Síndrome, segundo um dicionário sem vergonha que tenho em mãos, é uma reunião de sinais e sintomas que ocorrem em conjunto e que caracterizam uma doença ou uma perturbação. Alguns sintomas podem até causar espanto e inquietação, como os sinais que antescedem fome, gripe forte, tristeza, ciúme, sono, gozo, amor, só para citar alguns, pois nos fazem sentir mais vulneráveis, por nos nivelar por baixo.
Dois males vem me atacando desde meus vinte e poucos anos. São, nominalmente, primeiro o da insônia, e segundo, um muito pior, que me assola toda a vez que leio uma passagem exemplar de literatura, o da inveja. São sintomas, evidentemente, de algo mais profundo, já diria o Lacan .
Não deveria dizer que sempre senti uma certa admiração e ponta de inveja da frase perfeita, da passagem exemplar, da sabedoria e astúcia contida numa passagem, que certos escritores encontram como a um Graal. A esse mal, com os anos, se somou uma asfixiante sensação de que tudo que escrevo ou penso já foi dito por alguém. Não é nada, não é nada, isso paralisa, dá um tremendo mal-estar, e pode até influir nas inúmeras noites de insônia. O Harold Bloom chamou isso de angústia da influência, ou algo parecido, para exemplificar que tudo que se escreveu no século XX já estava impresso nos clássicos canônicos das eras passadas, desde antes da era cristã. Achei ótimo ele ter dito isto e menos mal ele tê-lo dito, mesmo sabendo que sua sacada não resolve em nada meu problema insolúvel.
Pelo menos, reconhecer e aprender a conviver com esses sintomas, que pode levar anos para ser detectado, já é meio caminho para se chegar a algum lugar. Mesmo que para uns, esse dia e esse lugar nunca cheguem.
O Rubem Fonseca, em seu romance “Diário de um Fescenino”, dá uma explicação para a paralização, e as inúmeras vozes que o autor pode assumir na narrativa, sem necessariamente ser ele quem fala. A Síndrome de Zuckerman, vale lembrar, é um mal que ataca tanto ao escritor como ao leitor no sentido de achar que aquilo que o personagem fala é erroneamente o que o autor pensa. Ontem, lendo a Wonder Boys, me deparei com uma passagem onde o protagonista Gray Tripp, que sofre de um bloqueio criativo, compara a seu livro inacabado, de mil seiscentas e tantas páginas, ao Ada de Nabokov, dizendo com certa arrogância que o leitor é ensinado a ler sua obra a medida que se interna nela. Quem diz isso é Grady Tripp e não Michael Chabon.
Em todo o caso a passagem do Rubão contempla todas essas inquetações.
“(...) Vila-Matas, o espanhol, fala da síndrome de Bartleby, um sintoma mórbido de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-os renunciar à literatura. Eu não me incomodaria de sofrer dessa doença que acomete tanto de meus colegas, fazendo-os desistir de escrever. Se sofresse tal enfermidade não seria vítima de uma síndrome ainda pior, que ataca os leitores: a de Zuckerman. É horrível sofrer os efeitos de uma doença que está no organismo dos outros. Fui o primeiro a dar um título a esse mal, que sempre atormentou os escribas. Zuckerman é um personagem de Philip Roth que decide escrever um livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa. Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações: Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da sua santa mãe, Zuckerman, você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo de ladrão; Zuckerman, você é um nojento, nunca pensei que fosse capaz de fazer aquelas coisas... Os leitores acreditavam que o personagem do livro era o alter ego do autor e que tudo que ele dizia no seu livro se aplicava a ele e aos seus amigos e parentes, era o seu universo. (Roth descreveu a doença mas, na verdade, sempre demonstrou que estava cagando para os que acreditavam ser ele o alter ego de seus personagens. Porém, são raros os escritores que pensam assim.) Todo leitor padece desse mal, mesmo aquele que tem como profissão a crítica literária. Alguns escritores fortalecem essa concepção, como Joseph Brodsky ao afirmar que a biografia de um escritor está nos seus livros, ou Hermann Hesse em seu delírio onfalópsico, ou Goethe com sua teses de que os livros são fragmentos de uma grande confissão. Se a minha biografia está apenas nos meus livros, considerados, como disse um crítico, um repertório imundo de depravações, perversões, degradações, imoralidades repugnantes, serei muito mal interpretado. A biografia de um escritor pode estar nos livros, mas não conforme a visão simplista dos zuckermanianos. Fernando Pessoa disse: o que eu sou é terem vendido a casa Isso é parte importante da biografia completa de Pessoa, terem vendido a casa. Ele era poeta, os poetas, esses grandes filósofos, falam verdades. Nós, ficcionistas, falamos verossimilhanças.
Escrevo sempre na primeira pessoa, o que facilita a visão zuckermaniana que fazem de mim. Os autores sempre procuraram maneiras de se esconder. Bakhtin fez essa demonstração no início do século XX, ao propor uma distinção entre textos monológicos, denominados pela voz mais ou menos oculta do autor, e textos dialógicos, diante dos quais o autor não toma partido. Muitos romancistas, principalmente os ficcionistas dos séculos XVIII e XIX, escreviam sempre na terceira pessoa e, quando queriam contar algo com personagens e situações “estranhas”, usavam truques como abrir o livro descrevendo uma reunião em determinado lugar, um clube, uma estalagem, um restaurante, uma casa, e nesse lugar um personagem, quase sempre identificado com uma inicial apenas, pede a palavra e relata a história. Ou seja, nem mesmo como narrador onisciente clássico o escritor queria estabelecer um vínculo entre ele e o personagem malcomportado. Passava a bola para outro personagem, que mesmo assim não falava na primeira pessoa, usava um derradeiro testa-de-ferro para contar a história. Choderlos de Laclos, ao publicar “Ligações Perigosas” (1782), deixara um alto posto no Exército francês para trabalhar com o poderoso duque de Orléans, o homem mais rico da França, primeiro príncipe de sangue, um liberal conhecido como “Felipe-Igualdade”. Porém Laclos, não obstante tivesse as costas quentes, cercou-se de cuidados. Seu livro — que ele esperava “fizesse escândalo e fosse comentado depois de sua morte” — começa com uma pseudo-advertência do editor: “Acreditamos que o autor, embora pareça haver procurado a verossimilhança, tenha-a destruído ele próprio, estouvadamente, pela época em que situou os acontecimentos a que deu publicidade. Efetivamente, muitos dos personagens que pôs em cena têm tão maus costumes que é improvável supor hajam vivido em nosso século, neste século de filosofia, em que as luzes por toda parte espalhadas, tornaram, como todos sabem, tão honestos os homens e tão modestas e reservadas as mulheres”. Laclos, não satisfeito em defender o texto desse romance epistolar, preserva-se também pessoalmente e acrescenta, agora num “prefácio do redator”: “Encarregado de organizar a correspondência, só pedi como paga a permissão para podar tudo o que me parecesse perfeitamente inútil; e procurei, com efeito, conservar tão-somente as cartas que se me afiguravam necessárias, tanto à inteligência dos acontecimentos como ao desenvolvimento dos personagens”. Essa, Laclos insiste em dizer, foi toda sua participação na obra. “Minha missão não ia além”. Ou seja, ele se distanciava do livro, os leitores chocados acreditariam que ele nada tinha a ver pessoalmente com o que fora dito.
Flaubert, em pleno século XIX, sabendo que o discurso indireto livre que usava para distanciar o autor das plavras e dos pensamentos do personagem não era suficiente — os especialistas afirmam, por exemplo, que a voz do Sénécal, de “Educação sentimental”, é a voz de Flaubert, inferência que ele não queria que fosse estabelecida —, criou este raciocínio astuto: “Madame Bovary c´est moi”; ele era aquela mulher adúltera e sonhadora da província, forçando-nos a estabelecer a conclusão lógica de que o seu personagem, como todos os outros, era uma criação da imaginação do autor, i.e., era o autor, não o seu alter ego, o seu substituto perfeito. Kierkegaard, que aliás assinou a maioria dos seus livros com pseudônimos, diz na abertura do “Diário de um sedutor” que aquele livro foi encontrado por acaso numa gaveta. Os leitores, assim, não suporiam que ele, Kierkegaard, que tanto prezava a pureza da sua alma, era o Johannes que escrevia aquelas cartas apaixonadas para Cordélia. Eu poderia dar dezenas de exemplos, mas não, esta elucubração já está longa demais. (...)”
O Michel Chabon fala de uma tal de Síndrome de Mal da Meia Noite. Esta ataca essencialemente ao escritor. Vou tentar uma tradução do que ele quis dizer....
“Quando fui aluno desse homem [o professor de literatura em Coxley] quando comecei a indagar-me se os literatos não sofrem de alguma variedade de desequilíbrio mental, desequlibrio que, pensando naquele trepidante balanço noturno de Albert Vetch [escritor, professor de literatura inglesa em Coxley, que vivia no hotel de propriedade de sua avó na Pensilvânia], denominei de O Mal da Meia-Noite. Este Mal é uma insônia de origem emocional. O doente se sente a todo o momento – ainda que somente trabalhe pelas manhãs e pelas tardes – como se estivesse fechado num quarto asfixiante, com as janelas abertas e um céu cheio de estrelas e aviões de carreira e escutando o ruido de uma ambulância, o zumbido de uma mosca encurralada numa garrafa vazia, enquanto todos os vizinhos dormem. Este é um motivo pelo qual, na minha opinião, os escritores – tal como aqueles que sofrem de insônia – são tão propensos a sofrer acidentes, se sentem obsessivamente corroídos por uma espécie de câncer do azar, da má sorte e das oportunidades perdidas, tendo por isso tanta disposição a dar mil voltas nas coisas, a divagar, sendo incapazes de deixar de pensar em algo que ronde a cabeça por mais que lutem contra isso.”
Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
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