El Juguete Rabioso


É absolutamente desconcertante pensar que Roberto Arlt escreveu La Vida es Puerca, seu primeiro livro, com apenas 22 anos.  E mais incrível ainda é imaginar, caso sua filha Mirta Arlt tenha falado a verdade, que começou a rascunhá-lo quando tinha 18 anos. O livro em tela foi publicado em 1926  com o nome de El Juguete Rabioso, por sugestão do editor e amigo pessoal Ricardo Güiraldes, pensando que com este título alcançaria um público maior. Se estrepou. Arlt nunca vendeu muito, mesmo tendo nascido como Clássico. Antes de El Juguete, houve supostamente um manuscrito perdido chamado Diário de um Morfinômano, que oficializou El Juguete como o primeiro seu primeiro livro. 


Imediatamente depois desse, Arlt publicou, o que para mim, seguido ao Facundo de Sarmiento, é o livro que define em alguma medida o que seria a essência da cultura argentina, Los Siete Locos - um livro incrível  que li muito antes do surgimento deste Ilusão da Semelhança, assim que cheguei aozuza,  e que não apenas me impactou, me arrebatou, sendo que  este é um livro que merece o carinho e a dedicação crítica para uma futura resenha muito mais pensada. Durante anos a obra de Arlt foi criticada e o autor considerado um escritor menor no ambiente literário portenho. Apenas nos anos 1950 e com as ponderações de escritores do calibre de um Piglia, e do empenho se sua filha Mirta, este o obscuro escritor ganhou alguma relevância. Curioso é que o próprio Arlt considerava o El Juguete, inferior a Los Siete Locos, comparando este último a uma pistola automática, enquanto o primeiro a apenas uma pistola antiga. Sendo que os dois são, sem dúvida nenhuma contusos, e além disso,  esplênicos, traumáticos e perfurantes. 



O livro, dividido em quatro capítulos muito claros e bem definidos: Los Ladrones, Los Trabajos y los Dias, El Juguete Rabioso, Judas Iscariotes. Alinhava muitos elementos biográficos da vida do autor e se centra na trajetória de um protagonista chamado Silvio Drodman Astier que no primeiro capítulo é um rapaz de uns 14 anos, e no último ja é um jovem em idade adulta. Astier é um protagonistas que não quer estudar, mas lê desesperadamente. Seu fascínio passa pelos autores literários do banditismo, teorias do eletromagnetismo, pelo jornalismo sensacionalista, que permeia um protagonista imerso na sensação iminente de violência presente nas grande cidades, e mais ainda na classe social à qual pertencia o protagonista.


No primeiro capítulo, intitulado Los Ladrones, o jovem Astier tem 14 anos, é muito pobre e influenciado pela literatura sobre ladrões, bandidos e aventureiros, se junta com alguns amigos, dentre eles Enrique e um outro jovem falsificador para fundar um clube de malfeitores para organizar pequenos roubos e outras falcatruas. Até que decidem alçar um vôo mais alto e assaltar uma biblioteca. A execução do plano fracassa por um vigia aparecer no momento do roubo, e o grupo se dispersa, cada um indo para seu lado em fuga. Enrique, atormentado pelo medo da polícia e mais ainda por suas alucinações persecutórias, vai parar na casa de Silvio pedindo guarida. E no final nada acontece. Mas a intensidade psicológica do episódio impacta de tal maneira os rapazes que decidem pôr um fim naquela ideia. A situação econômica aperta na casa de Sílvio e a família então muda-se para bairro mais pobre.  


Em Los Trabajos y Los Dias, Silvio tem 15 anos, já não estuda e mora com a família neste bairro mais decadente com uma vizinhança compostas por imigrantes e judeus. Já não tem mais contato com seus antigos amigos e é obrigado pelas circunstâncias a arrumar um trabalho para sobreviver e trazer um qualquer para a casa. Consegue então um trampo na Livraria Don Gaetano, onde Silvio também passa a viver nos fundos do estabelecimento, passando a desempenhar tarefas bastante humilhantes como ir ao mercado com Don Gaetano, suportar suas grosserias, num ambiente tóxico e pesado,  ser maltratado pela esposa rude de Gaetano. Desesperado por sair daquela casa, Silvio vai a procura de um homem que tinha oferecido emprego. Enquanto espera a chegada do homem, Silvio conjectura um futuro melhor. Pensa que o tal homem lhe dará um trabalho e que sua vida vai mudar de rumo. Entretanto neste livro, nada que é ruim, não escusa piorar, e   para piorar tudo, o homem o expulsa de sua casa dizendo que não o conhecia parando de incomodá-lo.  


Aos 16 anos volta para casa da sua mãe com uma terrível sensação de derrota. Aceitando a sugestão de uma vizinha, consegue ingressar na escola de aviação como aprendiz de mecânico onde permanece por um tempo e é admirado por alguns por sua inteligência. É nesse capítulo que se descobre. num diálogo entre Silvio e um superior  que o pai de Silvio cometera suicídio. Mas, que tudo se encaminhava, no presente, para a pobre matéria ilusória de futuro sólido, ao menos economicamente.  Entretanto, um novo revés. Um dos superiores o dispensou da escola por supostamente ter de acomodar um de seus apadrinhados. Sem aviso prévio, cancelam sua inscrição e o sargento, que trata dos papéis, comunica-lhe que naquele local não precisam de pessoas inteligentes. Ao contrário, precisam de homens embrutecidos.

O mais interessante deste capítulo, justamente chamado El Juguete Rabioso, é a idéia de que a vida do protagonista é brinquedo que passa de mão em mão, útil por um período e dispensado assim que deixa de ter serventia. O rancor de se perceber usado todo o tempo torna-o um camarada diferente. Ao deixar a escola militar, Sílvio sente-se destruído e vagueia pela cidade, instala-se uma pensão e acaba dividindo quarto  um rapaz homossexual, que  o assedia sem sucesso. No dia seguinte, acaba por entrar em delírio, pensando em ir para a Europa num navio. Compra um revólver para sua proteção, e no auge das alucinações, acaba pensando em suicídio. Quando tenta se matar o revolver falha. Chega a ser engraçada essa sina de nada dar certo… 


No capítulo Judas Iscariotes, já temos um Silvio adulto, trabalhando como vendedor para uma fábrica de papéis, trabalho que lhe parece humilhante. Aliás, o adendo de que qualquer trabalho, que não seja o trabalho intelectual e inventivo,  tornar-se todo o tempo humilhante para o protagonistas, não deixa de ter um lado um tanto patológico. Passado um tempo ele encontra-se novamente com um companheiro do clube de cavalheiros. O rapaz trabalha como investigador e diz que o velho companheiro Enrique esta preso como estelionatário. Comenta igualmente de um outro amigo, coxo, que trabalha na feira de flores e que ao encontrá-lo sugere que ambos roubem a casa de um engenheiro, Arsenio Vitri. Astier topa, mas entre numa crise de consciência se delata ou não o antigo companheiro. 


O livro termina com essa sensação de que o protagonistas se redime por vias tortas, massacrado pela cultura de massa que se personifica nas pequenas tragédias cotidianas, no arrependimento, alimentando o medo, que é o núcleo da paranóia no mundo moderno. Ricardo Piglia dizia que a obra de Arlt “pode ser lida como uma profecia: mais do que refletir a realidade, seus livros acabaram por cifrar sua forma futura”. E realmente é isso! Um livro altamente político, sem ser panfletário onde a manipulação da esperança e da crença, a invenção dos fatos, a fragmentação do sentido, e a lógica do conspiração do andar de cima vai nos iludindo, como na Teoria do Iceberg de Hemingway, onde o mais importante nunca se conta - a história como nos diz o Michael de Certau, é construída em cima do não-dito, da alusão, do apenas ligeiramente sugerido numa desconcertante obra de um autor de 22 anos.

A vida é Sonho


A vida é Sonho… e pode ser. Mas, aqui trata-se de um clássico da Era de Ouro do Teatro Espanhol de Calderón de la Barca. O chamado teatro espanhol da Idade de Ouro refere-se à produção teatral na Espanha num período que se compreende aproximadamente entre 1590 e 1681, quando a Espanha emerge como uma potência europeia com a consequência da União Ibérica, depois de ter sido unificada pelo casamento de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela em 1469. Obviamente, Idade de Ouro contou com uma forcinha a mais do nobre metal vindo das colônias americanas e das crises que se seguiram à sucessão portuguesa, iniciada em 1578 até aos primeiros monarcas da Dinastia de Bragança. Vamos combinar que D. Sebastião escolheu uma péssima hora para morrer na Batalha de Alcácer-Quibir sem deixar herdeiros, cabendo ao celibatário Cardeal Dom Henrique, já de idade avançada e mais pra lá que pra cá, elaborar os trâmites não sem inúmeros conflitos internos, para entregar a bagaceira para a corte espanhola, na figura de D. Filipe II – Filipe segundo na Espanha, e primeiro em Portugal, ou vice-versa, isso é que menos importa. Ou seja, Espanha tinha ouro vindo da América, um reino português herdado de lambuja e uma economia de meio circulante abundante que permitia o homem comum frequentar o teatro. 

A peça, encenada pela primeira vez em 1635, e portanto na meiuca desses acontecimentos históricos para lá de insólitos, influenciou inúmeras obras ficcionais nos séculos seguintes. A Bela e a Fera de Mme. Gabrielle Barbot, esculhambada pela Disney, talvez seria o grande exemplo disso.

Na obra, a vida seria uma peregrinação, um sonho, dentro de um mundo teatral de aparências, onde cada qual representa seu papel. E não há como negar uma fé em Deus, subjacente,própria do Barroco, em que o sentido de angústia de seus personagens, principalmente o pai e o filho, aproximam os personagens de do homem existencialista de meados do século XX. A plasticidade dos personagens de La Barca relaciona-se com o fato de transbordarem à ação estritamente necessária, para um acentuado individualismo da Era de Ouro do Teatro espanhol. Essa plasticidade torna os personagens palatáveis de forma quase assustadora.

Nesse universo, o enredo da obra é meio explicado pela astrologia e pelos presságios: todo o processo ainda é prefigurado por Deus ou pele medo irracional do futuro - como no caso do presságio que afeta Segismundo, o personagem principal, dramatizando questões transcendentes como o embate entre o conceito de liberdade e a consciência da necessidade, que define a própria liberdade, e o poder da Vontade frente ao Destino. Nesse sentido, a peça é uma espécie de precursora do teatro surrealista do Século XX. O autor criou inovações tão radicais que apenas seriam usadas em sua essência de metaficção no século passado com camaradas como Ionesco e seu Rinoceronte, Beckett com seu oculto, premonitórioe cômico Godot, a até os Rosencrantz and Guildenstern de Tom Stoppard, que apesar da inspiração Shakespeariana tem muito do Clotaldo de La Barca … Se contar o clássico de Stevenson, adaptado no Cinema com o Dr. Jeckyll and Mr. Hide.

A história se passa na corte da Polônia onde uma rainha sonha que seu filho, chamado Segismundo, será um monstro de personalidade e logo após morre no parto. O Rei Basílio, consorte, e pai da criança, temendo o presságio, decide aprisionar a criança numa torre, isolando-a de qualquer contato com o mundo exterior. Porém o Rei é fraco e vacilante. Teme pelo que possa passar a seu povo, sectos e suseranos. No fundo o rei tem o famoso cagaço do rompimento dos tais laços sinalagmáticos, aos quais o historiador Hilário Franco Junior definiu como o pacto de solidariedade dotado de lealdade política entre indivíduos e a nobreza na Idade Média. Rompido os pactos, e sem herdeiro, o reino corria o risco de ir para as cucúias. Basílio é um Soberano sábio, envelhecido, dotado de conhecimentos matemático e astronômicos, sem aptidão nenhum para o Poder, mas não era tolo.

Com a idade avançada, reconhecendo suas limitações, e talvez movido por um sentimento de arrependimento, ou apenas perversa curiosidade - naquele negócio de deixa rolar pra ver no que vai dar - , decide testar o filho e libertá-lo, sendo que o rapaz nada sabe sobre o presságio.

Então, o rei, com a ajuda de Clotaldo, seu fiel lacaio, que é o único que tem acesso a cela de Segismundo, droga-o fazendo com que durma profundamente. Quando o rapaz acorda, ele é tratado como o verdadeiro príncipe herdeiro na corte. Entretanto, ele é uma espécie de homem-fera, uma espécie de selvagem indomesticado, afetado pelo anos de reclusão e falta de sociabilidade. Tem uma alma oprimida e ao mesmo tempo violenta, esmagada pelo isolamento. Cercado das atenções que nunca as teve, que edulcoravam a auto-confiança e o excessivo orgulho, e com essa alma indomada e exageradamente cercada de condescendêcia...já viu né... a Hybris do camarada incha. O cara torna-se arrogante e destemido, senhor de suas próprias atitudes, chegando ao extremo de matar um servo, simplesmente pelo fato deste o contrariar, jogando-o pela janela do castelo. E isso só por que o servo lhe sugeria prudência nas suas atitudes – como costumeiramente se faz, hoje em dia, nas redes sociais, quando um discurso de oposição se articula: defenestra-se.

Resumindo, quando acorda na corte, é tratado como príncipe herdeiro para logo depois ser novamente drogado por Clotaldo e reacordar em sua prisão na torre. Quando retorna à torre pensa que tudo se tratou de um sonho e perde a capacidade de distinguir quando está sonhando de quando está vivendo.

No fundo, mesmo para o homem moderno, esse do nosso início de obscuro século XXI, afundado no atomismo da medias sociais, no individualismo da terciarização de si, submergido nos vários níveis de informalidade, letárgico e arruinado em sua saúde mental frente à corrosiva máquina neoliberal… mesmo que tenha perdido todos os ideais iluministas de uma sociedade mais igualitária, e cedido completamente ao inócuo discurso do Agency americano, ainda assim o expectador pode participar intensamente das angústias do personagem Segismundo quando confrontado com a possibilidade perturbadora de que sua vida até então poderia ter sido apenas um sonho fugaz na verdade que a obra de Calderón nos comunica. Nessa dualidade entre livre arbítrio e destino, que é o cerne do dilema de Segismundo, fazendo o personagem se questionar se suas ações são predestinadas ou se tem o poder de moldar seu próprio destino de personagem, Calderón cria um Èdipo incompleto. Explico: o sujeito de Caldero, com um fardo a ser carregado, o qual envolve não somente a si próprio, mas a seus familiares e todo um reino, não concretiza a tragédia, pois o destino não se cumpre. No fim, o presságio se dissolve.

Aí entram vários fatores… o panorama muitas vezes contraditório e edulcorado do Barroco, a necessidade teológica de dar um fim moralmente cristão à obra, e por aí vai…

Mas paremos de divagações e vamos aos fatos.

Segue o monólogo de Segismundo no auge da confusão mental sobre as incertezas que tratam da vida …

É verdade; então reprimamos

esta feroz condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que ao sonharmos,

o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim me mostra

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.



Sonha o rei que é rei, e vive

com esse engano mandando,

resolvendo e governando.



E os aplausos que recebe,

vazios, no vento escreve;

e em cinzas se lhe converte sua morte 

que é a talha de um corte.



E há quem tente reinar

vendo que há de despertar

no sonho da morte?



Sonha o rico sua riqueza

que mais cuidados lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende,

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.



Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.



Sei que a vida é um frenesi.

Sei que a vida é uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é a tristeza,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

PERSONAGENS

Basílio, rei da Polônia.
Segismundo, seu filho.
Astolfo, duque de Moscou.
Clotaldo, velho.
Clarim, bufão, criado de Rosaura
Estrela, infanta.
Rosaura, dama.

Guardas da torre.
Soldados de Astolfo.
Damas de Estrela.
Séqüito do rei Basílio.
Criados da corte.
Soldados revoltosos.







Náufragos do escolho

Náufragos do escolho



 

 

RESENHA

Rogido, Francisco. Náufragos do escolho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023. 192 pp.

 

Há uma novidade de destaque no díspar universo da literatura brasileira contemporânea. A capa neo-surrealista deste livro de contos – tão bela quanto sinistra – tem um piano de calda pairando nas nuvens sobre uma obscura cena de cidade com um cinema ao canto. As pernas do instrumento estão derretendo, e sobre ele se mescla uma imagem de caveiras e bebês mergulhando de cabeça para baixo numa piscina que cai para dentro do piano. A faceta de estranhamento em Náufragos do escolho é reforçada pela epígrafe do volume. Assinada pelo filósofo oitocentista alemão Friedrich Nietzsche, declara: “Não há ninguém que não seja estranho a si mesmo.”

De fato, pode-se dizer que já no título e subtítulo de seu livro de estreia, Náufragos do escolho (ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais), Francisco Rogido revela dois dos elementos essenciais dessa coletânea. Há, pois, uma relativa, mas inegável, estranheza na escolha do termo “escolho.” Vocábulo um tanto raro na linguagem do dia-a-dia no português do Brasil, ele é derivado de scoglio, em italiano, que significa “espinho”, ou, figurativamente, “dificuldade”, “obstáculo”, “perigo” ou “risco” para os barcos no mar.

Também vemos humor no inusitado catálogo de elementos desiguais que descrevem, entre parênteses, o conteúdo da obra. Exatamente quais seriam, por exemplo, os 98 “infernos possíveis” (talvez haja mais que isso), ou os 63 takes cinematográficos dos contos (será que há tantos)? Tais números talvez não importem, na perspectiva subjetiva de quem lê a obra. Com certeza dialogando com a sétima arte – em particular, nas elaboradas semelhanças estruturais, dialogais, rítmicas e visuais entre filme e literatura – os contos de Rogido proporcionam algum lirismo e alguma crença na bondade humana. É o que se percebe no conto “A falta agrava a tristeza da noite”, onde amor e sexo surgem subitamente entre personagens idosos que se (des)conhecem num hospital sob condições extremamente adversas, inclusive a proximidade da morte (159-165).

No todo do volume, entretanto, prevalecem as acentuadas doses de angústia, frustração, pessimismo, violência, horror e dor, efeitos quase sempre atenuados por ironia, humor, poesia, e, às vezes, por um sentimentalismo muito discreto. Um exemplo é “Lá não existem flores” (158). Apesar de ser um dos contos mais curtos da coletânea, de apenas meia-página, sua linguagem veloz nos leva muito longe no sentido de questionar a injustiça e o vazio existencial que assolam as vidas de tantos pessoas sem muito tempo para o lazer ou para o convívio com familiares e amigos, pois se ocupam de longas jornadas diárias de trabalho e vivem em bairros muito afastados, o que exige que acordem bem cedo (pelas quatro da manhã, como no caso do protagonista anônimo). Esse vendedor de flores se entristece por nunca ter sido capaz de participar dos eventos e ambientes alegres e festivos do tipo aonde vão diariamente as flores que vende. Entretanto, o que mais o inquieta não é essa exclusão ou a falta de filhos. É uma “ideia fixa”, que na sua idade avançada o faz questionar: “quem iria levar flores a seu túmulo, já que as luzes das estrelas se apagaram?” (158).

Magistralmente desenvolvidas nos limites e poderes da palavra escrita em seus múltiplos e variantes takes e tons, as narrativas de Rogido tanto nos trazem consternação e vergonha da espécie humana quanto nos induzem ao carinho e à compaixão por centenas de personagens que, na sua maioria, são indivíduos pobres, como operários ou pessoas de classe média baixa, cujas existências, sentimentos mais profundos e visões de mundo pouco aparecem nos romances, revistas ou telenovelas. Na maioria das vezes, eles são os indivíduos (des)retratados nas reportagens de crime nos jornais e telejornais. Com certeza, dezenas dos personagens de Náufragos do escolho sofrem com as limitações e contradições de suas circunstâncias cognitivas, existenciais, intelectuais e socioeconômicas. Como cada um de nós, porém, são todos seres humanos e possuem um enorme potencial para inesperada superação e imprevista conformidade com os nossos próprios escolhos, inclusive aqueles que de repente podem empurrar quaisquer pessoas rumo ao delito, mesquinhez ou maldade, ou engendrar uma lição transformadora de empatia, generosidade, e perdão.

A inclusão de crimes na literatura é prática muito mais antiga, naturalmente, mas não há como não ver semelhanças entre as narrativas de Rogido e a abordagem de temas afins em Machado de Assis, especialmente onde o autor de Dom Casmurro explora os mistérios e defeitos morais da mente humana e as camadas invisíveis, capciosas, ou intersecionais do real. Por outro lado, o macabro e o imponderável no submundo dos contos de Rubem Fonseca, a linguagem concisa e popular em Dalton Trevisan, assim como o humor sardônico, sutil e sofisticado em Luis Fernando Verissimo, também têm eco em Rogido.

Em Náufragos do escolho há ainda outras semelhanças com mais vozes de relevo na literatura brasileira. Entre essas marcas, observa-se em Rogido a poesia do cotidiano e das reflexões filosóficas de Ana Cristina Cesar, a coragem estética e a destreza narratológica de Cassandra Rios ao questionar as sombras e os mitos da sexualidade humana (seja ela heteronormativa ou anticonvencional), e a determinação de Márcia Denser para evocar ideologias de gênero e assim contribuir para a emancipação das mulheres. Podemos até mesmo suspeitar da atuação dos princípios conceituais e metodológicos similares aos de Clarice Lispector, aqueles por trás da elaboração e utilização do formato fragmento, que, aliás, nem em Rogido e nem Lispector é exatamente “fragmento”, por se fazer complexo e autossustentável, apesar de seu minimalismo.

Muitas vezes narradas em primeira-pessoa por homens ou mulheres, ou ocasionalmente um animal, mesmo que já defunto, como no desconcertante conto “5x7” (11-14), as histórias de Rogido realmente nos colocam sob a pele de centenas de seres. Eles nos iluminam através das suas perspectivas sobre os desafios do viver e suas necessárias ações práticas, às vezes até mesmo diante de momentos-tabus, como o de quando lidar com o corpo de um (talvez) parente morto. Para ilustrar, vale recordar o comportamento de um cliente de Mateus Araripe, um autodeclarado “esteticista” funerário.

Desde o início do diálogo ligeiro, sem contextualização, que abre o primeiro conto da coletânea, intitulado “Mateus,” perpassamos um estranho humor através de fatos repugnantes e possíveis decisões oportunistas. “O senhor é parente?”, pergunta o esteticista. Evasivo, responde o cliente: “Pode ser” (9). Mateus faz saber: “Vai vazar... [...] Daqui a pouco vai começar a vazar pelo nariz, pela boca, por todos os orifícios. A tendência é que todos os odores seguidos dos líquidos saiam” (9). Após os dois acertarem o preço do serviço (800 reais incluindo a maquiagem do defunto, a venda da roupa, do terço, etc.), o cliente não hesita: “Fechado, vou te dar 900, mas quero o terno e os sapatos de volta” (10). O esteticista se mostra surpreso: “Que é isso, doutor... Que horror... Eu pensei que o senhor...” (10). O cliente não cede: “Pensei... pensei... o mundo está cheio de filósofos, intelectuais e gente que pensa que pensa mais que qualquer outro” (10). Logo arremata: “quem pensa demais acaba se enganando... Não esqueça a aliança, e os dentes de ouro, eu os quero também” (10).

 

Dário Borim Jr.. É tradutor, fotógrafo e professor de Literatura Brasileira na University of Massachusetts Dartmouth. 


Trilogía Sucia de La Habana

Trechos de Trilogía Sucia de La Habana. Pedro Juan Gutiérrez

Conto:O NATAL DE 94

No domingo, 25 de dezembro, de manhã cedo. Angelito subiu ao telhado. Ele tinha mais ou menos uns sessenta anos e morava num apartamento do quarto andar. Ele com muita parcimônia pediu permissão para verificar a caixa d´água. Mais tarde, eu percebi que confundi a tristeza com a parcimônia. Disse que há dias não entrava água na sua casa. Deixei que ele subisse até o reservatórios e, sem perder tempo, ele se jogou para a rua. Quarenta e cinco metros de voo livre.
[…]

Durante anos, Angelito sempre esteve bêbado. Toda a família se dispersou: uma filha fez de tudo até conseguir se casar, e com uma esposa voluntáriosa foi viver na cidade de Segóvia. O outro subiu numa jangada com destino a Miami. A esposa deste, ao se encontrar sem marido e o filho adolescente nas costas, renasceu como a viúva alegre e começou a cantar e dançar em um grupo de salsa, até que por um golpe de sorte de repente se viu no México fazendo um programa de rárdio. […]

Depois a mulher morreu de um infarte no coração e o velho vivia sozinho com o neto Eduardo, meu amigo. […]

Eduardo foi à Poliícia. Fizeram a papelada. Retornou ao meio dia e foi me encontrar na praça. Eu tinha um carregamento bom de àlcool escondido no meu quarto. E ele estava alegre. - Vamos fazer um tremendo negócio hoje à noite. - Por que? Você não está de luto pelo teu avô? - Não, não. Já terminei. O pessoal do IML me avisa depois de não sei que lá. Tu ainda tens aquele àlcool?

 

Conto:

DUDAS, MUCHAS DUDAS

Aliás, fiz uma conta e nos últimos cinco anos tive relações sexuais com vinte e duas mulheres. Essa média não é ideal para um homem de 45 anos. Não me arrependo, mas fiquei preocupado. Não por causa da interioridade. arrepender-se da AIDS. Eu odiaria me condenar à morte precoce por gozar num buraco errado.

Bem, deixando de lado as promiscuidades, eu tive que continuar. Aguentar. Endurecido, é claro. As pessoas pensavam que eu estava crescendo. Mas não. Eu estava apenas tentando ficar cada vez mais forte e não deixar que eles me manipulassem. Cada um que se foda sozinho. Tive que dosar muito bem o pouco de amor que eu tinha dentro de mim para evitar que o tanque chegasse a zero e o motor parasse. Não perdi a esperança de recarregar em algum lugar. Eu era um utópico de merda.  Muito fodido mas sonhando em encontrar algo lindo dentro de mim que mais uma vez enchesse meu tanque até a borda para repetir tudo e voltar a ser aquele cara generoso e bom amante. Você é idiota?, às vezes eu me perguntava. Em outras ocasiões, mais tranquilo, dizia a mim mesmo: sim, é possível.
[…]

Ele não consegue lidar com sua dignidade, sob pena de morrer de fome. “Se ele me dá um pouco, é bom e eu o amo”, só isso. As mulheres em geral entendem isso desde muito jovens e aceitam. Mas para nós  homens isso fica um pouco mais complicados com a rebeldia, vai contra os nossos princípios e tudo mais. No fim das contas só entendemos isso um pouco mais tarde.

Bem, esse instinto de autopreservação bem desenvolvido é uma das faces da pobreza. Mas a pobreza tem muitas faces. Talvez a sua face mais visível seja a de que nos despoja da grandeza de espírito. Ou pelo menos a amplitude de espírito. Isso transforma você em um cara mau, miserável e calculista. A única necessidade é sobreviver. E o resto vai tudo para o inferno a generosidade, a solidariedade, a gentileza e o pacifismo.

No meio de tantas dúvidas, chegou Alejandro, um velho amigo. Meio bêbado e feliz. Naquele dia lhe contaram que em um sorteio ele ganhou um visto de residência nos EUA. O cara estava exultante. Todos as suas amigas queriam se casar com ele. Ofereciam-lhe dinheiro..

O DECLINIO DO ANJO




O DECLINIO DO ANJO é um poderoso romance do escritor Yukio Mishima. Um não, o último. É a quarta e última obra da tetralogia O Mar da Fertilidade, completada pelos romances Neve de Primavera, Cavalos em Fuga e O Templo do Amanhecer – diga-se de passagem não li, ainda. A estória de O Declínio do Anjo começa começa em maio de 1970, quando o ex-juiz aposentado Shigekuni Honda, depois da morte de sua esposa Rié, conhece um adolescente órfão de 16 anos chamado Tōru Yasunaga.

Toru, é uma espécie de jovem oficial controlador de tráfego portuário, na totalidade da vastidão abandonada da península de Izu, na Zona Portuária de Miho. O rapaz é encarregado de ajudar as embarcações de alto calado entrar e cruzar as zonas de atraque na Baía de Suruga. O trampo foi conseguido graças a um tio pobre que após a morte do pai, um comandante de cargueiro que morrera no mar, e da mãe, que falecera pouco depois sem mais detalhes, o menino vai fazer um curso técnico de formação profissional, tornando-se técnico de terceira categoria, e sendo contratado pelo escritório de sinalização de Teikoku.

O camarada vive a vidinha dele modorrenta, sem planos, objetivos, nem grande sonhos. Caladão, com pouquíssimos amigos, ganha pouco, mas o suficiente para o tabaco e o aluguel do quartinho em que vive. Dos amigos, uma das poucas que o visita constantemente é Kinue, uma moça megalomaníaca com traços sérios de uma visível esquizofrenia, que se considera uma rainha de beleza, quando na verdade, a moça, supostamente filha de um rico homem de terras, teve uma relação amorosa rompida traumaticamente, e ingressada num hospital psiquiátrico à força. Na vizinhança portuária, rude e maledicente, Toru era o único que não desprezava a moça, mas não por bondade. Ele já apresentava traços de uma frieza e afastamento que iriam se comprovar mais à frente na estória. Para ele, ela era uma mulher feia e louca, cinco anos mais velha e com um sobrepeso patológico. Ela era apenas uma espécie de companheira de cárcere naquela torres de controle. Apenas isso.

Por sua vez, Honda, após a morte de sua esposa Rie, encontrou companhia em Keiko, uma lésbica solteira e como mostra-se no decorrer da trama, vital em sua vida, cuja paixão é o estudo da cultura japonesa. O juiz é ium homem rico e sem filhos, frequentador das festas e recepções do andar de cima da sociedade japonesa. Quando conhece Toru, no retorno de uma roadtrip insólita, acredita piamente  ter descoberto nele a reencarnação do seu amigo de infância Kiyoaki Matsugae e adota-o como seu herdeiro. Entretanto, os antescedentes a esta viagem são envoltos numa série de mistérios, acasos e sonhos. Presságios que Honda vem sentindo ao ler O Manto de Plumas, uma das primeiras e tradicionalíssimas fábulas budistas indianas, ligadas ao precieto da honestidade.  A história se passa numa paisagem encantadora, ao pé do monte Fuji – a propósito, da península de Izu, na Zona Portuária de Miho é possível avistar ao monte Fuji. Na lenda, Hakuryo, um pobre pescador, encontra um  manto tecido com penas coloridas. Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado, certo? Errado. Hakuryo leva o manto consigo e quer vendê-lo no mercado e conseguir algum din din. Porém, na mesma noite, aparece-lhe em sonho um Tennin (um dos 33 anjos do budismo) sob forma de uma meio menina, meio mulher muito bela, tentando convencê-lo de que o manto era seu, e que sem ele seria impossível voltar ao céu, implorando para que ele o devolvesse. O pescador, encantado com sua beleza da menina, diz não ter sido ele quem roubou o vestido e pede que o anjo deite-se com ele. Após acordar, mergulha em profundas reflexões morais sobre a merda que ele fez ao violar um menina.  Percebe quão grave foi seu erro, suplicando que encontrasse a criatura novamente para se redimir. Ele até a praia, onde encontra uma menina em lágrimas, para quem ele presenteia o manto. Então,em meio a um espetáculo de dança acontece um milagre. Em frente aos seus olhos, o anjo sobe lentamente aos céus. De tanto ler a estória, Honda convence-se de que no sonho de Hakuryo, os  cinco sinais da morte aparecem quando as flores do manto murcham, o manto fica sujo, as axilas passam a cheirar mal, os homens perdem a noção de si mesmos e são abandonados pela donzela cheia de jóias.

Em meio a essas leituras, sonhos e crenças, e a  série de sonhos que Honda vinha tendo com anjos a amiga Keiko, estudiosa da a cultura japonesa, num desses jantares frequentados por gente fina. Elegante e sincera, ela pede que Honda a leve numa viagem de carro a Miho-no-Matsubara, justamente a região onde Toru mora.

Nesta viagem acontece o primeiro encontro entre Honda e Toru. A quantidade de eventos e os ditos e não ditos, desse encontro, tornam o resto da estória sensacional. Kinue oferece uma flor, a Toru, instante antes da entrada de Honda no posto de observação de Toru, os presságios de doença de Keiko e todos as falsas suposições criadas na cabeça de Honda, vão dar o tom ao processo de convencimento do rapaz em ser adotado por Honda.  Após retornar de uma viagem à Europa, Honda reflete e decide adotar Tōru por acreditar ser a terceira reencarnação de seu amigo de infância Kiyoaki Matsugae. Embora o ex-juiz comente suas impressões com Keiko, a mulher não dá muita credibilidade à história, embora acabe apoiando a decisão da Honda. A partir daí, Honda educa-o e observa-o, interrogando-se sobre se também a vida de Toru irá ser abrupta e precocemente interrompida. Ele adota-o com a intenção, dada em seus presságios e sonhos, de uma interrupção abrupta de sua vida! Concluída a adoção, Tōru muda-se para a casa de Honda, onde recebe treinamento em boas maneiras e habilidades sociais de diversos tutores. treinamento em boas maneiras e habilidades sociais.

Na primavera de 1972, um casal de amigos de Honda tenta arranjar um casamento entre Tōru e sua filha Momoko Hamanaka. Apesar de fazerem uma viagem conjunta para Shimoda, os planos não dão certo, já que o jovem é hostil a Momoko. Na verdade, o jovem, para despertar o ciúme de Momoko, decide iniciar um namoro com Nagisa, uma jovem de 25 anos com quem mantém relações sexuais. Diante da raiva de Momoko, Tōru a convence a enviar uma carta a Nagisa para encorajar a separação. Na carta, cujo conteúdo é indicado pelo jovem, Momoko explica a Nagisa que ela deve romper com Tōru para que ela possa se casar com ele, já que sua família está com dificuldades financeiras e que o casamento arranjado seria a solução para seus problemas financeiros.  Antes que Nagisa possa ler a carta, Tōru a intercepta e a envia a  Honda, com o detalhe da perversidade de um corvo morto junto à carta. Isso marca o fim de seu namoro com Momoko e, em outubro de 1973, é revelado que Honda descobriu o ardil usado por seu filho adotivo.

Pouco depois, o rapaz terminar o ensino médio e é aceito na universidade, Tōru atinge a maioridade. Ele se torna uma pessoa violenta  e intimidadora dentro da mansão com Honda, para conseguir o que quer a todo momento, ele começa a gastar dinheiro de forma descontrolada e a abusar dos empregados e principalmente das empregadas. E nesse momento, o plot tem uma nova torção. Toru sabia que o velho era dado a excentricidades, e que afastara-se de amigos e até mesmo parentes por achar que estes só queriam seu dinheiro. Ou seja, Honda não tinha aliados por perto dispostos, em caso de derrocada, a sentirem compaixão do velho juiz. Em 3 de setembro de 1974, Tōru descobre que Honda era na verdade um voyeur,  espionando saliências e putarias de casais em meio ao lescolesco nos parques da cidade. De posse da informação, a divulga na imprensa com o objetivo de declarar incapacitado o ex-juiz e tornar-se único curador da fortuna do velho.  

No final do ano, já com plenos poderes na casa, na fortuna e fazendo o que quer, o jovem vai a uma festa de Natal organizada por Keiko onde acaba por ser o único convidado. Keiko revela as intenções de Honda em adotá-lo, avisando que, em suas reencarnações anteriores, o jovem morreu quando completou 19 anos, o que acontecerá em 1975. Keiko avisa que, se isso não acontecer, Tōru não será a reencarnação que Honda esperava. No fundo o que Keiko argumenta é que Honda foi movido por motivos nobres ao adotar o rapaz, já que sendo a reencarnação de Kiyoaki Matsugae, e entregue a sorte naquele posto de observação marítimo, om destino o mataria aos vinte anos. Chocado, sem saber que ela tinha a informação e o controle visual do que acontecia na mansão, o jovem, poucos dias depois, tentará suicídio ingerindo metanol, mas sobrevive com sequelas de cegueira, descobre que Keiko o traiu e se refugiando-se na velha amiga, a doidinha Kinue. Ele que sempre acreditou na sorte, passou a entender que não existem eleitos, vai morar numa espécie de casa do caseiro da mansão, sendo desprezado por todos, inclusive os empregados da casa. Por fim, já de posse de sua capacidade de executar atividades e realizar atos da vida civil, Honda acabará por chegar à conclusão de que Tōru não era, de fato, a reencarnação de Kiyoaki.  Após a visita a um templo budista, sob a liderança de Satoko, uma abasdessa,  tem a revelação durante uma conversa que ninguém chamado Kiyoaki Matsugae passou por lá, nunca.  

Mesmo com algumas passagens dando aquela resvalada no novelão, o desfecho dramático de O Declínio do Anjo torna este livro, um livraço. Amarra  os temas da decadência, corrupção do indivíduo, o declínio dos valores tradicionais japoneses, a essência da filosofia budista e a visão apocalíptica do mundo moderno.

Pouco depois de escrever as últimas linhas deste romance, Mishima suicidou-se, praticando seppuku. Os motivos do suicídio, e da sua angústia com o fim das ilusões, da falta de reconecimento para o Nobel, suas  filiações ideológicas de direita  e a admiração por movimentos proto-fascistas, são um capítulo à parte. Melhor, bem melhor tampar o nariz e ler suas histórias que sua biografia mal cheirosa. 

Música do dia. Ando de Bando. Alvaro Lancellotti. 


Nota . Fato literário interessante é que Camilo Castelo Branco escreveu um livro de título homônimo,  Queda de um Anjo, centrado na história de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, um fidaldo minhoto, conservador e defensor da moral e dos bons costumes, que aos ser eleito apra a Assembléia da República, vai para Lisboa, passa a se perder em meio aos encantos da vida da Capital, contrária à moral do Portugal rural e profundo. Calisto acabou por abandonar a vida casta que praticava e que "pregava" aos seus pares e passa a encontrar personagens como a mulher adúltera, ou o deputado corrupto, o malandro urbano... Ao contrário de Mishima, Castelo Branco avacalha com todos os valores... o que é muito bom. 

Amores Encubados

 



Godofredo de Oliveira Neto – Amores Exilados – Editora Record. 239 páginas. 2011.
Amores Exilados é o título do livro décimo segundo livro de Godofredo de Oliveira Neto. Tecnicamente, o livro já havia sido publicado em 1997, numa espécie de livro avant la lettre sob o nome de Pedaço de Santo, mas o autor revisou boa parte do triângulo amoroso em questão e o transformou neste novo artefato literário. Paulo Mendes Campos disse um dia que “por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba. Este novo livro fala, como o próprio título enuncia, do exílio e do amor no plural, e de como o amor acaba, quando acaba. Assim como as saudades e a memória, que se não devidamente preservadas, também morrem aos poucos, Godofredo de Oliveira traça uma urdidura que, entre intrigas e enganos, carregada de tensão amorosa, militância política e a própria desconfiança patológica dos envolvidos nos movimentos revolucionários, leva ao limite o horizonte resolutivo das vidas clandestinas envolvidas.
A estória se centra no triângulo amoroso entre a francesa Muriel Sandrine Charlotte Leroux, o catarinense Fábio e seu companheiro de militância, o baiano Lázaro da Costa Costa, ambos exilados em Paris nos anos de chumbo - fazendo parte da mesma organização guerrilheira, a Aliança Socialista Libertadora. Os dois brasileiros vivem na clandestinidade e, exilados em Paris, fazem de tudo para se manterem longe dos problemas políticos internos do país e principalmente longe de problemas com a imigração francesa. Antes como imigrantes a exilados, na solidariedade forjada fora, recriam sua lógica de inserção e sociabilidades tentando participar do maior número de associações e grupos de debates possíveis, frequentando as reuniões com a comunidade brasileira de Paris e associações francesas na Maison de l'Amérique Latine, na Maison du Brésil da Cidade Universitária e na Mutualité. Era como se o exílio implicasse numa forma fatal de solidão e alienação e o reverso disso fosse a socialização. Uma sensação útil, verdadeira e válida em que por isso mesmo fosse tão importante estar unido ao amálgama dos estrangeiros exilados numa espécie de rede. Nessas redes de solidariedade discute-se política, arte, cultura, mas mais que isso, é onde os imigrantes aprendem sobre si próprios, dividindo perrengues e soluções, tais como conseguir um trabalho ou tal almejado estatuto de refugiado, afastando o fantasma do carimbo de indocumentando e evitando assim a deportação. Aprendem mesmo, por meios mais prosaicos, por onde manter contato com o Brasil usando telefone público em Denfer-Rochereau, que funcionava sem ficha, direto, de graça – tal como o mítico orelhão da Telerj, na Praça Tiradentes no final dos anos 1980. No orelhão de Denfer-Rochereau preço era sempre alto, pois o risco de ter as conversas gravadas pelos serviços de informação da França era sempre um medo a ser considerado.
O exílio, aliás, é um capítulo à parte: A solidão em alguns, a estranha alegria em outros, a angústia na maioria. O universo dos exilados era esse. A insegurança psicológica ou levava a abraçar com exagerado ardor o país do exílio ou a abominá-lo.” Outro, é o amor, ou o que se pensa de que é feito o amor. Godofredo, lá pelas tantas diz, Amar no exílio potencializa a sensibilidade” para o bem e para o mal, como fica claro no turbilhão obsessivo em que Fábio embraca na paixão por Muriel, que tal como uma espécie de Capitu, negocia de maneira sutil com as paixões de ambos, Lázaro e o próprio Fábio. No melhor estilo da dúvida deixada por Machado de Assis, Godofredo conversa bem com essa tradição literária “…Dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu…. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca….” E isso fica claro numa das discussões entre Fábio e Muriel, antes da partida definitiva desta: Muriel fitava o companheiro. Parecia que ela não piscava; mais ainda parecia que as palavras diziam uma verdade, os olhos outra. Fábio escolhesse entre o verbo combinado, decorado, imitado e o cromatismo rebelde, livre, desconhecido.”


Fica evidenciado, assim, que para os dois brasileiros, mesmo apaixonados, ambos encaram de maneira distinta a solitude e a parceria, nas suas mais intimas interseções e tangências. Os enquadramentos do que é o amor, e de como ele vai terminando, tremulam e se desfocam de maneira distinta nas percepções do baiano e do catarinense. Lázaro o encara como algo fluido, na cabeça de Fábio como uma conquista onde a fidelidade amorosa é uma desesperada elipse que se opõe à realização da paixão. Os motivos são muitos. O ciúme, a parnóia, o abuso de tranquilizantes, as memórias traumáticas da tortura e das ações guerrilheiras das expropriações a bancos – por vezes, com desfechos trágicos – sobrepõe-se e atravessam o tempo todo a memória e as ações de Fábio. Outra coisa que não ajuda nada é a presença constante de Lazaro, que faz com que Fabio se sinta paranoicamente ameaçado e traído. Raiva, ódio e ira passam a se manifestar, borrando o equilíbrio do triângulo – que para Muriel e Lázaro era algo aparentemente natural. Ou seja, Eros, o propulsor da vida, dá lugar a Tânatos, sinonímia de ódio e agressividade, e todo o coletivo de significados onde pulsa o sentido de morte como fim. Dessa maneira, os amantes se deparam com a impossibilidade da posse real do ser amado e optam pela morte, pela perda, ou qualquer outra coisa. E é assim que Lázaro, o dissidente, o amigo de ala, o ex-companheiro de Muriel está lá o tempo todo. Pelo menos nos pensamentos de Fábio. Tá lá no valete, no meio das cartas, no jogo de búzios, no retorcido do croissant, no disco do Geraldo Vandré presenteado pelo baiano. O baiano está em todo o canto, e o pior é que o baiano é um dos melhores amigos de Fábio.
O inferno na cabeça de um Fábio atormentado pelo seu passado recente de tortura, não estanca só com a prensença de Lázaro. Para piorar o baiano chama-a de Melusina e conhece alguns de seus segredos, sabe por exemplo, um pouco da difícil história de infância da francesa em Saint Bonnet de Salers no Cantal, perto de Aurillac. A mãe tinha matado o marido, quando a garota tinha sete anos. O pai de Muriel era na verdade um marinheiro grego, foragido de uma cadeia e que na fuga passou uma noite na casa do casal. Nasceu Muriel. O resto é a história que cruza o caminho do catarinense e do baiano, fazendo-os dividir a militência e as atenções da mesma mulher. Nesse contexto não teria como o ressentimento e as desconfiança de Fábio parasse de crescer, em proporções distorcidas.
No decorrer da leitura, não dá para deixar de associar, mais de uma vez, nossa Melusina com a Jeanne Moreau no filme de Truffaut, Jules et Jim, que o português chamou de Uma mulher para dois. Guardadas as proporções, a primeira metade do filme volta à memória quando a personagem Catharine, se une a Jules e depois da guerra, onde Jim e Jules lutam em campos opostos, acaba por se reaproximar de Jim. Algumas cenas do filme ficam vívidas no decorrer das linhas de Ameores Exilados. Mas as semelhanças param ai.
Godofredo constrói os personagens não em contradições, mas por descrições estanques, tornando precário entender mais de cada um, a não ser pelo que é dado pelo narrador em terceira pessoa. Talvez essa fosse uma das entratégias do autor, já que eram todos exilados e estranhos para eles mesmos. Até mesmo Muriel que fugia de seu passado, não deixava de ser uma exilada de si. A estratégia de Godofredo ao narrar é muito interessante, combinando quase que simultaneamente cenas do presente com flashbacks do passado de militância no Rio de Janeiro. Numa mesma tomada, estão todos os dissidentes jantando animadamente no apartamento de um amigo argelino em Paris e no parágrafo seguinte a cena da fuga pelo Estácio a caminho do Largo de São Francisco.
Essa estratégia persiste até a assembléia derradeira em Paris, quando Lázaro e Fábio sofrem um expurgo no dia 23 de setembro de 1973 - por razões meramente morais, diga-se de passagem - e são convocados para o retorno ao Brasil, entrando pela Bolívia, visando uma nova ação revolucionária. No Rio de Janeiro receberiam um envelope com instruções, alojamento e as armas. A partir desse momento, a estória ganha contornos interessantíssimos pois, pouco a pouco, a longa viagem de volta, na vida do exílio no exílio alimenta reflexões que abrem caminho para a revisão de suas certezas políticas. Lázaro, por exemplo, reavalia a luta armada e a tomada pura e simples do poder pelos operários e camponeses como um erro de adolescência ou de equívoco mesmo, mas encara o retorno de maneira menos dramática que Fábio. Fábio cruza fronteiras mais sensíveis. Não tem nada a perder depois de perder tudo o que um dia foi Muriel. Como o próprio título enuncia, neste livro, o exílio e o amor são sentimentos no plural : O amor adquire várias formas de afeição, e o exílio é muito mais que apenas um sentimento geográfico.


Musica do dia. Tristes Trópicos. Itamar Assumpção