Náufragos do escolho

Náufragos do escolho



 

 

RESENHA

Rogido, Francisco. Náufragos do escolho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023. 192 pp.

 

Há uma novidade de destaque no díspar universo da literatura brasileira contemporânea. A capa neo-surrealista deste livro de contos – tão bela quanto sinistra – tem um piano de calda pairando nas nuvens sobre uma obscura cena de cidade com um cinema ao canto. As pernas do instrumento estão derretendo, e sobre ele se mescla uma imagem de caveiras e bebês mergulhando de cabeça para baixo numa piscina que cai para dentro do piano. A faceta de estranhamento em Náufragos do escolho é reforçada pela epígrafe do volume. Assinada pelo filósofo oitocentista alemão Friedrich Nietzsche, declara: “Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo.”

De fato, pode-se dizer que já no título e subtítulo de seu livro de estreia, Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais), Francisco Rogido revela dois dos elementos essenciais dessa coletânea. Há, pois, uma relativa, mas inegável, estranheza na escolha do termo “escolho.” Vocábulo um tanto raro na linguagem do dia-a-dia no português do Brasil, ele é derivado de scoglio, em italiano, que significa “espinho”, ou, figurativamente, “dificuldade”, “obstáculo”, “perigo” ou “risco” para os barcos no mar.

Também vemos humor no inusitado catálogo de elementos desiguais que descrevem, entre parênteses, o conteúdo da obra. Exatamente quais seriam, por exemplo, os 98 “infernos possíveis” (talvez haja mais que isso), ou os 63 takes cinematográficos dos contos (será que há tantos)? Tais números talvez não importem, na perspectiva subjetiva de quem lê a obra. Com certeza dialogando com a sétima arte – em particular, nas elaboradas semelhanças estruturais, dialogais, rítmicas e visuais entre filme e literatura – os contos de Rogido proporcionam algum lirismo e alguma crença na bondade humana. É o que se percebe no conto “A falta agrava a tristeza da noite”, onde amor e sexo surgem subitamente entre personagens idosos que se (des)conhecem num hospital sob condições extremamente adversas, inclusive a proximidade da morte (159-165).

No todo do volume, entretanto, prevalecem as acentuadas doses de angústia, frustração, pessimismo, violência, horror e dor, efeitos quase sempre atenuados por ironia, humor, poesia, e, às vezes, por um sentimentalismo muito discreto. Um exemplo é “Lá não existem flores” (158). Apesar de ser um dos contos mais curtos da coletânea, de apenas meia-página, sua linguagem veloz nos leva muito longe no sentido de questionar a injustiça e o vazio existencial que assolam as vidas de tantos pessoas sem muito tempo para o lazer ou para o convívio com familiares e amigos, pois se ocupam de longas jornadas diárias de trabalho e vivem em bairros muito afastados, o que exige que acordem bem cedo (pelas quatro da manhã, como no caso do protagonista anônimo). Esse vendedor de flores se entristece por nunca ter sido capaz de participar dos eventos e ambientes alegres e festivos do tipo aonde vão diariamente as flores que vende. Entretanto, o que mais o inquieta não é essa exclusão ou a falta de filhos. É uma “ideia fixa”, que na sua idade avançada o faz questionar: “quem iria levar flores a seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?” (158).

Magistralmente desenvolvidas nos limites e poderes da palavra escrita em seus múltiplos e variantes takes e tons, as narrativas de Rogido tanto nos trazem consternação e vergonha da espécie humana quanto nos induzem ao carinho e à compaixão por centenas de personagens que, na sua maioria, são indivíduos pobres, como operários ou pessoas de classe média baixa, cujas existências, sentimentos mais profundos e visões de mundo pouco aparecem nos romances, revistas ou telenovelas. Na maioria das vezes, eles são os indivíduos (des)retratados nas reportagens de crime nos jornais e telejornais. Com certeza, dezenas dos personagens de Náufragos do escolho sofrem com as limitações e contradições de suas circunstâncias cognitivas, existenciais, intelectuais e socioeconômicas. Como cada um de nós, porém, são todos seres humanos e possuem um enorme potencial para inesperada superação e imprevista conformidade com os nossos próprios escolhos, inclusive aqueles que de repente podem empurrar quaisquer pessoas rumo ao delito, mesquinhez ou maldade, ou engendrar uma lição transformadora de empatia, generosidade, e perdão.

A inclusão de crimes na literatura é prática muito mais antiga, naturalmente, mas não há como não ver semelhanças entre as narrativas de Rogido e a abordagem de temas afins em Machado de Assis, especialmente onde o autor de Dom Casmurro explora os mistérios e defeitos morais da mente humana e as camadas invisíveis, capciosas, ou intersecionais do real. Por outro lado, o macabro e o imponderável no submundo dos contos de Rubem Fonseca, a linguagem concisa e popular em Dalton Trevisan, assim como o humor sardônico, sutil e sofisticado em Luis Fernando Verissimo, também têm eco em Rogido.

Em Náufragos do escolho há ainda outras semelhanças com mais vozes de relevo na literatura brasileira. Entre essas marcas, observa-se em Rogido a poesia do cotidiano e das reflexões filosóficas de Ana Cristina Cesar, a coragem estética e a destreza narratológica de Cassandra Rios ao questionar as sombras e os mitos da sexualidade humana (seja ela heteronormativa ou anticonvencional), e a determinação de Márcia Denser para evocar ideologias de gênero e assim contribuir para a emancipação das mulheres. Podemos até mesmo suspeitar da atuação dos princípios conceituais e metodológicos similares aos de Clarice Lispector, aqueles por trás da elaboração e utilização do formato fragmento, que, aliás, nem em Rogido e nem Lispector é exatamente “fragmento”, por se fazer complexo e autossustentável, apesar de seu minimalismo.

Muitas vezes narradas em primeira-pessoa por homens ou mulheres, ou ocasionalmente um animal, mesmo que já defunto, como no desconcertante conto “5x7” (11-14), as histórias de Rogido realmente nos colocam sob a pele de centenas de seres. Eles nos iluminam através das suas perspectivas sobre os desafios do viver e suas necessárias ações práticas, às vezes até mesmo diante de momentos-tabus, como o de quando lidar com o corpo de um (talvez) parente morto. Para ilustrar, vale recordar o comportamento de um cliente de Mateus Araripe, um autodeclarado “esteticista” funerário.

Desde o início do diálogo ligeiro, sem contextualização, que abre o primeiro conto da coletânea, intitulado “Mateus,” perpassamos um estranho humor através de fatos repugnantes e possíveis decisões oportunistas. “O senhor é parente?”, pergunta o esteticista. Evasivo, responde o cliente: “Pode ser” (9). Mateus faz saber: “Vai vazar... [...] Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam” (9). Após os dois acertarem o preço do serviço (800 reais incluindo a maquiagem do defunto, a venda da roupa, do terço, etc.), o cliente não hesita: “Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta” (10). O esteticista se mostra surpreso: “Que é isso, doutor... Que horror... Eu pensei que o senhor...” (10). O cliente não cede: “Pensei... pensei... o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro” (10). Logo arremata: “quem pensa demais acaba se enganando... Não esqueça a aliança, e os dentes de ouro, eu os quero também” (10).

 

Dário Borim Jr.. É tradutor, fotógrafo e professor de Literatura Brasileira na University of Massachusetts Dartmouth. 


Trilogía Sucia de La Habana

Trechos de Trilogía Sucia de La Habana. Pedro Juan Gutiérrez

Conto:O NATAL DE 94

No domingo, 25 de dezembro, de manhã cedo. Angelito subiu ao telhado. Ele tinha mais ou menos uns sessenta anos e morava num apartamento do quarto andar. Ele com muita parcimônia pediu permissão para verificar a caixa d´água. Mais tarde, eu percebi que confundi a tristeza com a parcimônia. Disse que há dias não entrava água na sua casa. Deixei que ele subisse até o reservatórios e, sem perder tempo, ele se jogou para a rua. Quarenta e cinco metros de voo livre.
[…]

Durante anos, Angelito sempre esteve bêbado. Toda a família se dispersou: uma filha fez de tudo até conseguir se casar, e com uma esposa voluntáriosa foi viver na cidade de Segóvia. O outro subiu numa jangada com destino a Miami. A esposa deste, ao se encontrar sem marido e o filho adolescente nas costas, renasceu como a viúva alegre e começou a cantar e dançar em um grupo de salsa, até que por um golpe de sorte de repente se viu no México fazendo um programa de rárdio. […]

Depois a mulher morreu de um infarte no coração e o velho vivia sozinho com o neto Eduardo, meu amigo. […]

Eduardo foi à Poliícia. Fizeram a papelada. Retornou ao meio dia e foi me encontrar na praça. Eu tinha um carregamento bom de àlcool escondido no meu quarto. E ele estava alegre. - Vamos fazer um tremendo negócio hoje à noite. - Por que? Você não está de luto pelo teu avô? - Não, não. Já terminei. O pessoal do IML me avisa depois de não sei que lá. Tu ainda tens aquele àlcool?

 

Conto:

DUDAS, MUCHAS DUDAS

Aliás, fiz uma conta e nos últimos cinco anos tive relações sexuais com vinte e duas mulheres. Essa média não é ideal para um homem de 45 anos. Não me arrependo, mas fiquei preocupado. Não por causa da interioridade. arrepender-se da AIDS. Eu odiaria me condenar à morte precoce por gozar num buraco errado.

Bem, deixando de lado as promiscuidades, eu tive que continuar. Aguentar. Endurecido, é claro. As pessoas pensavam que eu estava crescendo. Mas não. Eu estava apenas tentando ficar cada vez mais forte e não deixar que eles me manipulassem. Cada um que se foda sozinho. Tive que dosar muito bem o pouco de amor que eu tinha dentro de mim para evitar que o tanque chegasse a zero e o motor parasse. Não perdi a esperança de recarregar em algum lugar. Eu era um utópico de merda.  Muito fodido mas sonhando em encontrar algo lindo dentro de mim que mais uma vez enchesse meu tanque até a borda para repetir tudo e voltar a ser aquele cara generoso e bom amante. Você é idiota?, às vezes eu me perguntava. Em outras ocasiões, mais tranquilo, dizia a mim mesmo: sim, é possível.
[…]

Ele não consegue lidar com sua dignidade, sob pena de morrer de fome. “Se ele me dá um pouco, é bom e eu o amo”, só isso. As mulheres em geral entendem isso desde muito jovens e aceitam. Mas para nós  homens isso fica um pouco mais complicados com a rebeldia, vai contra os nossos princípios e tudo mais. No fim das contas só entendemos isso um pouco mais tarde.

Bem, esse instinto de autopreservação bem desenvolvido é uma das faces da pobreza. Mas a pobreza tem muitas faces. Talvez a sua face mais visível seja a de que nos despoja da grandeza de espírito. Ou pelo menos a amplitude de espírito. Isso transforma você em um cara mau, miserável e calculista. A única necessidade é sobreviver. E o resto vai tudo para o inferno a generosidade, a solidariedade, a gentileza e o pacifismo.

No meio de tantas dúvidas, chegou Alejandro, um velho amigo. Meio bêbado e feliz. Naquele dia lhe contaram que em um sorteio ele ganhou um visto de residência nos EUA. O cara estava exultante. Todos as suas amigas queriam se casar com ele. Ofereciam-lhe dinheiro..

O DECLINIO DO ANJO




O DECLINIO DO ANJO é um poderoso romance do escritor Yukio Mishima. Um não, o último. É a quarta e última obra da tetralogia O Mar da Fertilidade, completada pelos romances Neve de Primavera, Cavalos em Fuga e O Templo do Amanhecer – diga-se de passagem não li, ainda. A estória de O Declínio do Anjo começa começa em maio de 1970, quando o ex-juiz aposentado Shigekuni Honda, depois da morte de sua esposa Rié, conhece um adolescente órfão de 16 anos chamado Tōru Yasunaga.

Toru, é uma espécie de jovem oficial controlador de tráfego portuário, na totalidade da vastidão abandonada da península de Izu, na Zona Portuária de Miho. O rapaz é encarregado de ajudar as embarcações de alto calado entrar e cruzar as zonas de atraque na Baía de Suruga. O trampo foi conseguido graças a um tio pobre que após a morte do pai, um comandante de cargueiro que morrera no mar, e da mãe, que falecera pouco depois sem mais detalhes, o menino vai fazer um curso técnico de formação profissional, tornando-se técnico de terceira categoria, e sendo contratado pelo escritório de sinalização de Teikoku.

O camarada vive a vidinha dele modorrenta, sem planos, objetivos, nem grande sonhos. Caladão, com pouquíssimos amigos, ganha pouco, mas o suficiente para o tabaco e o aluguel do quartinho em que vive. Dos amigos, uma das poucas que o visita constantemente é Kinue, uma moça megalomaníaca com traços sérios de uma visível esquizofrenia, que se considera uma rainha de beleza, quando na verdade, a moça, supostamente filha de um rico homem de terras, teve uma relação amorosa rompida traumaticamente, e ingressada num hospital psiquiátrico à força. Na vizinhança portuária, rude e maledicente, Toru era o único que não desprezava a moça, mas não por bondade. Ele já apresentava traços de uma frieza e afastamento que iriam se comprovar mais à frente na estória. Para ele, ela era uma mulher feia e louca, cinco anos mais velha e com um sobrepeso patológico. Ela era apenas uma espécie de companheira de cárcere naquela torres de controle. Apenas isso.

Por sua vez, Honda, após a morte de sua esposa Rie, encontrou companhia em Keiko, uma lésbica solteira e como mostra-se no decorrer da trama, vital em sua vida, cuja paixão é o estudo da cultura japonesa. O juiz é ium homem rico e sem filhos, frequentador das festas e recepções do andar de cima da sociedade japonesa. Quando conhece Toru, no retorno de uma roadtrip insólita, acredita piamente  ter descoberto nele a reencarnação do seu amigo de infância Kiyoaki Matsugae e adota-o como seu herdeiro. Entretanto, os antescedentes a esta viagem são envoltos numa série de mistérios, acasos e sonhos. Presságios que Honda vem sentindo ao ler O Manto de Plumas, uma das primeiras e tradicionalíssimas fábulas budistas indianas, ligadas ao precieto da honestidade.  A história se passa numa paisagem encantadora, ao pé do monte Fuji – a propósito, da península de Izu, na Zona Portuária de Miho é possível avistar ao monte Fuji. Na lenda, Hakuryo, um pobre pescador, encontra um  manto tecido com penas coloridas. Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado, certo? Errado. Hakuryo leva o manto consigo e quer vendê-lo no mercado e conseguir algum din din. Porém, na mesma noite, aparece-lhe em sonho um Tennin (um dos 33 anjos do budismo) sob forma de uma meio menina, meio mulher muito bela, tentando convencê-lo de que o manto era seu, e que sem ele seria impossível voltar ao céu, implorando para que ele o devolvesse. O pescador, encantado com sua beleza da menina, diz não ter sido ele quem roubou o vestido e pede que o anjo deite-se com ele. Após acordar, mergulha em profundas reflexões morais sobre a merda que ele fez ao violar um menina.  Percebe quão grave foi seu erro, suplicando que encontrasse a criatura novamente para se redimir. Ele até a praia, onde encontra uma menina em lágrimas, para quem ele presenteia o manto. Então,em meio a um espetáculo de dança acontece um milagre. Em frente aos seus olhos, o anjo sobe lentamente aos céus. De tanto ler a estória, Honda convence-se de que no sonho de Hakuryo, os  cinco sinais da morte aparecem quando as flores do manto murcham, o manto fica sujo, as axilas passam a cheirar mal, os homens perdem a noção de si mesmos e são abandonados pela donzela cheia de jóias.

Em meio a essas leituras, sonhos e crenças, e a  série de sonhos que Honda vinha tendo com anjos a amiga Keiko, estudiosa da a cultura japonesa, num desses jantares frequentados por gente fina. Elegante e sincera, ela pede que Honda a leve numa viagem de carro a Miho-no-Matsubara, justamente a região onde Toru mora.

Nesta viagem acontece o primeiro encontro entre Honda e Toru. A quantidade de eventos e os ditos e não ditos, desse encontro, tornam o resto da estória sensacional. Kinue oferece uma flor, a Toru, instante antes da entrada de Honda no posto de observação de Toru, os presságios de doença de Keiko e todos as falsas suposições criadas na cabeça de Honda, vão dar o tom ao processo de convencimento do rapaz em ser adotado por Honda.  Após retornar de uma viagem à Europa, Honda reflete e decide adotar Tōru por acreditar ser a terceira reencarnação de seu amigo de infância Kiyoaki Matsugae. Embora o ex-juiz comente suas impressões com Keiko, a mulher não dá muita credibilidade à história, embora acabe apoiando a decisão da Honda. A partir daí, Honda educa-o e observa-o, interrogando-se sobre se também a vida de Toru irá ser abrupta e precocemente interrompida. Ele adota-o com a intenção, dada em seus presságios e sonhos, de uma interrupção abrupta de sua vida! Concluída a adoção, Tōru muda-se para a casa de Honda, onde recebe treinamento em boas maneiras e habilidades sociais de diversos tutores. treinamento em boas maneiras e habilidades sociais.

Na primavera de 1972, um casal de amigos de Honda tenta arranjar um casamento entre Tōru e sua filha Momoko Hamanaka. Apesar de fazerem uma viagem conjunta para Shimoda, os planos não dão certo, já que o jovem é hostil a Momoko. Na verdade, o jovem, para despertar o ciúme de Momoko, decide iniciar um namoro com Nagisa, uma jovem de 25 anos com quem mantém relações sexuais. Diante da raiva de Momoko, Tōru a convence a enviar uma carta a Nagisa para encorajar a separação. Na carta, cujo conteúdo é indicado pelo jovem, Momoko explica a Nagisa que ela deve romper com Tōru para que ela possa se casar com ele, já que sua família está com dificuldades financeiras e que o casamento arranjado seria a solução para seus problemas financeiros.  Antes que Nagisa possa ler a carta, Tōru a intercepta e a envia a  Honda, com o detalhe da perversidade de um corvo morto junto à carta. Isso marca o fim de seu namoro com Momoko e, em outubro de 1973, é revelado que Honda descobriu o ardil usado por seu filho adotivo.

Pouco depois, o rapaz terminar o ensino médio e é aceito na universidade, Tōru atinge a maioridade. Ele se torna uma pessoa violenta  e intimidadora dentro da mansão com Honda, para conseguir o que quer a todo momento, ele começa a gastar dinheiro de forma descontrolada e a abusar dos empregados e principalmente das empregadas. E nesse momento, o plot tem uma nova torção. Toru sabia que o velho era dado a excentricidades, e que afastara-se de amigos e até mesmo parentes por achar que estes só queriam seu dinheiro. Ou seja, Honda não tinha aliados por perto dispostos, em caso de derrocada, a sentirem compaixão do velho juiz. Em 3 de setembro de 1974, Tōru descobre que Honda era na verdade um voyeur,  espionando saliências e putarias de casais em meio ao lescolesco nos parques da cidade. De posse da informação, a divulga na imprensa com o objetivo de declarar incapacitado o ex-juiz e tornar-se único curador da fortuna do velho.  

No final do ano, já com plenos poderes na casa, na fortuna e fazendo o que quer, o jovem vai a uma festa de Natal organizada por Keiko onde acaba por ser o único convidado. Keiko revela as intenções de Honda em adotá-lo, avisando que, em suas reencarnações anteriores, o jovem morreu quando completou 19 anos, o que acontecerá em 1975. Keiko avisa que, se isso não acontecer, Tōru não será a reencarnação que Honda esperava. No fundo o que Keiko argumenta é que Honda foi movido por motivos nobres ao adotar o rapaz, já que sendo a reencarnação de Kiyoaki Matsugae, e entregue a sorte naquele posto de observação marítimo, om destino o mataria aos vinte anos. Chocado, sem saber que ela tinha a informação e o controle visual do que acontecia na mansão, o jovem, poucos dias depois, tentará suicídio ingerindo metanol, mas sobrevive com sequelas de cegueira, descobre que Keiko o traiu e se refugiando-se na velha amiga, a doidinha Kinue. Ele que sempre acreditou na sorte, passou a entender que não existem eleitos, vai morar numa espécie de casa do caseiro da mansão, sendo desprezado por todos, inclusive os empregados da casa. Por fim, já de posse de sua capacidade de executar atividades e realizar atos da vida civil, Honda acabará por chegar à conclusão de que Tōru não era, de fato, a reencarnação de Kiyoaki.  Após a visita a um templo budista, sob a liderança de Satoko, uma abasdessa,  tem a revelação durante uma conversa que ninguém chamado Kiyoaki Matsugae passou por lá, nunca.  

Mesmo com algumas passagens dando aquela resvalada no novelão, o desfecho dramático de O Declínio do Anjo torna este livro, um livraço. Amarra  os temas da decadência, corrupção do indivíduo, o declínio dos valores tradicionais japoneses, a essência da filosofia budista e a visão apocalíptica do mundo moderno.

Pouco depois de escrever as últimas linhas deste romance, Mishima suicidou-se, praticando seppuku. Os motivos do suicídio, e da sua angústia com o fim das ilusões, da falta de reconecimento para o Nobel, suas  filiações ideológicas de direita  e a admiração por movimentos proto-fascistas, são um capítulo à parte. Melhor, bem melhor tampar o nariz e ler suas histórias que sua biografia mal cheirosa. 

Música do dia. Ando de Bando. Alvaro Lancellotti. 


Nota . Fato literário interessante é que Camilo Castelo Branco escreveu um livro de título homônimo,  Queda de um Anjo, centrado na história de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, um fidaldo minhoto, conservador e defensor da moral e dos bons costumes, que aos ser eleito apra a Assembléia da República, vai para Lisboa, passa a se perder em meio aos encantos da vida da Capital, contrária à moral do Portugal rural e profundo. Calisto acabou por abandonar a vida casta que praticava e que "pregava" aos seus pares e passa a encontrar personagens como a mulher adúltera, ou o deputado corrupto, o malandro urbano... Ao contrário de Mishima, Castelo Branco avacalha com todos os valores... o que é muito bom. 

Amores Encubados

 



Godofredo de Oliveira Neto – Amores Exilados – Editora Record. 239 páginas. 2011.
Amores Exilados é o título do livro décimo segundo livro de Godofredo de Oliveira Neto. Tecnicamente, o livro já havia sido publicado em 1997, numa espécie de livro avant la lettre sob o nome de Pedaço de Santo, mas o autor revisou boa parte do triângulo amoroso em questão e o transformou neste novo artefato literário. Paulo Mendes Campos disse um dia que “por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba. Este novo livro fala, como o próprio título enuncia, do exílio e do amor no plural, e de como o amor acaba, quando acaba. Assim como as saudades e a memória, que se não devidamente preservadas, também morrem aos poucos, Godofredo de Oliveira traça uma urdidura que, entre intrigas e enganos, carregada de tensão amorosa, militância política e a própria desconfiança patológica dos envolvidos nos movimentos revolucionários, leva ao limite o horizonte resolutivo das vidas clandestinas envolvidas.
A estória se centra no triângulo amoroso entre a francesa Muriel Sandrine Charlotte Leroux, o catarinense Fábio e seu companheiro de militância, o baiano Lázaro da Costa Costa, ambos exilados em Paris nos anos de chumbo - fazendo parte da mesma organização guerrilheira, a Aliança Socialista Libertadora. Os dois brasileiros vivem na clandestinidade e, exilados em Paris, fazem de tudo para se manterem longe dos problemas políticos internos do país e principalmente longe de problemas com a imigração francesa. Antes como imigrantes a exilados, na solidariedade forjada fora, recriam sua lógica de inserção e sociabilidades tentando participar do maior número de associações e grupos de debates possíveis, frequentando as reuniões com a comunidade brasileira de Paris e associações francesas na Maison de l'Amérique Latine, na Maison du Brésil da Cidade Universitária e na Mutualité. Era como se o exílio implicasse numa forma fatal de solidão e alienação e o reverso disso fosse a socialização. Uma sensação útil, verdadeira e válida em que por isso mesmo fosse tão importante estar unido ao amálgama dos estrangeiros exilados numa espécie de rede. Nessas redes de solidariedade discute-se política, arte, cultura, mas mais que isso, é onde os imigrantes aprendem sobre si próprios, dividindo perrengues e soluções, tais como conseguir um trabalho ou tal almejado estatuto de refugiado, afastando o fantasma do carimbo de indocumentando e evitando assim a deportação. Aprendem mesmo, por meios mais prosaicos, por onde manter contato com o Brasil usando telefone público em Denfer-Rochereau, que funcionava sem ficha, direto, de graça – tal como o mítico orelhão da Telerj, na Praça Tiradentes no final dos anos 1980. No orelhão de Denfer-Rochereau preço era sempre alto, pois o risco de ter as conversas gravadas pelos serviços de informação da França era sempre um medo a ser considerado.
O exílio, aliás, é um capítulo à parte: A solidão em alguns, a estranha alegria em outros, a angústia na maioria. O universo dos exilados era esse. A insegurança psicológica ou levava a abraçar com exagerado ardor o país do exílio ou a abominá-lo.” Outro, é o amor, ou o que se pensa de que é feito o amor. Godofredo, lá pelas tantas diz, Amar no exílio potencializa a sensibilidade” para o bem e para o mal, como fica claro no turbilhão obsessivo em que Fábio embraca na paixão por Muriel, que tal como uma espécie de Capitu, negocia de maneira sutil com as paixões de ambos, Lázaro e o próprio Fábio. No melhor estilo da dúvida deixada por Machado de Assis, Godofredo conversa bem com essa tradição literária “…Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu…. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca….” E isso fica claro numa das discussões entre Fábio e Muriel, antes da partida definitiva desta: Muriel fitava o companheiro. Parecia que ela não piscava; mais ainda parecia que as palavras diziam uma verdade, os olhos outra. Fábio escolhesse entre o verbo combinado, decorado, imitado e o cromatismo rebelde, livre, desconhecido.”


Fica evidenciado, assim, que para os dois brasileiros, mesmo apaixonados, ambos encaram de maneira distinta a solitude e a parceria, nas suas mais intimas interseções e tangências. Os enquadramentos do que é o amor, e de como ele vai terminando, tremulam e se desfocam de maneira distinta nas percepções do baiano e do catarinense. Lázaro o encara como algo fluido, na cabeça de Fábio como uma conquista onde a fidelidade amorosa é uma desesperada elipse que se opõe à realização da paixão. Os motivos são muitos. O ciúme, a parnóia, o abuso de tranquilizantes, as memórias traumáticas da tortura e das ações guerrilheiras das expropriações a bancos – por vezes, com desfechos trágicos – sobrepõe-se e atravessam o tempo todo a memória e as ações de Fábio. Outra coisa que não ajuda nada é a presença constante de Lazaro, que faz com que Fabio se sinta paranoicamente ameaçado e traído. Raiva, ódio e ira passam a se manifestar, borrando o equilíbrio do triângulo – que para Muriel e Lázaro era algo aparentemente natural. Ou seja, Eros, o propulsor da vida, dá lugar a Tânatos, sinonímia de ódio e agressividade, e todo o coletivo de significados onde pulsa o sentido de morte como fim. Dessa maneira, os amantes se deparam com a impossibilidade da posse real do ser amado e optam pela morte, pela perda, ou qualquer outra coisa. E é assim que Lázaro, o dissidente, o amigo de ala, o ex-companheiro de Muriel está lá o tempo todo. Pelo menos nos pensamentos de Fábio. Tá lá no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no retorcido do croissant, no disco do Geraldo Vandré presenteado pelo baiano. O baiano está em todo o canto, e o pior é que o baiano é um dos melhores amigos de Fábio.
O inferno na cabeça de um Fábio atormentado pelo seu passado recente de tortura, não estanca só com a prensença de Lázaro. Para piorar o baiano chama-a de Melusina e conhece alguns de seus segredos, sabe por exemplo, um pouco da difícil história de infância da francesa em Saint Bonnet de Salers no Cantal, perto de Aurillac. A mãe tinha matado o marido, quando a garota tinha sete anos. O pai de Muriel era na verdade um marinheiro grego, foragido de uma cadeia e que na fuga passou uma noite na casa do casal. Nasceu Muriel. O resto é a história que cruza o caminho do catarinense e do baiano, fazendo-os dividir a militência e as atenções da mesma mulher. Nesse contexto não teria como o ressentimento e as desconfiança de Fábio parasse de crescer, em proporções distorcidas.
No decorrer da leitura, não dá para deixar de associar, mais de uma vez, nossa Melusina com a Jeanne Moreau no filme de Truffaut, Jules et Jim, que o português chamou de Uma mulher para dois. Guardadas as proporções, a primeira metade do filme volta à memória quando a personagem Catharine, se une a Jules e depois da guerra, onde Jim e Jules lutam em campos opostos, acaba por se reaproximar de Jim. Algumas cenas do filme ficam vívidas no decorrer das linhas de Ameores Exilados. Mas as semelhanças param ai.
Godofredo constrói os personagens não em contradições, mas por descrições estanques, tornando precário entender mais de cada um, a não ser pelo que é dado pelo narrador em terceira pessoa. Talvez essa fosse uma das entratégias do autor, já que eram todos exilados e estranhos para eles mesmos. Até mesmo Muriel que fugia de seu passado, não deixava de ser uma exilada de si. A estratégia de Godofredo ao narrar é muito interessante, combinando quase que simultaneamente cenas do presente com flashbacks do passado de militância no Rio de Janeiro. Numa mesma tomada, estão todos os dissidentes jantando animadamente no apartamento de um amigo argelino em Paris e no parágrafo seguinte a cena da fuga pelo Estácio a caminho do Largo de São Francisco.
Essa estratégia persiste até a assembléia derradeira em Paris, quando Lázaro e Fábio sofrem um expurgo no dia 23 de setembro de 1973 - por razões meramente morais, diga-se de passagem - e são convocados para o retorno ao Brasil, entrando pela Bolívia, visando uma nova ação revolucionária. No Rio de Janeiro receberiam um envelope com instruções, alojamento e as armas. A partir desse momento, a estória ganha contornos interessantíssimos pois, pouco a pouco, a longa viagem de volta, na vida do exílio no exílio alimenta reflexões que abrem caminho para a revisão de suas certezas políticas. Lázaro, por exemplo, reavalia a luta armada e a tomada pura e simples do poder pelos operários e camponeses como um erro de adolescência ou de equívoco mesmo, mas encara o retorno de maneira menos dramática que Fábio. Fábio cruza fronteiras mais sensíveis. Não tem nada a perder depois de perder tudo o que um dia foi Muriel. Como o próprio título enuncia, neste livro, o exílio e o amor são sentimentos no plural : O amor adquire várias formas de afeição, e o exílio é muito mais que apenas um sentimento geográfico.


Musica do dia. Tristes Trópicos. Itamar Assumpção



Armadilha para Lamartine


Parafraseando Tolstoi, “todas as famílias normais se parecem, cada família doidinha tem armadilhas à sua maneira”. E na família do Lamartine não é nada diferente. Segue-se armadilha: O ano é 1954. A cidade é o Rio de Janeiro de Vargas. A família em questão é uma família de classe média que sofre uma mudança em seu cotidiano a partir do momento em que o filho mais novo, Lamartine M., filho do eminente jurista Espártaco M. e de Dona Emília, resolve sair de casa. O rapaz quer morar numa “República”. Claro, que a idéia não cai nada bem no seio da tradicional família M. Para o pai, uma decisão descabida. Para Lamartine a única opção possível de se livrar de uma espécie de cárcere privado, onde o prisioneiro era o próprio Lamartine, e a prisão, um diário onde o pai anotava minuciosamente todo o cotidiano da casa, das relações familiares, das refeições, das visitas, e, obviamente, detalhes constrangedores da vida do jovem filho. Espártaco dava aomais inexpressivo acontecimento cotidiano, tal como os movimentos minucuosos de seus intestinos, o estatuto de realidade.
"O que sentia na barriga revelou-se: fui “lá dentro” e verifiquei,
depois, a presença da minha já esquecida escherichia coli. Lá
estava, igualzinha, no seu manto envolvente... (...) a escherichia
ainda está olhando para mim do seu leito de seda entre as fezes...
Tudo o que acontece no ano de 1954, por acaso o ano mais irracional da história brasileira, quando até um presidente dá um tiro no peito, dentro do diário, é de ordem racional. Espártaco preocupa-se com os órgãos que “estão regularmente”. O dinheiro “poderia ser mais, mas não está faltando” e ainda há “esperança” de que a vida melhore. Espártaco é um homem satisfeito. Não há nada que o incomode muito, a não ser uma bactéria que faz ter cólicas intestinais. Mas segura este dado, por favor. Espártaco, como jurista e portanto parte de uma elite carioca, acompanha a candidatura de Kubistchek à presidência, a briga entre os herdeiros do getulismo, a ira de Lacerda e dos “lacerdistas”, conhece pessoalmente alguns dos grandes personagens da cena política, e chega e criticar violentamente nas linhas do diário os líderes militares e religiosos. Para ele, o Brasil é desorganização econômica só.
Espártaco é fruto de seu meio, de sua classe. Não nada faz além de olhar, anotar, e assistir os acontecimentos ao seu redor. Como não consegue mudar o país, e tenta controlar a casa com mão de ferro, sutilmente, terciariza a tarefa para Emilia a gestão. Ou seja, o arcaismo é um projeto bem construido no âmago privado da família brasileira. A impotência diante dos fatos é parcialmente suprimida pelo controle da casa. Controle este, que só é total nas páginas de seu diário. É nestas páginas que aprisiona, como hamsters, os membros da família. Lamartine é o pária mais simpático da literatura brasileira. Trai sua classe, trai a raça dos racionais, ferra com a pobreza existencial da racionalidade do andar de cima, pra frente na aparência, mas opressiva para os lados da cozinha e do quarto de empregada.
Armadilha para Lamartine é um livro de 1976, um dos romance mais legais e desconcertantes que já li. Ele te confunde, e desarma, e faz pensar que tua família é até meio normal, dadas as circunstâncias. São 2 narradores, pai e filho, que narram de maneira distinta suas visões sobre a família, mas que no final acabam convergindo. O livro é hilário. Não se consegue parar de rir desde as primeiras páginas. O que para muitos poderia ser um ambiente opressivo e cheio de castrações, e que realmente o era, para o leitor, conduzido pela genialidade de Carlos Sussekind, a família M ponto - onde nunca é revelado o sobrenome - é um zoológico de espécies muito familiares. O mais interessante é que Espártaco é um camarada tão dominante que acaba formando um filho fraco e vacilante. Para tanto, Lamartine, mesmo morando com os amigos, volta e meia retorna à casa, ao quarto, que permanece intacto, um local de onde não consegue se desvencilhar. A busca pela autonomia e independencia vai se esfarelando nessas pequenas voltas à prisão. Numa dessas voltas à casa, Lamartine “vai ao encontro do mar”, é detido pela polícia e a família o interna por dois meses no Sanatório Três Cruzes do Rio de Janeiro. E quando a esquizofrenia de Lamartine se manifesta, “rótulo posto na perturbação mental por que está passando o Lamartine” (p. 258), abala e descarrilha aquele equilíbrio precário criado por Espártaco.
"Conseguindo sair [Lamartine] sem que eu o visse, foi para a
praia (não aqui defronte, mas no Posto 1, junto à Pedra do Leme)
e lá, depois de ficar inteiramente nu – quando foi censurado
pelos que estavam na praia (entre 8:00 e 8:30 da manhã) com
bolas de areia molhada jogadas à distância – atirou-se n‘água.
Da água foi retirado pela Radiopatrulha e levado para a Delegacia
do Segundo Distrito Policial. Daí é que telefonaram para cá,
avisando. (...) Com uma expressão que nunca poderá sair da
nossa retina enquanto vivermos, expressão abobalhada,
profundamente abatida e triste, com um sorriso estúpido
indescritível, só me pareceu ver, à minha frente, um psicopata
inteiramente desligado da realidade. [...] Já, então, entre gracejos
e entonações sérias, repetindo que “havia morrido”, que estava
felicíssimo, que isso “não lhe custara nada” e que “poderia
proporcionar o mesmo a todos”, passou a seu lado, no sofá da
varanda. Tinha a expressão aparvalhada. Tomei-lhe as mãos entre
as minhas. Ficou me dizendo: “Papai! Eu não sabia que custava
tão pouco morrer! Eu nem senti! E hei de fazer com que todos
vocês venham comigo! Eu posso isso porque sou o Cristo!”.
Mas vamos por partes, o livro se divide em duas partes. Essa parte da internação, chamada de “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”, temos as aventuras de Lamartine no sanatório, escritas ele mesmo, fazendo-se passar por um outro interno, tal de Ricardinho. Lamartine recebe telepaticamente, tiupo naquelas psicografias à la Chico Xavier, as mensagem do dário do pai, e as reescreve com o pseudônimo de Ricardo, no diminutivo. A Segunda parte do “Diário da Varandola-Gabinete”, trata propriamente do diário de Espártaco, reescrito “telepaticamente” por Lamartine em sua estada no sanatório, abrangendo o período que vai de outubro de 1954 a agosto de 1955. O leitor fica sem saber, dentro de uma narrativa monológica, extremamente obsessiva e racional, o que é realidade ou ficção, que tudo, absolutamente tudo, tanto na varandola-gabinete de Espártaco, como no cotidiano do sanatório, é absolutamente absurdo e engraçadíssimo.
"De saúde, vamos indo tão satisfatoriamente quanto possível. Eu vou suportando a minha escherichia. Ela [Emília], a sua menopausa. Nossas pressões sangüíneas não são alarmantes. Os nossos órgãos estão regularmente. O dinheiro poderia ser mais. Mas não está faltando. E há sempre a esperança de que melhore, de uma hora para outra… Ainda não perdi as esperanças de uma melhoria boa nos meus vencimentos. Vindo, poderemos pensar num repouso maior. Melhoramentos de vida, reformando a Casa, proporcionandonos maior conforto. Confesso-me satisfeito. Comigo. Com os meus. Com o meu trabalho. Com a vida. Já é alguma coisa...
Enfim, acontece à sua volta, consiste na loucura de Espártaco. Mas só é possível, porém, chegar a tal conclusão só depois da leitura das “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos”. Só ai que se percebe a desesperada idéia de fugir da realidade e encarar a própria subjetividade narrando as coisas mais banais possíveis. Espártaco nega-se a submenter os fatos a uma análise mais profunda. E um episódio muito interessante, e que torna a narrativa mais absurda ainda, é a visita do pai ao sanatório.
As “Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranqüilos” consistem em mensagens escritas por Lamartine M., no Sanatório, fazendo-se passar por um outro doente (Ricardinho). Dr. Espártaco havia travado contato com Ricardinho quando as visitas ao filho ainda lhe estavam proibidas. Ricardinho fizera-lhe então algumas revelações, merecendo do Dr. Espártaco o título de “informante extra-oficial”.
Lamartine, manipulaivo, viu a brecha e se animou com o imprevisto da ligação Espártaco-Ricardinho e imaginou alimentá-la com essas “mensagens” falando mal dos médicos e funcionários do Sanatório. Para um Espártaco, obsessivo por narrativas cotidianas seria um prato cheio. Ele morderia a isca facilmente. Estas indiscrições chegaram a ser escritas mas ficaram escondidas num lugar que só Lamartine conhecia. Posteriormente, foram entregues a Dr. Espártaco que, candidamente, as incorporou ao Diário.
Neste momento o twist. Quando Espártaco assimila o diário do Pavilhão dos Tranqüilos e não dá continuidade com o “Diário da Varandola-Gabinete”, passa a inverter a ordem e o que passa a fazer sentido é a versão de Lamartine, ou seja a versão telepática de Lamartine, na voz de Ricardinho. Mas isso é o hermetismo por trás da divertida narrativa, e o sentido de ironia que perpassa todo o texto.
"Às 3 ¼, é ele que vem ao telefone. E me fala com a voz querida de
sempre, de que já andava morto de saudade. Fico sem saber o que
lhe diga... Por fim, tudo o que sai é um “folgo muito”, de que ele
deve ter se espantado. Para corrigir a burocracia da expressão,
acrescentei apenas “Então, até brevíssimo, não?”. Ele ainda se riu.
Armadilha para Lamartine, é assinado como Carlos & Carlos Sussekind. Como Carlos & Carlos? Por que? Bem, Carlos Sussekind de Mendonça Filho é, como o próprio sobrenome diz, é filho do magistrado Carlos Sussekind de Mendonça, que supostamente alimentou um diário tão obsessivo quanto Espártaco. Carlos Sussekind Filho realemente esteve internado num sanatório. Tentou por anos publicar os diários do pai, sem apoio de nenhuma instituição, com exceção de uma modesta bolsa da Fundação Vitae, do falecido Mindlin. O livro, divertidíssmo por sinal, explica muita coisa do Brasil…


Quarenta Anos

QUARENTA ANOS

Mary Oliver


Durante quarenta anos 

folhas de papel branco 

passaram por minhas mãos

    tentei melhorá-las em paz, na sua paz


Suprimindo vazios

pequenos nós, pequenos feixes 

de letras palavras 

    pequenas chamas saltando


Nenhuma página

era menos que um discurso fascinante 

cheio de cadência, 

   em seus pálidos nervos escondidos


Nas curvas dos Qs 

atrás dos sinceros Hs

nos pés plantados dos Ws 

    quarenta anos


E novamente nesta manhã, como sempre, 

estou parada enquanto o mundo regressa, 

úmido e lindo, estou pensando 

    naquela linguagem


Nem é um rio, nem uma árvore, 

nem é um campo verde, 

nem é uma formiga preta viajando 

    rapidamente em sua modéstia


É um dia a dia, 

de uma página dourada a outra.



Mary Jane Oliver  foi uma poeta americana que ganhou o National Book Award e o Prêmio Pulitzer. Seu trabalho tem como principal fonte de inspiração a natureza: Gostava mais de bicho e planta, do que gente. O que é bem compreensível. Escrevia de forma clara e transparente, de forma que tanto um douto como um carpinteiro podiam entendê-la.