréia do grande escritor argentino Jorge Luis Borges – que também ficara cego.

Aos domingos, falavam por telefone. Schwartz lia, enquanto que Glauco vertia os versos para o português com sua fala grave, sem nunca embaralhar as palavras, e assim Schwartz digitava no computador. Ganharam o Prêmio Jabuti de tradução, um dos mais importantes do país.

Como se já não bastasse a cegueira, para uma pessoa  que encara o alfabeto ainda tem 23 letras, incluído o Cá, o Dábliu, e o ìpsilon, a vida é difícil. Para falar a prosaica palavra “foda”, por exemplo, usa o pê e o agá. É que Glaucomattoso é meio parnasiano e ainda escreve em ortografia anterior à Reforma de 1943. No início dos anos 2000, já desiludido com alguma cirurgia que lhe devolvesse a visão, teve um sopro de esperança. Apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox (desenvolvido pela UFRJ para a língua portuguesa), em que a pessoa falava o que vai sendo digitado na tela do computador, ou lê em voz alta o que já vem escrito. Mas o problema ortográfico permanecia no meio da grafia de um ou outro orifício tocados por sua língua e seus dedos. Em fevereiro de 2008 completou dois mil e trezentos sonetos de uma série iniciada em 1999, e que segundo ele tinha batido a meta histórica do italiano Giuseppe Belli que no século XIX teria composto 2.279 sonetos.

Paulistana convicto, como já dito, hoje em dia Glaucomattoso vive na cidade de São Paulo, com seu companheiro. Segue produzindo incansavelmente e publicando sem parar. Quase tudo o que escreve e publica em livros de papel, vai para seu blog e redes sociais. Ele sabe que um parnasiano em tempos de Tik Tok, tem que se adaptar. É phoda, mas é verdade. Mantem assim em seu espírito anárquico, que é interrompido apenas nas segundas-feiras, quando vem um profissional especializado que o conduz à farmácia e ao correio. Ajuda-o nessas tarefas rotineiras, porém indispensáveis, que ele, um bancário aposentado do Banco do Brasil, cumpre geralmente sem ser reconhecido -  como um tarado, o louco, ou sanguinário - por ninguém na fila da padaria.

CARVALHO CALERO





Título: Carvalho Calero
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

 
Carvalho Calero, um dos maiores intelectuais galegos do século XX, era um homem que ria pouco. Tinha em si uma mistura de timidez e um cuidado meticuloso com sua imagem pública. Talvez o resultado de uma vida, não muito fácil, que tenha lhe ensinado ao comedimento das emoções. Nasceu em  Ferrol, cidade localizada na província da Corunha, em 1910. Cresceu no seio de uma família abastada como o mais velho dos seis irmãos. Perde a mãe, aos oito anos de idade, mas isso não o abala e dedica-se com afinco aos estudos, o que também inclui a língua galega. Chega mesmo a publicar alguns poemas já com 11 anos, quando começam suas tentativas de dramaturgo em duas obras, uma zarzuela e uma comédia em versos.
 
O menino que ri pouco, publica seus primeiros poemas aos 14 anos, na revista Maruxa, em Ferrol, e uma publicação na cidade cubana de Camaguey, por intermédio de um parente próximo, com o pseudônimo de Ílex. E já aos 15 anos, ao ingressar na Universidade de Santiago, para cursar o primeiro ano de Filosofia e Letras e preparatório de Direito, participa no seminário de Estudos Galegos, já com alguns versos publicados no El Correo Gallego.
 
Partimos aqui de uma constatação. A de que a persona do filólogo e intelectual Carvalho Calero é o resultado de um processo de construção social. Passados os anos da puerícia nos primeiros estudos, entra na fase verdadeiramente adulta, de formação do caráter. Envolve-se com o Seminário de Estudos Galegos e já como estudante de Direito, elabora e redige a reforma dos Estatutos da SEG.  
 
O caminho ate aqui é o de um menino que cresce sem mãe, que tem sua formação intelectual na Galiza e deseja ser reconhecido, desde cedo, como escritor. Esse caminho da formação abarca duas dimensões da experiência autobiográfica: Uma associada aos seus processos de identidade e socialização, e outra à edificação dessa sua disposição intelectual internalizada à imagem publica do escritor  -  que alguns gostam de chamar habitus.
 
Aos 18 anos, quando publica Tinitárias, seu primeiro livro de poemas, já está completamente envolvido na política universitária. São anos da contestação contra o Diretório Militar de Primo de Rivera. Publica também seu primeiro poemário em língua galega, Vieiros, em 1931, coincidindo com a conclusão do curso de direito. Mesmo com toda sua produção artística extra-académica e sua militância política, termina o curso com desempenho brilhante.
Neste mesmo período, ajuda a fundar o Partido Galeguista, junto a Castelao, Alexandre Bóveda, Tobio Fernandes, dentre outros. Nesta fase da vida ainda elabora propostas estatutárias para a Assembléia de Municípios e colabora com as publicações de Claridad e Ser, vinculadas à esquerda galeguista.

No mesmo ano, ganha uma vaga de funcionário público na Câmara municipal da sua cidade de nascença, Ferrol, deslocando-se para ela novamente. E em 1933 casa com sua amiga de estudos Maria Ignacia Ramos. Sua militância no Partido Galeguista, no qual foi presidente entre 1934 e 1935 e seu envolvimento com o legalismo Republicano marcou-o nas hostes franquistas. Foi combatente voluntário num batalhão composto por professores e profissionais de educação ligados à UGT. Foi preso no final da Guerra em Andaluzia e condenado por “separatismo”.

Perdeu o emprego e foi preso por dois anos, sendo libertado apenas no ano de 1941, e ainda assim de forma condicional, até à extinção da pena que somente viria em 12 anos. Neste período, aproveitou para estudar alemão e anotar dados para romance Scórpio, bem como A sombra de Orfeu, e para a peça teatral 'Os chefes', que somente publicaria em 1982.  

Mesmo em liberdade, continuou pagando um preço caro pela sedimentação de seus inconformismos. Durante a liberdade condicional, teve sérias dificuldades para conseguir trabalho. Vê-se impossibilitado, por exemplo, de recuperar a sua vaga de funcionário público, sendo obrigado a procurar trabalho como docente no ensino privado. Sem opções profissionais, e sem poder exercer o Direito, desenvolve um intenso labor literário, com os romances A Gente da Barreira, de 1951, e Os senhores da Pena, onde critica o passado da sociedade tradicional galega. Colabora sob o pseudónimo 'Fernando Cadaval' no jornal La Noche, sobre temas históricos e literários ligados a Rosalia de Castro. Para manter a família, deu aulas privadas, em situações de vida muito duras, aliás similares à de Antón Fraguas e Fernández del Riego. Em 1950 muda-se para Lugo, onde residiria pos mais 4 anos até termina seu doutoramento em Madrid com uma tese sobre a literatura galega contemporânea. Neste período, teve a sorte de ser acolhido pelo empresário e filantropo António Fernández no Fingoy, e desde aí, atuar grupo Galaxia. Em 1958 entra na Real Academia Galega e em 1965 torna-se o primeiro professor de galego da Universidade.
 
Neste anos, muda-se para Santiago de Compostela, onde atua como professor de Língua Espanhola e Literatura no Instituto «Rosalia de Castro» e, ao mesmo tempo, como professor na disciplina de Língua e Literatura Galega na Universidade de Santiago, onde em 1972 alcançaria a categoria de catedrático. Tido por alguns como um homem distante com os alunos, porém muito respeitoso, tinha um estilo de aula tradicional. Outros, dizem que era um homem à moda antiga, sempre de terno e maleta, e que ao cruzar uma rua e se deparar com uma mulher, tira-lhe o chapéu, em sinal de respeito.
 
Sua radicalização na defesa linguística, aprofunda-se em Julho de 1975 com um artigo público no jornal La Voz de Galicia onde defende uma normatização reintegracionista do Galego com o Português - o que provoca uma marginalização total de seu nome no meio acadêmico e político galego. Sua leitura do contexto histórico não estava de todo equivocada. Franco morreria em Novembro do mesmo ano, e havia uma real possibilidade de oficialização do idioma da Galiza nos próximos anos, após a morte do tirano, o que viria acontecer com a aprovação do controverso Decreto de Bilinguismo, e do Estatuto da Autonomia da Galiza em 1981.  Entretanto o tempo pressionava para que a luta se apressasse. Faltavam 5 anos para completar 70 anos. E assim atingiria o que naquele momento era a idade regulamentar de aposentadoria, e sabia que a partir daí as articulações políticas e acadêmicas seriam mais difíceis.

Entretanto, mesmo quando ainda atuava na docência acadêmica, sua imagem como intelectual reintegracionista viva arranhada. Prova disso é que quando aparece a Antoloxía da poesía galega actual, preparada pela revista Nordés para Ediciós do Castro, em 1978, Carvalho é incluído entre os 16 autores representados. Entretanto, a despeito do tamanho dos poemas e das opções de diagramação, em número de páginas, Calero ocupa um dos últimos lugares em termos quantitativos. Em um momento em que já era considerado um historiador da literatura galega, catedrático da USC e com inúmeras obras publicadas.
 
Com a aposentadoria, passa a militar por uma defesa da unidade linguística galego-luso-brasileira na Associaçom Galega da Língua, ajudando a fundá-la em 1981. E com isso, consegue jogar a pá de cal no que faltava. Passa a ser excluído de qualquer celebração cultural oficial da cultura galega, frente ao Estado espanhol.
O debate sobre o futuro da língua da Galiza e sua identidade idiomática, situou Carvalho Calero em posição de alvo de uma tosca incompreensão, por parte de seus pares acadêmicos. Com o tempo, aquilo foi se transformando em aberta hostilidade, mesmo por parte de alguns dos seus antigos amigos.
 
Em 1987 publica sua novela auto-biográfica Scórpio, em galego reintegrado, que é recebida com prêmios e críticas elogiosas. Mas já se fazia tarde, pois em 1988 aparecem os primeiros nódulos no pulmão, e entre, tratamentos e o repouso, ainda acha energias para continuar trabalhando até seus últimos dias. Em Janeiro de 1990, já com a doença muito avançada, vai a Ferrol natal, para receber pessoalmente uma homenagem da Câmara Municipal, e vindo a falecer no 25 de março de 1990, não chegando a completar os 80 anos.
 
Sua fortuna crítica, contrasta com sua marginalização. Caluniado e até desprezado, passa sua última década de vida um tanto amargurado com os antigos pares acadêmicos por desprezarem não apenas sua luta mas a do "rexurdimento" de Manuel Murguia, Castelao, Biqueira, Jenaro Marinhas del Valle e muitos outros. Prova disso é que há anos lhe era relegada a homenagem do dia das Letras Galegas. Desde 2005 seu nome vinha sendo aventado, mas silenciado. Em vida, não foi diferente. Teve talvez mais reconhecimento internacional que em sua terra.  Um exemplo simples: foi antes nomeado membro da Academia das Ciências de Lisboa, em 1981, que para fazer parte do Conselho de Cultura Galega - o que aconteceria apenas 3 anos depois. Claro está... sempre existem outras maneiras de ir sendo esquecido pelas beiras. 


ANTÔNIO FRAGA




Título: Antônio Fraga
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

Antônio Fraga nasceu em 30 de junho de 1916 no Rio de Janeiro. Era Filho de Waldomira da Fraga Fernandes e Justino Fernandes. Os pais, ambos com simpatias anarquistas, se conheceram no Segundo Congresso Operário Brasileiro ocorrido na cidade do Rio em 1913. Justino era português da cidade do Porto, um "tripeiro" que ganhava a vida como padeiro, e teria aderido ao Anarquismo ao travar contato com o célebre militante italiano Errico Malatesta (1853-1932) quando este propagava tal ideologia pela península ibérica. A mãe era uma costureira capixaba, nascida no município de Cachoeiro do Itapemirim, e que por sua vez, tornou-se anarquista a partir de seu envolvimento nas lutas trabalhistas travadas no Rio de Janeiro, para onde havia migrado em busca de melhores condições de vida.

O casal foi morar na área denominada anos mais tarde como Cidade Nova, localizada entre Catumbi, Estácio e Canal do Mangue. Sabe-se pouco da infância de Antônio. Parece que foi expulso de casa ainda novo pelo pai, indo morar em 1933 na zona do baixo meretrício do Mangue do Rio de Janeiro. Largou a escola – que considerava extremamente chata e inútil –, passando a estudar em casa mesmo, com auxílio dos pais. Começou igualmente a trabalhar cedo. Primeiro como caixeiro no comércio do pai, passando a vendedor de siri na região do Mangue. A partir da expulsão de casa aos 16 anos, viveria o resto da vida numa vida de biscateiro, literalmente, com as vírgulas que separam um emprego aqui outro ali, em seu curriculum. Acolhido pelas prostitutas do Mangue, a essa altura, com tão pouca idade, passou a viver como um bicho solto. Não se sabe se por conselho ou desavença com um policial, sai do Mangue e muda-se para a Lapa, quando passa a vender perfumes, ainda com uma passagem como garimpeiro em Minas Gerais. 
Pode-se dizer que antes dos 40 anos Antônio Fraga, tinha vivência que Jack Kerouac e Jean Genet em termos de uso e abuso da linguagem popular. Ao longo da vida, tenta a sorte em Goiás, mais tarde retorna ao Rio de Janeiro, como auxiliar de cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da rádio Vera-Cruz. E, imprecisamente entre os anos de 1959 e 1960, Antônio Fraga foi lanterninha de cinema no Cine Palácio da rua do Passeio.

A principal criação de Antônio Fraga foi mesmo a novela Desabrigo, escrita em 4 dias no final do ano de 1942 e publicada pela primeira vez em 1945. Uma curiosidade cerca esta novela. Na década de 1940, Fraga trabalhava como locutor na Rádio Vera Cruz. Sabendo da notícia que alguns intelectuais importantes, estavam publicando artigos na revista Cultura Política, publicação promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, indignou-se. Fez um discurso ao vivo, com muita ironia, afirmando que os intelectuais que escreveram seus artigos para a revista, estavam em estado de delírio, e que o maior índice de demência no Brasil, encontrava-se justamente entre os escritores.

Não se sabe se a transmissão tinha sido interrompida, mas o fato é que após o episódio impensado, Fraga se isolou por quatro dias no interior do Rio de Janeiro e escreveu Desabrigo.


O livro continha fortes críticas sociais, ousadias estéticas e afrontas aos beletristas. A primeira edição do livro teve uma tiragem de mil exemplares, publicado pela editora Macunaíma, editora de breve existência criada por Fraga e mais dois amigos, Antônio Olinto e Ernande Soares. Os três formaram o Grupo Malraux, organizado no começo de 1945, pra montar exposições de poesia, e a idéia de montar uma editora surgiu para que lançassem o livro de Fraga que a essa altura já tinha quase 30 anos. Alugaram uma pequena sala na Rua São José, 21 - no local em que antes funcionara o Instituto Superior de Preparatórios – e mandaram os originais a uma oficina quase artesanal no Centro do Rio de Janeiro.

Desabrigo tem 24 capítulos dispostos em três partes: Primeiro Round, Segundo Tempo e Terceiro Ato. É narrado em terceira pessoa, e apenas nas últimas páginas, sabe-se que o personagem, que se senta na máquina de escrever para narrar a estória, chama-se Evêmero, uma espécie de alter-ego de Fraga que anda pela Zona do Mangue com Desabrigo, Cobrinha e Miquimba, no bordel de Margô e no Café e Bilhares Flôr do Estácio. Aí estão, malandros, mendigos, esfomeados, bêbados, prostitutas e rufiões.  Uma curiosidade interessante é que o apelido de Antônio Fraga, era Cobrinha em suas andanças pelo Mangue. E por muito tempo, esta curiosidade levou críticos a o compararem com Proust - fato que Fraga sempre negou, por que malandro é malandro e mané é mané.

Cercado de gírias, num claro convite para que a voz coloquial urbana marginal rasgasse os limites da literatura, que Lima Barreto tinha começado a esgaçar, o livro conta com um glossário ao final, para auxiliar o leitor não-douto em malandragem a se perder de vez pelo emaranhado do enredo. Essa opção pela narrativa é direta, crua, cercada de palavrões saídos das bocas de personagens ordinários, e sem rebuscamentos, pode ferir os pruridos acadêmicos. Pode até soar como uma opção pela lei do menor esforço. Algum leitor desatento pode encará-la equivocadamente frágil, apressada, descompromissada, como uma tendência natural à simplificação já que não conta com pontos finais regulares ou mesmo as vírgulas exigidas na língua culta. Mas tudo isso são equívocos e conclusões apressadas. 

Equívoco 1: o personagem Evêmero é uma clara alusão alegórica ao escritor e hermeneuta grego do século IV a.C., pai de uma corrente hermenêutica conhecida como everemismo, segundo a qual personagens mitológicos, são seres humanos divinizados, tanto pelo medo como a admiração. Para o Evêmero, resgatado por Fraga, em sua História Sagrada, o Olimpo dos Deuses homéricos era o Mangue 

Equívoco 2: outro recurso utilizado em Desabrigo, são as citações estrangeiras, que aparecem de forma irônica e surreal ao leitor intelectualizado. Por exemplo, na conversa entre dois bêbados, em que um assume a personalidade de Anatole France e indica o bonde correto para outro bêbado a caminho de casa - quem nunca? Ou, um bêbado que fala com um poste que lhe responde em inglês - situação que podem sim acontecer! 

Equívoco 3: Na parte final da narrativa, Fraga interrompe abruptamente a estória, para incluir cinco tópicos que intitula Pontos de Vista. Nestes, cita o gramático francês Henri Bauche para defender sua linguagem popular, assim como Campos de Carvalho e Pirandello.  Evocando o escritor Azorín, Pio Baroja o filósofo Miguel Unamuno, defende sua postura estética, apoiado no “vasto grito do Ipiranga”, dado por estes “em prol da liberdade estética”. O que implica em pesquisa e método na elaboração intelectual e estética de suas posições.

Ou seja, para evitar qualquer equívocos, o malandro escreve seu livro em gírias, sem vírgulas, com minúsculas em princípio de frase, e com nomes próprios sem maiúsculas. Impertinente, cita em francês, italiano e espanhol, como se à guisa de um deus grego, inventasse um mundo de marginais e dissesse: Impertinente, uma vírgula! Malandragem, isso aqui é o Inferno, e aqui, desse pedaço cuido eu. Pra você me ler, eu não preciso ir onde você está. Você tem que baixa aqui nessa minha quebrada, entrar nos becos e tentar entender essa porra aqui.  

Antônio Fraga conviveu com boa parte da intelligentsia entre 1940 e 1960, frequentou encontros boêmios, tertúlias e assembleias literárias onde participavam Vinícius de Moraes, Lucio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade - que o comparou a Graciliano Ramos -, até pintores como José Pancetti, dentre outros. Nesse período chegou a ser editor do Jornal de Literatura em 1947, onde também escrevia  com o pseudônimo de seu alter-ego, Evêmero. 

Mas esse convívio, não fez de Fraga um deles. Nos anos 1960, enquanto Antônio Olinto já era adido cultural na África, Fraga, empurrado por dificuldades econômicas, já morava na Baixada Fluminense e a distância, não apenas física, tornou-o arredio e mais irônico. Assim como Lima Barreto recusou o convite de Sergio Buarque de Holanda para fazer parte dos Modernistas em 22, afirmando que a a Klaxon não passava de uma revista para vender automóveis, Antonio Fraga não foi menos cruel com movimentos de vanguarda, como o Concretismo, dos anos 1960. Não queria saber daquilo. Ainda que fosse uma espécie de mito da poesia marginal, em que orbitavam alguns poetas importantes da geração mimeógrafo, como Leila Míccolis e o roteirista Jose Louzeiro, ele não ia até eles. Se quizessem, que pegassem o trem no ramal de Japeri para ir encontrá-lo em Nova Iguaçu para participar de seus saraus literários. Ele já fazia muito em baixar  Austin e Comendador Soares, para encontrá-los. 

De fato, a produção de Fraga sempre foi irregular. Sabe-se que Desabrigo foi a única obra publicada em vida. Mas recentemente publicou-se, com a ajuda dos filhos e amigos, Desabrigo e Outros Trecos, que reúne a única obra já publicada de Fraga (Desabrigo) e 14 escritos inéditos (Outros Trecos). No total, são apenas 118 páginas, mas basta olhar a dedicatória para entender quem é que está falando. "Para mim mesmo, com muita estima", escreve Fraga para si mesmo.

Alguns contos, como O Louva-a-deus, apresentam semelhanças bem-humoradas com o enredo de Franz Kafka, sobre um inseto que devora tudo pela frente deixando intocadas apenas as igrejas. Em O Estofo dos Sonhos e O Galante do Jacaré, Antônio Fraga surpreende por não abusar mais da linguagem fragmentada e coloquial. Seus personagens já não são mais oniscientes e já não compartilham vivências apenas pessoais.

Seu primeiro emprego com carteira assinada, foi aos 69 anos, na Fundação LBA – Legião Brasileira de Assistência - por intermédio de "amigos importantes", que se sensibilizaram pela penúria em que o escritor se encontrava. A sinecura, ao final da vida, pouco valeu nos seus 8 anos seguintes.  Morreu em 1993, no município de Queimados, a mais de 50 quilômetros da capital, não totalmente esquecida sua fortuna crítica, mas pouquíssimo celebrado em vida.


WANDER PIROLI

 

Título: Wander Piroli
Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro 2022
 
Wander Piroli nasceu em 1931, em Belo Horizonte, e pode-se dizer que Piroli foi um desses mineiros radicais: nasceu e viveu a vida toda em Belo Horizonte. Dali tirou todos os seus contos. Sua mãe morreu quando tinha um ano, e acabou sendo criado, então, pela avó italiana Giovanna e pelo pai operário pintor de máquinas, na Lagoinha, um bairro que era reduto de famílias italianas. Bairro proletário, o Lagoinha também era o lar de marginais, bêbados, vagabundos e criminosos, arquétipos que habitaram a maioria de seus livros. Ao contrário de como Otto Lara Resende definia o típico mineiro, Wander Priroli não falava baixo nem cobrava juros altos. Cursou Direito na Universidade de Minas Gerais e chegou a trabalhar como advogado de causas trabalhistas, mas segundo ele, não tinha coragem de cobrar os honorários dos trabalhadores que defendia. Ainda durante a faculdade, participou de concursos literários em Belo Horizonte, chegando a vencer um deles em 1951 com o conto "O Troco", ganhando alguma fama nas redações dos jornais.

O trabalho em redações jornalísticas apareceu como uma forma de sustentar a família, mas se tornou uma das partes principais de sua vida. Trabalhou incansavelmente como repórter em dezenas de publicações mineiras entre jornais alternativos e da grande imprensa, como Estado de MinasSuplemento LiterárioÚltima HoraO Sol e Binômio. Aliás, como jornalista uma série de episódios folclóricos o cercam. Dizem que nunca faltava uma garrafa de agusrdente Claudionor debaixo da mesa. E que escrevia fora dos padrões jornalísticos: contava as coisas como as coisas realmente tinham acontecido, sem leads ou subleads. Era inimigo da objetividade e compunha matérias e títulos extraordinários como “Cada brasileiro nasce devendo sete salários mínimos”. Isso, em plena Ditadura.

Anos mais tarde, ficaria conhecido como um dos símbolos do boom dos contistas nos anos 1970. Os críticos o incluíram nessa chamada Geração de 1970 que logo cambalearia, como todas as categorizações do tipo. Entre os mortos e feridos dessa geração, alguns como Sergio Sant’Anna, Antônio Torres, Luiz Vilela, chegaram a sobreviver. Outros como João Antônio e o próprio Piroli, caíram em injusto anonimato. Estamos carecas de saber que cada caso é um caso, mas a opção pelo conto, a visão tosca do Mercado que prioriza a novela, mesmo que ruim à narrativas curtas, por considerarem o conto um gênero menor, e a própria necessidade de pagar as contas no fim do mês, dividindo o tempo entre a literatura e o jornalismo, aumentaram a pena de esquecimento desses malditos.

Piroli gostava de cachaça Claudionor, cigarro de palha, briga de galo, pescaria e roda de amigos. Alguns dizem que por isso tinha uma relação descompromissada com a literatura. Como se a lida do jornal, as contas a pagar, e dar de comer a quatro filhos, fosse tarefa fácil para um cidadão saído da Lagoinha.  Publicou seu primeiro livro A Mãe e o Filho da Mãe, aos 35 anos em 1966. E somente foi publicar o seguinte O Menino e o Pinto do Menino, 9 anos depois.

Só quase dez anos depois, o escritor publicaria O Menino e o Pinto do Menino, em 1975 e Os Rios Morrem de Sede, em 1976. Talvez seus trabalhos mais conhecidos, ambos infanto-juvenis, viraram sucesso de público ao propor, pela primeira vez, uma espécie de realismo para crianças.

Seus textos eram tomados por personagens vivendo vidas ordinárias, comuns. Eram os trabalhadores de sol a sol, os malandros, as prostitutas e os “náufragos da noite”, como caracterizava os tipos com que conviveu na infância e juventude. Foi um mestre em criar diálogos secos, diretos e cheios de sensibilidade - e diga-se de passagem, escritores brasileiros não criam diálogos convincentes. Em se tratando de livros infantis, não fez concessões nem ao mercado nem ao gosto da classe média. Quebrou cânones de uma literatura infantil bem-comportada de personagens anódinos, bruxas babacas, duendes chatos, capaz de servirem de modelos bem-comportados. Narrou o que nunca havia existido. Em seus livros infantis, por exemplo, o pai para, toma uma cachaça num botequim, e segue com o filho para casa, já meio cambaleante.

Em vida, Wander ainda publicou cerca de sete títulos, entre infantis, de crônica e contos, como A Máquina de Fazer Amor e Minha Bela Putana. Um tipo alegre, vivia sem chamar atenção, mesmo que corpulento, e que seus blusões largos parecerem já ter vindo com defeito de fábrica: sempre com dois ou três botões da gola para baixo, abertos. Era visto por seus contemporâneos como um Hemingway brasileiro, seja pelo modo de viver, seja pelo estilo seco dos textos. Aliás, crítica nunca chegou a um consenso se Wander Piroli era um João Antônio ou um Hemingway mineiro. Quando morreu, descobriu-se que o descompromissado Piroli tinha mais 18 livros inéditos.


LIMA BARRETO

 





Título: Lima Barreto

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

Filho da professora Amália Augusta Barreto e do tipógrafo da Imprensa Nacional João Henriques de Lima Barreto, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Nasceu numa sexta-feira 13. Mês de maio de 1881. A propósito, o mesmo ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, 7 anos antes da Lei Aurea. O bairro: Laranjeiras. A casa, na rua Ipiranga nº 18, não existe mais.

Aprendeu a ler em casa com a mãe, que mantinha um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa, no mesmo bairro das Laranjeiras. O menino Lima, assim como Machado de Assis, ficou orfão cedo. Com a morte da mãe, aos 7 anos, entrou numa escola pública, na rua do Rezende, passando pelo Liceu Popular Niteroiense - um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino da época, dirigido pelo educador inglês, Mr. William Cunditt. Os seus estudos eram, então, bancados pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho de batismo do escritor. Depois de prestar os exames de preparatórios no então Ginásio Nacional, nome que a República tentou colar no velho Colégio Pedro II, para se desfazer dos vultos do período Imperial, Lima Barreto ingressou na Escola Politécnica. O futuro parecia promissor. Dali, sairia engenheiro civil, de minas, industrial, mecânico ou agrônomo. Entretanto, estudou apenas até o terceiro ano. Não dava mais. Não havia maneira de fazê-lo aprovar numa disciplina de nome tão irônico quanto redundante, Mecânica Racional. Tinha sido reprovado diversas vezes - e isso, creiam-me, enche o saco de uma pessoa. 

Alguns outros fatores mais profundos faziam com que Lima Barreto não se concentrasse na Politécnica. O fato de ser o único aluno negro da turma, aliado ao baixo desempenho na Mecânica Racional, por dois anos seguidos, podem ter influenciado para o desânimo do rapaz. Mas, um episódio específico determinou um certo rumo que sua em sua vida iria tomar, a partir dali:  o pai enlouqueceu quando Lima Barreto tinha apenas 22 anos.

Assim, ele interrompeu os estudos, para encarregar-se da numerosa família, composta agora pelo pai e os irmãos mais novos. Para ganhar a vida, Lima Barreto trabalhou como professor particular e depois, com a abertura de vaga para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra, presta concurso e se classifica em segundo lugar, com uma diferença mínima de pontos para o primeiro colocado. Mesmo assim foi nomeado, começando a trabalhar no mesmo ano.

Nos primeiros anos como amanuense foi procedimentalmente humilde.  Não faltava, não chegada atrasado, e tratava a todos com deferência. As semelhanças biográficas do início de carreiras entre Machado e Lima, param por aqui. Sendo preterido mais de uma vez em promoções, foi ficando negligente e relapso. Nesse processo de transformação pessoal, virou um habitual nas rodas de café e de bares, frequentadas por Olavo Bilac e Emilio de Menezes. Foi provavelmente nestas rodas que descobriu os benefícios de uma boa Parati. 

O convívio dos cafés e botequins, que o romancista acabou frequentando dioturnamente, o tornaram conhecido, gerando contatos no meio jornalístico. Em 1905, Lima Barreto iniciou-se na vida literária com reportagens para o Correio da Manhã, preparando uma serie de textos sobre a derrubada do Morro do Castelo. Paralelamente, foi colaborando em jornais e revistas estudantis, como A Lanterna e A Quinzena Alegre, todos de curta duração. Mais tarde, em 1907, quando Mario Pederneiras fundou o Fon-Fon, chamou-o para a redação, mas ficou pouco tempo. Saiu para lançar com um grupo de amigos uma pequena revista, a Floreal, que apesar de quatro números apenas, mereceu do sempre meio mal-humorado José Verissimo, crítico exigente, uma surpreendentemente simpática acolhida. Inclusive, seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, começou a ser publicado na Floreal, em 1907, mas só veio aparecer em livro dois anos mais tarde, editado em Portugal. Seu biógrafo definitivo, Francisco de Assis Barbosa, chegou a entrevistar Antônio Noronha Santos, Manoel Ribeiro de Almeida, Mario Tibúrcio Gomes Carneiro, companheiros de Lima Barreto na Floreal, revelando-nos detalhes fundamentais de sua biografia.

Quando em 1909, finalmente, o romance foi editado em Portugal, Lima Barreto marcou sua presença no ambiente intelectual, para o bem e para o mal. O livro bancado com os seus limitados recursos próprios, seria venerado e odiado de maneira desproporcional. Por um lado, foi venerado pelos pares e por uma certa parcela da intelectualidade, mas o problema é que o ódio vinha de cima, principalmente da parte de Edmundo Bittencourt, o todo poderoso dono do jornal Correio da Manhã, que não gostou nada nada do tom de sátira que assemelhava o autoritário e fictício Ricardo Loberant, dono do jornal “O Globo”, com sua pessoa.   

O problema estaria resolvido se apenas as portas do Correio se fechassem. Caso acontecesse, poderia arrumar  emprego, por exemplo,  no jornal do desafeto do ex-chefe, certo?  Entretanto, Bittencourt pode ter intercedido para que outras portas se fechassem. E no fundo havia um outro problema. Lima foi além. Não se contentou apenas a atacar o ex-chefe. No rol de personagens caricatos, havia profissionais influentes e cheios de amigos, com amigos em outros jornais. Por exemplo, o escritor João do Rio era descrito como o  “efeminado” Raul Gusmão, uma “mistura de porco e símio, adiantado";  Pacheco Rabelo do jornal fictício, era Gil Vidal, redator-chefe do Correio da manhã; o advogado e futuro jurista Vicente Piragibe, filho de médico da academia imperial e neto de general do exército, era o Leoprace, de ascendência boa mas que não passava de um pobretão sem talento; o paranaense, da família de diplomatas e sacerdotes, Joâo Itiberê da Cunha era o personagem Floc, crítico literário que julgava originais nao pela qualidade, mas pelo sobrenome e ascendência do autor. Ou seja, mesmo que Ricardo Loberant, nem tivesse passado pelas páginas de Isaias Caminha, todos os outros ilustres desafetos influentes estavam ali retratados de forma caricata. Todos tratados como pessoas superficiais, toscas, antiéticas e interesseiras, desejosas de apenas obter benefícios próprios, aproveitando-se dos colegas.  E para piorar, eram facilmente identificáveis numa leitura rápida, à época.

O livro não trouxe nem sucesso, nem o mínimo suficiente para o sustento. Mas dois anos mais tarde publicou o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, nas páginas do Jornal do Commércio, mais uma vez, pagando do próprio bolso pelo espaço da publicação. A obra sairia publicada em livro apenas em 1915. O atraso pode ter sido causado por vários fatores, desde a falta de recursos econômicos, até as próprias bebedeiras que se tornavam cada vez mais constantes. Durante a gestão e revisão da obra, tornaram-se mais agudas as crises de alcoolismo e depressão do escritor.  Esmagado pela tragédia doméstica da infância, pelo peso dos cuidados com o pai enlouquecido, vivendo ao lado de seu quarto, oprimido pela angústia da responsabilidade no suporte financeiro da família, juntava-se a isso o peso do preconceito racial. A birita, a princípio, certamente foi um suporte na convivência alegre da boêmia, e ao mesmo tempo uma fuga dos problemas que o esperavam em casa. Entretanto, as alucinações decorrentes do excesso de álcool, que o levaram ao hospício, certamente não estavam nos planos.  

Independente da bebida, a saúde de Lima Barreto sempre foi frágil. Aos vinte e poucos anos tinha fraqueza generalizada em decorrência de um reumatismo de infância que iria acompanha-lo toda a vida.  Aos 29 anos contraíra pela segunda vez maleita, ou impaludismo, doença contraída por mosquitos, e que ataca os glóbulos vermelhos do sangue gerando febres terçãs fortíssimas. O abuso do álcool, certamente agravara esse quadro clínico de fraqueza. Como também agravaria a sua depressão e a crise de neurastenia, que o levou a ingressar pela primeira vez no Hospital Nacional de Alienados em 1914, local que tinha sido definido por ele como "frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais"

E veja bem, estamos no ano de 1914. Escravos tinham liberdade há menos de 26 anos. Mesmo para um escritor com relativa fama, a história pessoal parecia replicar o que as teorias raciais da época prognosticavam. A grosso modo, os defensores da intervenção clinica com reclusão nem sequer se esforçavam em frisar que não se escapava da origem racial, nem dos seus estigmas. As diversas teorias da degeneração social, afirmavam que indivíduos miscigenados carregavam o "vício" das duas raças que os formavam. Daí para se estabelecer uma relação direta entre raça, doença mental e alcoolismo, e que negros e mestiços estavam mais predispostos a ela, era plenamente consensual na teoria médica da época. Nesse sentido, considerar que indivíduos com essas características eram entendidos como intelectualmente inferiores, era uma conclusão nefasta que os eugenistas nem se esforçavam para justificá-la.

Nesse calvário de porres e não-ditos, o pingente Lima Barreto, aos trinta e um anos, já acumulava uma respeitável lista de problemas clínicos.  Com os sintomas da dependência alcoólica, passa a ter problemas cardíacos. Aos trinta e três anos, depressão e neurastenia. Aos trinta e cinco, anemia pronunciada. Aos trinta e sete, quebra a clavícula.  E nessa época tem o primeiro ataque da epilepsia -  que diga-se de passagem era tratada com choque e porrada. Considerado “inválido” para o serviço público, é aposentado, em dezembro de 1918. Em 1919, é internado pela segunda vez no Hospital Nacional de Alienados. A essa altura tinha cinco livros publicados:  Recordações do Escrivão Isaias Caminha, O Triste fim de Policarpo Quaresma, As aventuras do Dr. Bogoloff (publicado como folhetim), Numa e a Ninfa e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Sem dinheiro, sem conseguir lutar contra o vício, e fisicamente aparentando ter vinte anos mais, sua saúde se deteriorava rapidamente. Tido como louco e irascível por alguns, afastou-se de muitos, e muitos se afastaram dele.

Chovia no bairro de Todos os Santos, no dia de todos os santos. Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu supostamente de ataque cardíaco, no dia 1 de novembro de 1922, abraçado a uma revista. O velório na sala era interrompido pelo barulho da chuva e, de quando em quando, pelos gritos do pai, que, no quarto ao lado, morreria horas depois. Em volta do caixão de terceira, os irmãos e a gente modesta do subúrbio, que Lima conhecia dos botequins e das ruas enlameadas e tristes.

Ao contrário de Machado de Assis, teve um enterro muito simples acompanhado por gente humilde como ele, os amigos do subúrbio, mulambentos, cheirando a cachaça e com os pés descalços. Quis ser enterrado em Botafogo - que ele detestava e criticara a vida toda. Pouco mais de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, o piauiense Félix Pacheco, a essa altura já imortal da ABL, o diplomata Olegário e José Mariano - sendo que este pagou as despesas do enterro.

Morreu sem nenhuma repercussão nos jornais. Não deixou viúva. E ao contrário do que falam as más línguas sobre Machado de Assis, Lima Barreto nunca teve filhos. 

 


PAULO LEMINSKI

 


Título: Paulo Leminski

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Ponta seca em acrílico

Data: Janeiro 2022

 

 

PAULO LEMINSKI

Leminski é transparente. É exatamente isso que é visto e lido. Um maldito queridinho. Óculos, bigode, e peito aberto. Pouco de sorrisos. E com as poucas palavras de seus haicais desconstruía mundos e erguia imagens. Era músico, compositor, escritor, tradutor, crítico literário, e lutador de judô. Além disso, atuou profissionalmente como professor de história e redação em cursos preparatórios, também participou como diretor de criação e redator em algumas agências de publicidade. Como tradutor trabalhou com obras de autores como James Joyce, John Fante e Samuel Beckett.

Paulo Leminski Filho nasceu em agosto 1944. Se orgulhava de sua ascendência polonesa e africana, e assim como Snege era curitibano, poeta maldito profissional, e também amador.

Em 1958, aos quatorze anos, foi para o Mosteiro de São Bento em São Paulo estudar para ser padre, ou algo similar, e a experiência não foi das mais empolgantes, retornando um ano mais tarde para Curitiba e terminando seus estudos num colégio estadual. Anos mais tarde participou do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda em Belo Horizonte, onde conheceu Haroldo de Campos, amigo e parceiro em várias obras.

Com a também poetisa Alice Ruiz, casou-se em 1968. Recém casados, Leminski e Alice foram morar com a primeira mulher do poeta e seu namorado, em uma espécie de comunidade hippie, num apartamento em Curitiba.  Ficaram lá por mais de um ano, e só saíram com a chegada do primeiro filho. Miguel Ângelo, o primogênito, viria a falecer com dez anos de idade, vítima de um linfoma. E até recentemente, sabia-se que Leminski e Alice, casados por mais de 20 anos, também tiveram duas meninas, Áurea e Estrela Ruiz Leminski. Casado, com filho pequeno e contas a pagar, entre 1969 a 1970, Leminski decidiu morar no Rio de Janeiro retornando a Curitiba para se tornar diretor de criação e redator publicitário.

Detentor de uma poesia marcante, jogava com a linguagem usando trocadilhos, ditados populares e influência de haicais, além de abusar de gírias e palavrões. Estudioso da cultura japonesa, chegou a publicar uma biografia do poeta japonês Matsuo Bashô. Como ele mesmo se definia, considerava-se um “anarquista zen”, um “bandido que sabia latim”, um “canalha erudito”.

Leminski, como letrista, teve parceiras variadas com músicos de diversos matizes. Escreveu letras com Caetano Veloso, o grupo A Cor do Som, conviveu com Gilberto Gil, Moraes Moreira, Itamar Assunção, Jose Miguel Wisnik, dentre muitos outros. Apenas no fim da vida, 1987 e 1989 foi colunista do Jornal de Vanguarda na rede Bandeirantes de Televisão.

Pode-se dizer que a carreira começou nos anos de 1970, quando teve poemas e textos publicados em diversas revistas - como Corpo EstranhoMuda CódigoRaposa.  Leminski publicou o seu primeiro livro - o romance Catatau - em 1976. Também lançou algumas poesias na revista Invenção, do movimento concretista. A partir de então a sua produção literária seguiu de vento em popa. Mas nesse mesmo ano acontece um dos episódios mais obscuros de sua biografia.

Em 2001 foi lançada uma das mais completas biografia de Leminski, O Bandido Que Sabia Latim, do biógrafo Toninho Vaz. Sua esposa Alice Ruiz boicotara sua reedição, ainda que feita com auxílio das informações da própria Alice, e a ela dedicada. A viúva e as duas filhas se opunham à publicação da biografia de um Leminski real. Alcoólatra como o pai, mal asseado, dentes estragados, nu e constantemente atormentado pelo suicídio do irmão e pelas ameaças de separação de Alice. Além disso, a biografia revela os detalhes de um filho bastardo que Leminski chegou a registrar com a mãe, mas que misteriosamente, no ano de 1976 passou a se chamar Luciano da Costa.  

Como a vida imita a arte, talvez, não à toa, Leminski tenha escrito, em poema musicado para Itamar Assunção, “um homem com uma dor é muito mais elegante, como andando assim de lado, chegasse mais adiante.” Alma feita de dor e de poesia. 

Leminski disse
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

[…]

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra (Por favor, por favor)
Ela é tudo que me sobra (Sofrer vai ser a minha última obra)
Sofrer vai ser a minha última obra (Ela é tudo que me sobra)

 

A dor do agravamento de uma cirrose hepática que o acompanhou por anos cessou no 7 de junho de 1989.