Muros

Lendo essa reportagem da BBC, nesta semana - onde sobra até para o Rio de Janeiro - , chego a uma conclusão gravíssima... somos todos figurantes de uma promessa sem premissas. Quem não se lembra no final da década de 80 de Reagan desafiando Gorbachev, Tear down this wall!. Vivemos a segunda metade do século XX forçados a pensar que aquele muro construído em 1961 representava a opressão. O problema é se dar conta do engano tarde, tão tarde.



http://news.bbc.co.uk/2/hi/in_depth/world/2009/walls_around_the_world/default.stm

Matias na Cidade

“Por que é que não consigo viver feito os demais?
Entre albums de famílias, bens, trens, mobília e paz”
Matias na Cidade é o primeiro livro de Alexandre Porto. Um livro ágil e veloz que narra em terceira pessoa quatro dias da vida de Matias Grappeggia. O livro nos fala de um homem aparentemente bem-sucedido, aparentemente bem casado, pais de dois filhos e que considera sua vida uma vida aparentemente equilibrada. Em suma, um homem de classe média, visível em qualquer grande centro urbano. Visto de longe, Matias inspira confiança em cada passo. Sua segurança se confunde com arrogância numa carreira profissional onde alcançou o ápice. Mas as coisas não são bem como parecem. Certo dia o protagonista desperta num quarto de motel, nu, sem dinheiro e sem memória imediata. Desde esse fatídico dia Matias torna-se um homem angustiado e aflito com a iminente perda de memória, e ao despertar após quase trinta horas de sono, tenta a todo o custo, sem sucesso, lembrar da prostituta com quem passara a noite.

Ao acorda nauseado, vomitando, mas não necessariamente bêbado, decide procurar Henrique, o médico e amigo, para uma bateria de exames detalhados a saber se havia sido intoxicado. Nesses dias passa por uma via crucis pessoal. Imagina-se gravemente doente, fragilizado, desconhece-se, definha por dentro com a sua própria condição, certifica-se que seu casamento é uma falácia e em meio ao suspense de quem seria aquela mulher misteriosa do motel, busca obsessivamente por respostas, por uma cura talvez.

Aos poucos descobrimos nos detalhes de sua vida que Matias é um cidadão desencantado com a promessa de estabiliade e felicidade conjugal. Uma pessoa distante no trato com a família, com os amigos - que apenas aparecem para fins utilitários ou políticos -, e com os empregados. Nos detalhes. No sexo. Nos detalhes do sexo com a esposa, após um jantar na casa de amigos. Na impaciência. Na relação distante com o filhos e netos. Na distância. No detalhe do bilhete deixado para a mulher anunciando que iria fazer um checkup...

“S.
Vou fazer uns exames para o meu check-up e passarei a noite na clínica do Henrique. Voltarie amanhã de manhã. Não se preocupe, não é nada sério. Beijo, M.”


Nos pequenos detalhes, em tudo arde as imagens de um para o outro. Assim, sem mais, Matias procura constantemente outras mulheres. Procurando o tempo todo encontrar alguém que bastasse para ele povoar sua solidão, luta paradoxalemente contra a falência dos planos de juventude. A infelicidade conjugal não é uma arma para ferir a mulher, ao contrário, é a maneira que Matias encontra para manter convívio com Susana, sua esposa. No convívio dos dois não há o demoronamento das grandes crises, nem a violência das grande discussões. Ele nem sequer cogita em momento algum deixá-la, e vice-versa. Nenhum dos dois quer ir embora com asco, sem olhar para trás, preferindo a hipótese de que, como diria Lygia Fagundes Telles, o amor apodreça e se torne insuportável seu cheiro. Preferem a hipocrisia da família tradicional brasileira: marido, esposa, dois filhos e respectivos amantes. Tudo em nome da paz conjugal.

Em realidade, a esse pântano conjugal agregam-se outros mistérios no decorrer dos três dias restantes. Matias descobre-se só em seu universo de conforto e consumo onde o que o incomoda de fato é a cor e o modelo de seu carro. Os resultados dos exames parciais não revelam grande coisa. Os exames finais, o autor não nos permite saber aumentando ainda mais a incógnita sobre as neuroses de Matias. Susana descobre-se grávida já perto da menopausa. No enterro de Matias, constam apenas os dois filhos e os netos, Susana, e alguns poucos.

Last but not least, encerro fazendo beiçinho literário de crítico sapiente da Folha Ilustrada dizendo que a terceira pessoa é artifício seguro que o narrador usa para manter a distância tácita entre o desprezo e a compaixão por um protagonista ‘galinha’, hipocondríaco e solitário. Artifício eficiente, também, para exibir o fio condutor do enredo relacionando as personagens a um único vínculo, e por isso talvez apresentando-as um tanto estanques, de fato, como se fossem apenas acessórios da órbita de Matias. Certamente há algum deslize para o pseudolírico nas últimas passagens quando tenta chegar a casa de Orlanda na periferia para o batizado da neta da empregada e pára inopinadamente numa birosca para tomar uma cerveja e jogar sinuca com um desconhecido. Lá encontra uma balconista de com quem transa naquela tarde esquecendo-se de todos os demais compromissos - sem dúvida uma cena inverossímil. Pergunto. Houve ou não certo exagero nessa última possibilidade de felicidade romântica? Alexandre Porto certamente diria que não. Eu acho que sim, que ele aliviou a barra do seu protagonista. Enfim...
Há de se ler, Matias na Cidade!
Nota. Esse livro vira filme. Anotem.
Música do dia. Tarzan, Filho do Alfaiate. Noel Rosa.

Versos de Vida y Muerte


H.aruzei ha-h.ayim ve-ha-mavet

Uns dias após a Organização de Direitos Humanos Anistia Internacional (AI) acusar o governo de Israel de negar aos palestinos o acesso livre à água potável, termino de ler a tradução espanhola de H.aruzei ha-h.ayim ve-ha-mavet de Amos Oz.

Versos de vida y muerte é uma novela onde nada é o que parece ser. O livro inicia com um narrador, que é um escritor, prestes a dar mais uma conferência onde imagina que o público exigirá dele frases de efeito, explicações precisas sobre a alma humana, exposições de seus métodos de trabalho... enfim tudo sobre o que ele não está absolutamente interessado em falar. Na tentativa de postergar o encontro, o autor dá voltas antes de chegar a conferência, e enquanto senta num bar e sorve um café, imagina que as pessoas à sua volta são personagens, tão ficcionais quanto suas próprias invenções. Sem dúvida uma novela muito mais leve, mas nao menos envolvente que A Tale of Love and Darkness, onde narra em forma auto-biogr’afica sua infância em Jerusalem ainda sobre o fim do Mandato Britânico sobre a Palestina e desemboca no fim tragico e chocante que é o livro.

Em Versos de vida y muerte as personagens captadas pela câmera do autor representam figuras urbanas, ao menos me pareceu, com aparência distinta diante da sociedade, mas com dramas e conflitos comuns a qualquer ser humano. Dramas que muitos tentam esconder dentro dos armários ou debaixo dos tapetes. Dessa maneira, no perfil destes é delineada uma temáticas universal, os jogos de poder entre duas pessoas inteligentes, entre um homem mais velho e experiente e uma mulher mais jovem, solitária e fragilizada. Dentre os personagens secundários que vão se formando em sua imaginação, está a garçonete Riki; dois amigos anciãos que sentem a falta do agonizante amigo Ovadia Hazzam; um redundante e infeliz jovem poeta chamadoYuval Dahán Dotán; sua musa inspiradora, uma amante da cultura Miriam Nehorait, a qual as crianças da rua a chamam de Miriam A Terrivel; um jovem da platéia que ironiza uma de suas perguntas, e por fim o próprio mediador da conferência. Para cada qual ele vai criando uma estória, medos, crenças, uma identidade própria e um destino inalienável. Na conferência, que não dura muito, felizmente, falaria de Zefaniah Bet Halahmi, um poeta já falecido que ainda em vida, ainda no tempo do processo de formação do Estado, escrevia para o jornal Davar Hashavwa sobre temas da atualidade tais como a imigração, os campos de refugiados, a conquista do deserto, os incidentes fronteiriços, o terrorismo. Mas o que fascinava o autor em Zefaniah Bet Halahmi era sua obra em si, Versos de Vida e Morte. Na saída de uma conferência da qual não esperava lá grande coisa, encontra Ruhele Reznick, uma mulher real, uma jovem solitária e pouco atrativa que vive com um gato chamado Joselito. O narrador é um homem separado já duas vezes e Ruhele, que apresenta um fresco semblante desprovido de defesas. A ligação entre os dois, em meio a vacilações por parte de Ruhele , acontece intensamente, pois ela revela que conhecera o poeta Zefaniah Bet Halahmi, quando este frequentava a casa de sua família. Podería-se falar muito mais da relação intelectualizada que ambos alimentam um pelo outro. Ela pelo autor famoso que decide abordá-la, e ele pela jovem entusiasta. Mas o narrador é um caso à parte. Cria e se compadece de suas criaturas, por duvidar o tempo inteiro se si, de sua competência como narrador. Prova disso é a primeira página da novela, onde o narrador desenlaça uma série de questionamentos sobre a autenticidade do ato de escrever. Oz põe em cheque aquela velha ladainha que encontramos em algumas entrevistas de escritores, geralmente jovens, que falam da sinceridade e do sofrimento do ato, como se o sofrimento implicasse na sinceridade. Oz ri – imagino. Uma novela de imagens belas que duvido recomendar aos menos sensíveis.

Ano Grotowski



O último número da American Theatre Magazine traz uma reportagem especial sobre um dos diretores de teatro mais importantes e erráticos da segunda metade do século XX: o polonês Jerzy Grotowski. Mais conhecido como o inventor do Teatro Pobre, Grotowski, defendia uma forma de interepretação baseado no trabalho psiquico do ator, mais ou menos como Stanislavski postulara em seu livro A Construção da Personagem. Há certo exagero em afirmar que Grotowski privilegiava a expressão corporal sobre a palavra, o cenário, o figurino, visando o diálogo direto com o público. Há muito exagero, alimentado diretamente pelo próprio diretor que tornava seus retiros com os atores, exercícios quase tção dolorosos quanto os que Artaud proporcionava.

A UNESCO definiu 2009 como o Ano Grotowski. E eu modestamente muito recomendo o documentário With Jerzy Grotowski, Nienadowka 1980 e as partes de Devising Teatre: A Practical and Theoretical Handbook de Alison Oddley, sobre o diretor.

Música do Dia. Yo-yo Ma. Obrigado Brazil. Bodas de Prata & Quatro Cantos ( Gismonti)

Incêndio destrói obras do artista plástico Hélio Oiticica

O Globo. Dias atrás.

RIO - Um incêndio na casa da família do artista plástico, pintor e escultor Hélio Oiticica no final da noite desta sexta-feira, no Jardim Botânico, Zona Sul, destruiu 90% do acervo das obras de arte do artista, um dos fundadores do movimento neoconcretista. Segundo o arquiteto César Oiticica, 70 anos, irmão de Hélio, cerca de duas mil peças do artista, morto na década de 1980, foram queimadas, num prejuízo estimado em US$ 200 milhões. De acordo com a família, a coleção não tinha seguro. Ninguém ficou ferido e as causas do incêndio ainda são desconhecidas.
- Não tinha seguro, nem a casa nem a obra do Hélio. Fizemos um estudo, mas o valor era muito alto, não lembro mais qual era a cifra. O valor era tão alto que ficou inviável. Poderíamos fazer seguro contra incêndio que cobrisse só a casa, e não o acervo, mas acabamos não fazendo isso, decidimos arcar com os riscos - disse César.
De acordo com o arquiteto, o fogo começou por volta das 22h. Ele contou que jantava com a mulher e um grupo de amigos quando sentiu forte cheiro de queimado. Bombeiros do quartel do Humaitá foram chamados para apagar as chamas. Abalado, César disse que 90% do acervo do irmão - avaliado em 200 milhões de dólares - foi destruído pelo fogo.
- Qual a justificativa que vamos encontrar para uma tragédia como essa? - lamentou o arquiteto. - Foi a maior tragédia que poderia acontecer para a cultura brasileira. Sem dúvida alguma, a única vítima dessa tragédia foi a cultura brasileira.
O arquiteto, no entanto, descartou a hipótese de um incêndio criminoso. Segundo César Oiticica, no ateliê havia controle de umidade e temperatura para manutenção das obras, além de alarmes de presença e anti-incêndios. O tenente do Corpo de Bombeiros Yuri Manso informou que as chamas consumiram as obras com rapidez. Ainda de acordo com o oficial, só após laudo técnico é que será possível descobrir as causas do incêndio.
Segundo César Oiticica, entre as obras destruídas pelas chamas estavam quadros, documentários e livros. Obras consagradas como Bólides e os Parangolés - a primeira manifestação ambiental coletiva, envolvendo capas, barracas, estandartes e passistas da Mangueira, na mostra Opinião 65 - também foram destruídas. Só se salvaram os trabalhos que estavam armazenados em CDs e no computador da casa. Todo o acervo fotográfico do pai do artista, o renomado José Oiticica Filho, também teria se perdido no incêndio.
Considerado um dos mais revolucionários artistas de seu tempo, Hélio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro, em julho de 1937. Ele morreu em março de 1980, após sofrer um AVC. Ao lado de nomes como Lígia Clark, Amílcar de Castro e Ferreira Gullar, Hélio participou do movimento neoconcretista e teve obras expostas em âmbito internacional.
Entre seus trabalhos mais conhecidos estão os parangolés (espécie de capas coloridas, arte para ser vestida) e penetráveis (instalações). É autor da conhecida frase "Seja marginal, seja herói", que escreveu em uma bandeira sobre a foto de um traficante morto publicada em um jornal carioca em 1968, durante a ditadura, e foi um dos grandes inspiradores do movimento tropicalista com sua obra "Tropicália".
O artista viveu de 1970 a 1978, Oiticica viveu em Nova York, onde participou da mostra Information, realizada pelo MoMA (Museu de Arte Moderna).
Em 1981, um ano após a sua morte - em 22 de março de 1980 -, foi criado no Rio de Janeiro o Projeto Hélio Oiticica, para preservar a obra do artista. A Secretaria municipal de Cultura do Rio criou o Centro de Artes Hélio Oiticica em 1996.
Para o diretor da Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, Jones Bergamin, o maior legado de Oiticica eram seus projetos e anotações.
- O problema é que as obras dele existem espalhadas em coleções particulares e museus mundo afora, mas seus projetos estavam todos aqui. O valor artístico é muito maior que o financeiro. É uma perda incalculável - disse Bergamin em entrevista à Globonews.



Nota 1. Hélio Oiticica, Tom Zé e Torquato Neto foram os maiores artistas brasileiros do Torpicalismo. Para se ter uma idéia de como a Tropa de Elite Baiana tratava-os, vale sempre a pena conferir o "Os Ultimos dias de Paupéria" de Torquato Neto, e mais recentemente o epistolário entre Oiticica e Torquato - mostrando a fraternal amizade entre os dois - reunido num grande livro organizado pelo Paulo Roberto Pires chamado "Torquália { do lado de dentro }"
Nota 2. Metaesquema n. 348. 1958. MoMA Collection.

Nota 3. O que um acervo dessa magnitude estava fazendo na casa da família e não no Centro Oiticica, ou no Museu de Arte Moderna ou em qualquer outro museu? E por que não tinha seguro? E agora que estão reduzidas em 90% quanto não valerão as obras restantes? Golpe de mestre das moiras, que certamente irá beneficiar alguém...

Orfãos do Eldorado


Ainda que Borges fizesse seguidas alusões ao Inferno de Dante, sempre relutou em admitir o uso direto de seus termos em El Aleph. A novela Órfãos do Eldorado segue em vias trasnversas pelo mesmo caminho numa telúrica viagem pelo ambiente cultural e mítico das amazônias. Não diria que se trate de um romance regionalista, pois tenho muitos problemas com este rótulo que me causa urticária e má digestão. E imagino que Milton Hatoum, secretamente, vivendo hoje em São Paulo, trama em seus livros contra esta, diríamos, lenda criada pelos mudernos para devastar toda a forma literária que não fosse mudernista. Hatoum simplesmente manda o Muiraquitã para as cucuias e reescreve numa prosa límpida sem a perda poética, uma estória dos anos de entre Guerras, quando o ciclo da borracha, dos barões do látex e até mesmo das invecionices de Henry Ford com sua Fordlândia eram apenas meros espectros da opulência passada.

Bem, para início de conversa é uma novela que de forma alguma supera a Dois Irmãos – para mim, seu clássico. Entretanto, é uma grande novela pela elegância com que Hatoum apresenta a fracassada saga de Arminto Cordovil, durante a fase de decadência econômica do chamado ciclo da borracha. Arminto é um desses herdeiros dos anos de fausto, é um jovem manauense, que carrega o Cordovil no sobrenome, ou seja, vem de uma linhagem de empreendedores da selva que a ferro e fogo desvendaram - ou pensaram ter desvendado - os segredos do “Eldorado.” Com a morte do pai, torna-se um jovem rico, "órfão" e herdeiro não apenas de uma tradição que começa com o avô Edílio, passando pela sombra sempre pesente do pai Amando, mas também de uma próspera empresa de navegação que leva as bolas de latex do interior da floresta à embocadura do rio Amazonas.
[...]
Eu não tinha a obstinação do meu pai. Nem a esperteza. Amando Cordovil seria capaz de devorar o mundo. Era um destemido: homem que ria da morte. E olha só: a fortuna cai nas tuas mãos, e uma ventania varre tudo. Joguei fora a fortuna com a voracidade de um prazer cego. Quis apagar o passado, a fama do meu avô Edílio. Não conheci esse Cordovil. Diziam que ele ignorava o cansaço e a preguiça, e trabalhava que nem um cavalo no calor úmido desta terra. Em 1840, no fim da guerra dos Cabanos, plantou cacau na fazenda Boa Vida, a propriedade na margem direita do Uaicurapá, a poucas horas de lancha daqui. Mas morreu antes de realizar um sonho antigo: a construção do palácio branco nesta cidade. Amando inaugurou a casa quando casou com minha mãe. E passou a sonhar com rotas ambiciosas para os seus cargueiros. Um dia vou concorrer com a Booth Line e o Lloyd Brasileiro, dizia meu pai. Vou transportar borracha e castanha para o Havre, Liverpool e Nova York. Foi mais um brasileiro que morreu com a expectativa de grandeza. No fim, eu soube de outras coisas, mas não adianta antecipar. Conto o que a memória alcança, com paciência.
[...]

Homem sem disposição empresarial, que por ingenuidade ou irresponsabilidade, perde pouco a pouco o império deixado pelo pai, evidenciando seu descaso para com o espólio - para desespero de Estiliano, uma espécie de avatar, um homem de muitos silêncios e procurador dos Cordovil -, o Arminto que conta a estória é evidentemente um homem velho que olha para sua vida com o ceticismo dos que pouco se importam com o porvir. Em sua tentativa de narrar a própria vida, conclui pouco a pouco que teve uma mãe morta precocemente e da qual somente restara um rosto em preto e branco numa fotografia rasgada, um pai que até o momento de sua morte no meio da praça da Vila Velha não passara de um mero desconhecido, e uma paixão que por algum motivo misterioso ou velado tornara-se irrealizável. Esta paixão tem um nome Dinaura. Uma das órfãs das carmelitas em Vila Bela, que lê romances e enfeitiça Arminto para o resto da vida levando-o à degradação. Ou seja, é como se a fiação das moiras o imolassem numa tapeçaria de detalhes inverossímeis cercados por lendas e mitos encalacrados na oralidade da floresta e traduzidos por Florita – sua iniciadora sexual e oráculo tradutor entre o mundo mítico inacessível e o desamparo da realidade crua.

Os motivos de sua decadência moral e até mesmo física, estão conectados. Com a mesma intensidade que a paixão e a busca obsessiva por Dinaura (uma orfã por quem se apaixona após, esta, digamos assim em linguagem figurada, dar-lhe sua muiraquitã no meio de uma moita) o persegue, afugenta-se com todas as forças da sombra dominadora de um patriarca quase que onipresente, mesmo depois de morto. Pensando bem, ambos, metáforas do Eldorado. E o Eldorado de Arminto é uma espécie de meio caminho entre a lenda e a realidade onde as artimanhas de sua memória tentam dar forma à espécie de limbo danteano (ou dantesco?) onde estão os carentes de batismo. Onde está a suspeita de um incesto. Onde não está a razão. Onde, suposta e ironicamente, encontra Dinaura. Onde o Eldorado permanece velado....

[…]
Na porta vi o rosto de uma moça e fui sozinho ao encontro dela . Escondeu o corpo, e eu perguntei se morava ali.
Moro com minha mãe, disse ela esticando o beiço para o outro lado do lago.
Onde estão os outros?
Morreram e foram embora.
Morreram e foram embora?
Ela confirmou. E reapareceu aos poucos até mostrar o corpo inteiro, retraído pela timidez e desconfiança.
Trabalhava nesta casa?
Passo o dia aqui.
Conhecia uma mulher… Dinaura?
Recuou um pouco, juntou as mãos, como se rezasse, e virou a cabeça para o interior da casa.
A sala era pequena, com poucos objetos. Uma mesinha. Dois tamboretes, uma estante baixa, cheia de livros. Duas janelas abertas para o lago do Eldorado. Parei perto do corredor estreito. Antes de eu entrar no quarto. O prático e a moça me olhavam, sem entender o que estava acontecendo, o que ia acontecer.

[...]

Dinaura? Outra? Um espectro? Mais uma das alucinações da selva? O desgramado do Hatoum não revela(!) tornando as suspeitas do final deste livro tão eletrizantes quanto as incógnitas que pairam na cabeça do narrador de Dois Irmãos... sua incerta descendência... Yaqub ou Omar? Ou seja, o Aleph de Hatoum continua velado. E isso é ótimo!


Nota. A propósito, caro senhor Milton Hatoum, venho por meio desta nota aconselhar-lhe que vá escrever bem assim lá no raio do Japú que o parta!

389 Miles


389 milhas são 626.034816 quilômetros. Isso foi o que percorreu o rapaz Luis Carlos Davis para realizar um documentário chamado 389 Miles: “Living the Border, que assisti ontem.

O jovem diretor, Luis Carlos, nasceu na fronteira dos Estados Unidos com o México, em Ambos Nogales e conhecendo essas duas realidades compôs seu primeiro documentário com o que há de mais característico das duas culturas, por um lado o fascínio que o americano tem pelas road trips e, por outro, o drama de milhões de imigrantes ilegais que atravessam a fronteira americana com o México ao longo de suas 389 milhas.

O documentário não é uma obra prima mas é interessante como forma de exibir as imagens e as estórias das jornadas de milhares de seres humanos que cruzam a fronteira do México com os Estados Unidos. Imagens que muitas vezes apenas lemos nos jornais. Figuras, tais como coiotes, polleros, contrabandistas, que conhecemos pelos seus substantivos e nada mais. Estórias de sobrevivência, de tráfico humano, de estupro e corrupção em ambos lados da fronteira.

A milha um da viagem começa em Douglas no Arizona, onde um agente de la Migra, Patrulha Fronteiriça, apreende dois imigrantes ilegais, um do México e outro da Costa Rica. Este vê uma mulher andando por perto e de forma espontânea e sarcasticamente avisa ao agente e sugere a ele "fazê-la", ou seja, estuprá-la. Um dos pontos altos do doc é a entrevista com um coiote, um indivíduo que atravessa a gente, suborna a polícia e trata de toda a precária infra-estrutura para o cruzamento da fronteira. Um desses homens pode fazer de 200.000 a meio milhão de dólares ao ano – um salário que nem CEO de muita companhia consegue fazer.

389 Milhas: "Living the Border" é uma jornada humana, uma história documentada pelo diretor Luis Carlos Freitas, que cresceu à sombra da fronteira entre o México e Arizona. Ela apresenta a vida, a cru diários de seres humanos comprometidos economicamente, e as potenciais recompensas para aqueles que os exploram. Não existe um lado puramente bom ou ruim, só a parede de aço ou um fio de arame farpado enferrujado e complexa teia de emoções humanas e as questões por eles forjaram a sobrevivência, o tráfico humano, o estupro, a corrupção, o mal ea graça em muitos disfarces. O uso de uma câmera discreta permite que as personagens a falar, simplesmente, honestamente e com dignidade, não importa qual a sua posição sobre a imigração poderia ser. Juntos, eles formam um complexo mosaico humano que vai além do actual debate sobre imigração para explorar as relações humanas forjadas pela fronteira, de um sentimento de um bairro comum em toda a vedação, aos residentes fronteiriços, para vigilante patrulhamento policial ao longo da fronteira, em uma tentativa para selá-lo, os ativistas de ambos os lados da fronteira que estão tentando ajudar os imigrantes em situação irregular em sua jornada dura, traiçoeira e imprevisível. Às vezes a fronteira é pouco visível, apenas uma cerca de arame farpado. Às vezes, é uma parede de aço formidável.

A milha 389 termina em San Luis, Sonora, México em um acampamento de migrantes em um local remoto do deserto onde estão instaladas centenas de maquiladoras, um lugar remoto e de passagem, onde as pessoas esperam para atravessar a fronteira. O documetário é bem preciso em não acompanhar nenhuma história pessoal em particular - me parece que este foi um dos cuidados tomados pelo rapaz - , e consistente em concentrar-se na fronteira em si, nessa marca muitas vezes invisível que desliza no chão e atravessa várias histórias que a costuram em idas esperançosas e retornos deportados, a linha divisória que mostra um mundo pequeno em todos os sentidos.

Uóli



Por força das circunstâncias tenho assistido muitos filmes infantis. È preciso dizer que, gosto de crianças, tolero animais domésticos e urbanos, e não gosto de filmes infantis. Entretanto, WALL.E é um filme direfente. Um filme que me cativou, não por sua sentimentalidade exagerada, mas por sua mensagem subliminar.

Wall.E é um Waste Allocation Load Lifter - Earth Class. Pra resumir, é um sucateiro nos moldes dos antigos burros-sem-rabo que viamos pela cidade puxando uma carroça cheio de entulhos. Wall.E é um robô que compacta lixo, pois a Terra se tornara inabitável a existência humana. Os humanos, que nela habitavam, foram enviados a uma espécie de cruzeiro de luxo interespacial, Axiom, onde a combinação de baixa gravidade e ociosidade transformou seus permanenentes passagerios em paródias preguiçosas deles mesmos em sua obesidade constrangedora. Vários Wall.Es faziam o serviço de coleta e compactação do lixo deixado para trás pelos antigos habitants da terra. O problema é que sem manutenção, sem um óleo aqui, uma correia dentada alí, uma chaveta mal instalada acolá, ou um ajuste na correia dentada, os próprios robôs foram virando sucata, e restou apenas o nosso Wall.E para fazer todo o serviço.

Para começar, Wall.E não se trata de um boneco nos moldes de Pinocchio, em sua ânsia em adquirir forma humana. Wall.E é um robô e ponto. Como robô, não percebe que é solitário. No entanto, seu senso de solidão é um tanto estranho pois sem perceber-se só, já que é um robô, possui um estranho sentido de ausência e passa a colecionar compulsivamente objetos dessa antiga civilização, como lâmpadas, telas de computador, correias, video-cassetes, fitas K7, enfim tudo que encontra pela frente em sua forma petrificada. Não se dá conta de seu fetichismo, na medida em que os artifatos humanos, mais que o valor utilitário de seu uso, revelam um senso de conexão com o passado.

Essa solidão de Wall.E é algo sintomático. Wall.E não fala – a propósito nos primeiros 45 minutos de filme não há sequer um diálogo. Como nos melhores filmes de Lon Chaney, mesmo não tendo a capacidade de diálogo, Wall.E tem uma face expressiva dominada por dois bióculos que tem a capacidade de expressar espanto, alegria, desconfiança e tristeza. Como diria Hannah Arendt, citando Platão, os olhos como janelas da alma.

Mas esse seu isolamento muda quando chega à Terra EVE - Extreterretrial Vegetation Evaluator. Eve chega e transforma a realidade de Wall.E e vice-versa. Ela é só bussiness. Chega para coletar alguma espécie de vida vegetal e reportar a Axiom. Quando encontra Wall.E sua vida também muda pois ele mostra-lhe um outro mundo possível. Um mundo meio remendado, meio aos trancos e barrancos, sequioso de mudanças, mas que funciona e acima de tudo delineia as feições e as cores distintas, mais imprecisas, mais poluídas, da alteridade.

Estive em Lisboa e Lembrei de você



Recebi o livro numa terça-feira e comecei a folhear o“Estive em Lisboa e Lembrei de você” hoje pela noite, aliás ontem. Terminei às duas da manhã, de hoje sábado, pois simplesmente não consegui deixar a saga de Serginho, mineiro de Cataguases que um belo dia decide parar de fumar e acaba indo parar em Portugal como imigrante ilegal.

O livro faz parte da coleção Amores Expressos, que lembro ter rendido muita polêmica infrutífera na época. No livro, que divide-se em dois momentos (“Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar.”), Ruffato conta a estória de Serginho, uma figura pacata, que vive uma vida sem grandes ambições. Os dois momentos expressam bem a tensão que levara a este amanuense modesto, peladeiro de fim de semana e funcionário da pagadoria da Companhia Industrial de Cataguases a parar de fumar, como esse cara gregário e boa praça, sem grandes ambições, acaba por se envolver com Noemi que engravida, forçando-o a casar.

Na primeira parte da história, passada no Brasil, vemos Serginho imerso em problemas não necessariamente criados por ele, mas que por força das circusntâncias vão lhe azedando a vida. Primeiro, uma gravidez indesejada. Segundo, um malfadado casamento já condenado desde o princípio a naufragar. Noemi, moça de “idéia fraca,” podia ter bem dado uma outra solução para o destino de Serginho, mas não, prefere ter o filho. Só que tempos depois, o casamento forçado por Carvalho, pai da moça, começa a dar sinais de esgaçamento. Noemi é instável, “ora prostrada na cama o dia inteiro, sem força para trocar a fralda da criança, ora virando noite sem pregar o olho, numa falação sem fim[...].” Os altos e baixos tornam a relação insustentável. Com a mulher ruim da cabeça, com a responsabilidade de Pierre, o filho, em suas mãos, com um emprego que já andava bamba, e a doença da mãe... sua vida entra quase em rota de colisão. Os Carvalhos decidem então internar a moça numa clínica de repouso em Leopoldina e ainda demandam contra o pobre Serginho um processo por maus tratos, negligência e abandono de incapaz. Natural Serginho se sentir esgotado com tamanha adversidade. A resignação de Serginho frete às circunstâncias da vida parece a de um bunda mole mas não é não. Não é homem de desistir fácil, mesmo com todas as adversidades, bem como lhe dissera certa vez a Mãe Célia, que baixava na progenitora da Irineia, uma de suas namoradas. Um dia conversando com os pinguços no bar, indagado sobre “O que você vai fazer da vida agora, ô Serginho.” “Pro enstrangeiro,” ele responde! Destino: Portugal.

Um pequeno parêntese deve ser feito para dizer que o livro, em meio a toda a ziquizira que envolve a vida de Serginho, tem passagens divertidíssimas, como por exemplo quando Serginho fala do tio Zé-Carlim, com quem dividia o quarto nos tempos de Cataguases, e que era fanático por automobilismo a ponto de espalhar cartazes do Emerson Fittipaldi e de sua Lotus pelas paredes do quarto...e que “por ironia, morreu cedo, nem trinta anos, no trevo da saída de Ubá, única vítima da batida entre um ônibus da linha Belo Horizonte-Muriaé e o Chevette do seu Lino [...]”. Ou por exemplo, quando vai conversar com o lacônico português Oliveira, que lhe dá dicas de como é o avião da TAP, “apertado,” “Tem banheiro?” “Tem Comida no avião?” “Passaporte?”...E de quando na cidade se espalha a notícia de que Serginho vai “pra fora”, e o amigo Ivan Cachorro Doido, assim como eu, um encostado do INSS – vide meu perfil no blog –, começa a procurar imóveis para o futuro nababo Sergio na região da rua Humberto Mauro, onde só há residências de bacanas e que Serginho reluta. O amigo prontamente filosofa, “Depois de conviver” com a civilização em Portugal, “Alta cultura,”não ia conseguir mais aturar o povo de Taquara Preta, sem educação, sem modos nem compostura, desclassificado, “Mas lá só moram os picagrossas,” Serginho rebate.

Vemos que na primeira parte do livro há uma caracterização perfeita do ambiente de Cataguases. Não me furtei de pensar, bem Ruffato está escrevendo sobre um protagonista angustiado em continuar vivendo numa cidade pequena cercada de gente pequena, mas ainda assim escreve sobre um habitat de tipos folclóricos facilmente identificáveis na rua, na sua rua. Na segunda parte do livro, sim, causa surpresa pois Ruffato escreve sobre Serginho já em Portugal como imigrante ilegal brasileiro. Ou seja, está escrevendo sobre uma realidade que não é a sua, que requer inventividade e mão firme para prender o leitor. Ou seja, sem muito exagero pode-se dizer que há um século, um mestre escrevia na periferia do capitalismo, e que hoje dada as circunstâncias que levam milhões de brasileiros como Serginho a emigrar, Ruffato escreveu um livro no centro do capitalismo, sobre a visão do imigrante, em outras palavras sobre a visão do periférico no centro do capitalismo, àquele que não só está à margem da lei mas também de uma cultura que por mais que os acordos ortográficos se esforçem é distinta. Em Portugal, convive com suas limitações e frustrações que vão desde o preconceito das autoridades, a competição férrea dos novos imigrantes vindos de leste europeu, a falta de emprego, de dinheiro e de amor.


A habilidade e a sutileza de Ruffato estão nos detalhes dessa relutãncia e aculturação, na assimilação dos idiomatismos lusos que Serginho vai apreendendo, na fala interiorana de Serginho - que não se perde - revelando a mão segura e inventiva de um dos mais bem-sucedidos autores brasileiros contemporâneos. A solidão, a falta de grana, atenção e carinho fragilizam Serginho a tal ponto que quando nosso heroi encontra Sheila, moça que laputa como buta em terras lusitanas, já nem sabe mais definir os contornos que tornam o amor um troço delicado pra caramba. Num dia, confundindo um flerte com a evocação de uma mítica terra natal, o resignado Serginho leva Sheila para almoçar num restaurante brasileiro, noutro dia vão passear pelos monumentos, e na cabeça de Serginho a solidariedade entre imigrantes que evolui para a amizade o ilude e forma uma frágil e ambígua idéia de amor.

O que admito no Ruffato é sua liberdade de expressão, seu realismo de falas naturais sem a idealização de uma linguagem artificial, tampouco na evocação de uma linguagem pobre. Os personagens incrivelmente reais não alimentam sentimentalismo barato, mas nem por isso evocam a indiferença do leitor. Sua autêntica razão talvez resida no fato de aurtorizar discursos, dando visibilidade, dando voz a personagens que não tem voz, nem na literatura, nem na sociedade. Tais discursos já haviam sido desvelados por Drummond, Graciliano, Dyonelio Machado e uma série de outros autores, mas este, apesar de um livro pequeno, na forma quase de um conto, prova por que Ruffato está entrando para o time da ficção contemporânea no Brasil com uma prosa fluida de personagens aparentemente prosaicos mas não necessariamente vulgares, enredos breves mas não necessariamente superficiais, e um conteúdo denso que foge das banalizações.





Aonde o Vento me Levar


Aonde o Vento me Levar é o título de um dos muitos livros do jovem escritor Manuel Jorge Marmelo. Foi-me indicado por um amigo em comum, meu e dele. Veio com a recomendação: se você gosta de Paul Auster, gostará dele. Apenas disse isso e deixou que eu descobrisse o resto....

Li. Sinceramente, na primeira vista não gostei. Comentei com esse amigo e disse que faltava-lhe algo que nem mesmo eu sabia explicar. Talvez ação, talvez um contorno maior da psicologia do protagonista. Meu amigo insistiu. Conheço esse amigo a suficientes anos para saber que ele não é um leitor amador, que não é um profissional qualquer da literatura, e que assim como eu constata com certo incômodo, que a lógica da narrativa formal causal-linear sofre de uma certa debilidade no relato contemporâneo, agora ligeiro, disperso, fragmentado e superficial; de uma acumulação de superficialidades e lugares comuns. Se insistiu é por que merece uma releitura.

Reli, ontem. Mudei de idéia completamente. Descobri num novo livro um livro muito bom, e uma personagem principal, ainda que imersa numa vida monótona, interessante: o escritor. Explico: a personagem principal é um contador, uma espécie de guarda livros, um pacato funcionário que habita a monotonia e o conforto de um escritório, massacrado pelo cotidiano, e movido pelo sonho de escrever um livro.

O problema é que sua vida, cercada pela solidão e pela racionalidade matemática, não admite erros, falhas, discordâncias. As colunas somatórias do Excel devem estar impecavelmente alinhadas e as contas, no fim do dia, devem bater. E tem um problema maior. Antes de iniciá-la, não tinha uma idéia ou sequer estória definida. Portanto, como todo o escritor, sobre a folha branca deveria inventá-la. Assim, começa pela elaboração de um personagem. Seu personagem principal se chama M.. M. é uma criatura que com o passar da estória torna-se um ser autônomo. Este lhe conta a estória de um grande amor perdido por uma tal Rosa, nome que nunca agradou ao escritor, preferindo chamá-la em seu relato como Atla. Ou seja, o escritor inventa um personagem e o personagem domina o escritor e o conduz por caminhos desconhecidos. Para narrar a estória o contador decide matar Atla no primeiro capítulo do livro que escreve e sugerir a seu personagem que viaje para a Africa a procura de um novo amor. A estória então se torna interessante, pois é evidente que o Eu do escritor se propõe a escrever um livro de viagens baseado nos telegramas enviados por M. da Africa. Há então um jogo interessante entre o criador, que não se sabe bem quem é e a criação deste autor.

Para quem tem familiaridade com os filmes Being John Malkovich ou Eternal Sunshine of the Spotless Mind, pode constatar que há algo em Marmelo que pode-se encontrar nos filmes do brilhante roteirista Charles Kaufman. Ou seja, em meio a estórias aparentemente confusas e enredos inverossímeis, existe um jogo envolvente apresentando-nos um narrador céptico. Na estória de Marmelo, o protagonista, ou seja o contador-narrador, maldiz o excesso de realidade e de monotonia em sua vida. Nessa tensão entre um protagonista rígido e um antagonista livre para viajar, para amar Atla, Amina, Fathma... e para reinventar-se, protagornista e antagonista acabam por intercambiar seus papéis, pois mesmo que o narrador lamente constantemente a abundância de realidade que surge em sua escrita, consegue nessa tensão, entre o que deseja escrever e o que consegue expressar por palavras, realizar o que em suas palavras seja um exercício literário honesto.

Outro paralelo poderia se traçar entre o nosso contador e Daniel Quinn, personagem que persegue Paul Auster em Trilogia de Nova York. A única e irônica diferença é que nosso próprio narrador afirma precipitadamente - “eu sou o manipulador, e M. é o meu títere. E que não reste nenhuma dúvida sobre isso.” - ter controle absoluto sobre M.. Ironicamente, isso deixa de ser verdade no momento em que M. começa a dominar a narrativa com seus telegramas, envolvendo o próprio contador em suas estórias de aventuras e amores na Africa. A questão é que tanto quanto Craig Schwartz conhece John Malkovich, e Quinn muito bem conhece a Auster, desconfio que nosso contador-narrador conhece bem M.. Desconfio de uma ou duas outras coisas mais.

Desconfio, por exemplo, que na verdade M. seja um médico galego que deixou tudo para trás indo trabalhar em Lisboa. O que me leva a suspeitar da real identidade de M. é num de seus telegramas, dando conta que conheceu uma liberiana de nome Fathma por quem se apaixonou. M., através de seus aerogramas enviados ao contador-narrador de Marmelo, oxalá, escreve uma narrativa reinventando-se. Os telegramas, de tom sincero e confidente, não deixam de ser um ajuste de contas consigo, que o contador-narrador de Marmelo vai tratando de desvendar, ao mesmo tempo que vai mostrando sua face extremamente introspectiva. Fathma pode muito bem ser o alter-ego de Oriana ou até mesmo Ondina... mas isso são suposições...

Mas mesmo que o contador-narrador de Marmelo construa uma ficção sobre as imagens criadas por M., e que a partir delas tente fugir de sua própria realidade, ocultando a sua realidade como motor da obra literária, no final, em Londres, quando encontra G., uma colega do curso de contabilidade que prometera guiá-lo pela cidade, tudo passa a fazer sentido: Aonde o vento me levar.
Música do dia. A Desconhecida - Fernando Mendes. E se é pra falar do brega-blues põe ai o Ana no Roberto Carlos - Aliás, vai por mim, se um dia tiveres coragem de escutar o Rei, os dois melhores e raríssimos discos de Roberto Carlos são As Flores do Jardim de Nossa Casa e Ana.

On the Waterfront

Mesmo sabendo que o poço é bem fundo, desconfio há muito tempo a que a delação seja uma das piores coisas da alma humana, e é por isso, confesso, que sempre tive problemas com o enredo do filme On the Waterfront. Terry Malloy, interpretado por Marlon Brando, trabalha no porto de Hoboken em New Jersey, região predominantemente dominada por irlandeses e italianos até pocos anos atrás. O sindicato de estivadores é controlado por Johnny Friendly, um advogado corrupto, e por Charley Malloy, irmão de Terry.

Um dos estivadores que passara a denunciar as atividades ilegais do sindicato, Pop Doyle, é assassinado pelos capangas de Charley Malloy. Edie Doyle, irmã do morto, pede a Terry ajuda para encontrar os culpados. O problema é que Terry colaborara com a captura do irmão de Edie. Com a cara mais dura que alto grau de dureza Rockwell e a consciência pesando mais que liga de molibdênio, Terry promete ajudá-la e decide procurar o Padre Barry que o força a entregar os culpados as autoridades. Ou seja, por amor, Terry que é tão mafioso quanto os outros, decide dar combate a toda a corrupção que campeia a ação do sindicato. Ou seja, um novelão onde certamente Terry, voilá, na minha psicanálise de banca de jornal, podia bem ser o alter ego do Kazan.


Mas reconheço que o breve monólogo do Marlon Brando venceria qualquer Oscar ainda hoje.


“Remember that night in the Garden? You came down to my dressing room and you said 'kid, this ain't your night. We're going for the price on Wilson'... You was my brother, Charlie. You shoulda looked out for me a little bit so I wouldn't have to take them dives for the short-end money. I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum. Which is what I am. Let's face it.”

Le Colonel Chabert


O conto Le Colonel Chabert foi escrito em 1832, logo após a revolução de julho 1830. Apesar de uma curta estória, Balzac envolve como ninguém o contexto histórico com a urdidura de uma trama melancólica – e diria com muita descontextualização pré-kafkaniana. Coronel Chabert era um herói de guerra que ao lado de Napoleão Bonaparte participara de campanhas vitoriosas. Entretanto, Napoleão morrera em 1822, após a derrota de Waterloo e o ostracismo de Santa Helena. Agora, temos Louis-Philippe d'Orléans no poder – aliás, curiosidade, a filha de D. Pedro I, a infanta Chiquinha de Bragança acaba casando-se com o filho de Louis-Philippe - que com muita dificuldade tenta conter a onda liberal que varre a Europa e desencadeará na Primavera dos Povos.

O problema é que assim como Napoleão de fato está morto, o Coronel Chabert está apenas teoricamente morto. Chabert tinha sido atacado por dois oficiais russos na Batalha de Eylau em 1807 e dado como morto. Neste meio tempo, entre a vida e a morte, um amigo dos campos de batalha, Boutin, fora a Paris levar a notícia da convelescência de Chabert à sua esposa, a jovem Rose Chapotel. Vivinho da Silva, escreve umas quatro cartas a sua esposa que capitunamente – advérbio de modo para Capitú – mantém segredo sobre as cartas e dá entrada na papelada do espólio. Após alguns anos, Chabert descobre que a senhora Chabert casara-se com o Conde de Ferruad passando a ser senhora Ferruad.

A estória vai ficando clara quando Chabert decide, numa manhã de fevereiro, procurar o jovem advogado Derville - que aparece em algumas outras obras como em O Pai Goriot [resumo em caminho] - , que dormia num dos quartos de seu étude, enquanto seus auxiliares rascunhavam petições e revisavam o trabalhos recém-chegados. Uma das petições era fina e i-ro-ni-ca-men-te sobre uma longa peça jurídica, em que o rei Luís XVIII restituía a seus servidores todos os bens não vendidos que estivessem sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários. Entre piadas de mau gosto e o humor dos médicos legistas os auxiliares riam de suas próprias invenções e esperavam que o juiz encarregado do processo ficasse impressionado com a argumentação que teciam.

O Coronel Chabert, a princípio não causa boa impresão a Derville. Sua aparência esfarrapada, degradada e carcomida pelo tempo, causou uma certa reulsa ao jovem procurador, que via em seu rosto pálido a aparêcia triste dos que tinham perdido tudo. Derville, que defendia os interesses de seus clientes no Tribunal de Pimeira Instância do departamento do Sena, era considerado um dos melhores jurisconsultos de Paris. Sua clientela era importante e é pintado por Balzac como um jovem bom, mas que tem um sentido de oportunidade e um faro para o dinheiro bastante apurados. Chabert quer seu dinhero e mais que isso, sua honra restituida. Para isso contata a Derville, que lhe adianta uma pequena monta de dinheiro para que o Coronel pudesse viver com mínima dignidade até um possível acordo entre as partes. No entanto Derville é também procurador do Conde de Ferruad e para evitar um escândalo, propõe às partes um acordo.

Cheque: se Rose Chapotel reconhecesse Chabert, terá de anular seu casamento com o Conde de Ferruad, com quem tem dois filhos. Chabert, não tendo nenhum familiar próximo que pudesse identificá-lo, baseado nos documentos de defunção vindos de Heilsberg, só conta com Rose. Ela, capitunamente, dá uma de João-sem-braço, (perdoe o trocadilho) finge-se de morta, apela para a hipócrita condição de mãe de dois filhos tentando convencer a Chabert de sua fragilidade e condição oprimida. Derville propõe um acordo pois a situação de Hyacinthe Chabert era delicada. Nem seus bens, nem sua honra estavam sob o domínio da Coroa ou sob o domínio público, expropriados durante os períodos revolucionários, portanto a restituição não seria feita por decreto. Além disso, vários motivos tornavam tudo mais complicado. Primeiro, supondo que Rose o reconhecesse, ela incorreria no crime de extra matrimonium corneamentus por ricardisse bigâmica, já que está casada legitimamente com o Conde Ferruad com quem tem dois filhos – e obviamente ela não incorreria no risco. Segundo, os juízes poderiam muito bem anular o primeiro casamento que sem filhos expunha um vínculo frágil entre Chabert e Rose. Terceiro, sendo Chabert generoso e idealista, fizera um testamento endereçando uma quarta parte da herança para obras de caridade. A “viúva” não incluíra no espólio nem prataria, mobiliário, ou dinheiro, apenas propriedades. Portanto, mesmo que reavesse algo, Chabert ficaria com uma mínima parte. Por último... a justiça naquele tempo, na França, era morosa... Chabert era um ansião... assim, Derville propõe um acordo amigável, anulando o registro de óbito e seu casamento. Com isso, por influência do conde Ferraud, Chabert seria reinscrito nos registros do exército, obtendo o grau de general Juruna - na gíria da caserna - com direito a uma pensão.

No dia do acordo, Chabert e Rose frente a frente, não houve acordo. O tempo fechou. Armou-se o maior barraco. Ela o acusava de impostor, ele, por sua vez, afirmara que ela era protitutamente quenga da mais alta piranhuda espécie no Palais Royal. Verdade ou não, ela sente-se ofendida e sai do escritório do advogado chorando, correndo e fazendo beicinho. Porém, fica do lado de fora de sua carruagem esperando por Chabert. Na saída aproxima-se de Chabert toda edulcorada, cheia de lesco-lesco, fazendo questão ele fosse com ela à casa de campo em Crosley. Durante o trajeto, procurou chegar ao coração mole do milico, mostrando o quanto seria desgastante para todos aquela situação. Ficaram lá por três dias, fazendo o quê, eu não sei, nem Balzac revela. Mas o fato é que não chegaram a um acordo. E como madame Ferraud não era flor que se cheirasse, armou uma cena com os criados da propriedade.

Ela queria internar o Coronel como louco no hospício de Charenton. Para isso precisava da assinatura de Chabert num documento onde este admitia sua falsa identidade. Derville longe, não sabia de nada. Ela manda trazer os filhos tentando mostrar a Chabert que ela era uma mãe dedicada, sofredora e penitente, e que se ele continuasse com a demanada ele prejudicaria seus filhos. Ele até aventou a hipótese de virar arrimo de família, habitando a quinta, tendo uns tostões para o jornal e o tabaco. Mas ela tinha outros planos. Encarregou Delbec, um velho secretário, a providenciar, junto ao tabelião de Saint-Leu-Taverny, um documento vago para ser assinado por Chabert. Estes partem para Saint-Leu-Taverny, mas chegando ao cartório e vendo os termos do documento, Chabert decide voltar para a quinta sem assinar nada. Decide pensar no que fazer. Ficar a sós com Rose. Ele espressara seu desprezo por ela e partira.

A situação de Chabert é tão humilhante quanto compassiva. Derville é informado por Delbec que seu cliente reconhecera sua falisade ideológica. Derville decepcionara-se com seu cliente até que algum tempo depois, procurando por um advogado no prédio da Polícia Correcional, encontra a Hyacinthe, condenado por vagabundagem a dois meses de prisão em Saint-Denis. Aproximou-se dele que com um ar estóico e altivo explicou o que se passara naqueles dias na quinta.

Derville entra em parafuso com sua profissão dizendo que “nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar.” E num monólogo ilustrativo expõe sua visão bucólica sobre a condição humana, “Vi morrer um pai, num sótão , sem vintém, abandonado por duas filhas a quem dera quarenta mil libras de renda. Vi queimar testamentos; vi mães roubando seus filhos, maridos reduzindo esposas à miséria, mulheres matando seus maridos e servindo-se do amor que lhes inspiravam para fazê-los loucos ou imbecis, para poderem viver em paz com seus amantes. Vi mulheres dando ao filho do primeiro leito gostos que deviam conduzi-lo à morte, a fim de enriquecer o filho do amor. Não posso dizer-lhe tudo que vi, porque vi crimes contra os quais a justiça é impotente. Finalmente, todos os horrores que os romancistas julgam inventar estão sempre abaixo da verdade. Você conhecerá essas belas coisas. Quanto a mim, vou viver no campo, com minha mulher.”

Música do dia. A Trombone on Tereza Street. Ian Guest. in Vittor Santos, Renewed Impressions.

Alvaro

Conheço alguns Alvaros, mas ainda não conheço os livros do Charles Kiefer,



infelizmente...

A Casa de Alice


Alice é uma manicure quarentona. Ao lado de sua família, Alice segue a lógica de Pangloss e insiste no sonho de ter uma família feliz, a lado da mãe senil, do marido e dos três filhos. A casa de Alice é uma casa tipicamente de classe média baixa. O apartamento é apertado, e a grana nunca chega ao fim do mês. Ou seja, uma realidade não é muito distante, e quase real. Neste contexto, vamos descobrindo aos poucos que os habitantes da casa, de quotidiano bem pacato, frequentam mundos paralelos, com segredos e crendices, e que nos momentos de crise revelam-se pessoas mesquinhas e egoístas.

Talvez este tenha sido um dos ótimos filme brasileiro que eu merecia há tempos assistir. Alice, interpretada pela impresionante atriz Carla Ribas, não é uma mulher linda, mas é uma mulher bonita, atraente, e certamente meio desleixada com sua aparência. Alice, como já disse, se esforça para transformar sua casa num lar. O problema é que em sua relação com o marido já não há amor, portanto não há sexo, e tudo não passa de um convívio de indiferenças. O marido é um homem frio e distante dentro de casa. Na rua tem amigos, bebe, ri e tem até uma amante ninfeta, que por acaso é vizinha. Os filhos são ociosos e problemáticos. O mais novo é apático mas carinhoso, o do meio encrenqueiro e ladrão, e o mais velho michê. A mãe, senil, hipertensa e cega, fragilizada pela indiferença e pelo desprezo dos meninos e do genro. Mas se perguntada, Alice, no salão, garante com ar de banalidade que em casa está tudo em ordem, que os filhos são maravilhosos e que a família vai bem, obrigada. De uma certa forma, Alice mente pois sabe que tudo está prestes a desmoronar, pois sabe que é uma mulher massacrada pelo que o cotidiano tem de mais cruel, a falta de esperança. No entanto, Nilson, um antigo amor, surge meio que por acaso na vida de Alice. Ela volta a se apaixonar, a encontrar uma razão. Mas a antepenúltima viga dessa estrutura frágil cai, quando Alice descobre que o marido tem um caso com a vizinha, uma menina de...14, 13... anos. A penúltima cai, quando é abandonada por Nilson e a última quando se descobre só, irremediavelmente.

O filme é realista. As falas naturais. Os personagens incrivelmente reais. A câmera treme e muitas vezes foca mais nas expressões corporais que na fala do personagem. Não há sentimentalismo barato. Não há recurso artificial algum (flashback, música, narrador…). Enfim, descubro nos extras do DVD uma entrevista ótima com o diretor Chico Teixeira. Descubro nesse meu xará um profissional, um ex-economista com pós-graduação, que chutou tudo para o alto para fazer o que queria, documentários. Pensei: tá explicado. Extremamente sincero e despido de intelectualismo barato, o diretor me convenceu que o filme é uma espécie de documentário sobre uma ficção. Quase como uma nova experiência de linguagem, tão ou mais importante quanto aquela experiência do grupo Dogma 95, sem a soda cáustica de seus roteiros sofríveis, com personagens intelecutalizados, afetados, inverossímeis, apesar das imagens inovadoras. E não é que só hoje pela manhã me veio a idéia que não há uma uma nota, uma trilha sonora no filme inteiro! Tremenda ironia. Nunca pensei que o realismo italiano pudesse se sustentar sem as notas do Nino Rota....


Primer Amor


Primer Amor, é uma novelinha curta e bastante celebrada de Turguenev. Publicado em 1860, o livro é francamente bem escrito, moderno, mas extremamente previsível. Além disso, sofre de um digamos assim pecado original. Se não me engano, por essa época dos inícios dos anos de 1860, Dostoiévski já retornara da Sibéria - já publicara Humilhados e Ofendidos, já traduzira uma penca de novelas de Balzac e andava a escrever o Recordações da Casa dos Mortos. É mais ou menos, mal comparando, como se alguém quisesse publicar um livro nos anos posteriores a 1984, ano de Viva o Povo Brasileiro.

Vladimir Petrovich. 16 anos, ou seja, para bom entendedor pingo é letra. Exalando testosterona pelos poros vai passar umas férias no campo com a família. Lá conhece Zenaida Alexandrovna Zasyekina, uma moça de 21 anos que pertencente a uma família em franca decadência, com uma mãe divorciada, e que ainda mantém algum prestígio por pertencer à nobreza. Mas para Vladimir, que desconhece a palavra pindaíba em russo, isso não importa. O que importa é que mesmo Zenaida tendo um monte de pretendentes, que podem tirá-la da situação de pindaíba financeira, sua paixão arrebatadora, digo, a paixão arrebatadora de Vladimir é maior que tudo.

Não é preciso avançar muitas páginas para perceber que em Zenaida, digo, no ser de Zenaida é cheio de vitalidade e de beleza, e havia neste uma mescla de astúcia e despreocupação, de afetação e sensibilidade, de calma e vivacidade. Ou seja, Zenaida, para além de sua situação calamitante de pindaíba financeira, estava na flor da idade e queria flertar e amar sem preocupação. Pretendentes não faltavam. Belovsorov, a quem chamava de ‘meu animal’ – que para bom entendedor, pingo é letra -, era o que lhe ateva fogo... Maidanov era o poeta que tratava de convencê-la em versos que a adorava... Lushin era um médico, o mais mordaz de todos os pretendentes, o que tinha alguma ascendência sobre ela... e o conde de Malevskiy era o mais escorregadio, cheio de palavras doces e toques sedutores. Zenaida se esbaldava e o pobre do Vladimir sofria às pampas na mão da danada da lúbrica Zenaida que, mesmo tentando, falha na recipocidade do amor ao rapaz.

Falha de maneira brutal, pois usa com Vladimir os mesmo jogos de sedução que usa com os outros homens mais maduros. Usa-os de maneira a não refreá-los ou sublimá-los em tempo algum. Sem reservas de controle sobre si, deixa-se levar por uma paixão altamente combustível e até mesmo trágica.

Vladimir descobre com uma tremenda dor, dentro de sua própria casa, após uma discussão dos pais, que o objeto do desejo de Zenaida é nada mais nada menos que seu pai Pyotr Vasilyevich. A família então decide partir abruptamente de Kaluzhkaya Zastava, deixando para trás o escândalo que começava a se formar. Após um último passeio a cavalo com o pai, este desata numa carreira sumindo na poeira. Vladimir tenta segui-lo, mas não o alcança. Chega então a uma cabana, onde o pai se encontrava perto da janela. Na espreita, observa quem estava na cabana era nada menos que Zenaida. Pyotr a surra com seu chicote. Ela beija os entalhes avermelhados da pele. Não, não se iluda, esta não é uma estória de pornografia. Mais bem uma estória que prova como um enredo pouco construído pode tropeçar no óbvio - do que podería estar implícito no próprio desenrolar da estória e nas obsessões de Vladimir, Pyotr e da própria Zenaida.

Oito meses depois os Petrovich recebem uma carta ameaçadora pedindo alguma recompensa não bem explicada. A Providência faz com que Pyotr morra poucos dias depois de um ataque do coração. Três ou quatro anos depois, Vladimir encontra Maidanov na saída de um teatro. Este revelha que Zenaida casara-se com um tal de Monsieur Dolsky. Quando finalmente Vladimir decide procurá-la, descobre que ela morrera poucos dias antes ao dar a luz. Enfim, uma síntese didática dos males do amor jovem sem a complexidade, sem a força, sem aquela sensação de limite do intolerável, do inapropriado que Dostoievski nos deixa. Ou talvez não tenha ficado satisfeito pois no fundo, o livro - lido numa noite - encaminha uma estória que poderia ser densa em sua paixão destruidora, em sua deterioração, em seu esgaçamento de relações filiais, para um recuo visível e nos proporciona solução decerto conciliadora com a morte de Pyotr e Zenaida. Enfim, talvez eu não tenha entendido Turguenev.

Luz de Agosto



Luz em Agosto é um desses livros que nos deixa sem ar. Mesmo numa leitura avulsa, setenta e sete anos após o seu lançamento, a força e o impacto que suas palavras, expressões, inúmeros personagens e de sua inventividade corrosiva nos deixa com a glote por um fio de ar e faz a pulsação do leitor disparar. Dizer que Faulkner buscou em Luz em Agosto uma narrativa polifônica é uma redundância barata, pois esta era a marca do autor que imprimiu, basicamente a mesma técnica em Sound and Fury e em muitos outros de seus livros e contos. Não só a marca do autor, mas quase de uma época. Neste mesmo período, contemporâneos de Faulkner, tais como Virginia Woolf e Joyce escreviam com a mesma pungência dando voz ao fluxo de consciência de seus personagens.

Um dos muitos méritos de William Faulkner foi o de ter a ousadia de penetrar seu cutelo no coração do puritanismo norte-americano. Mais, é como se Faulkner tivesse dito a Deus, ô cidadão, fica de fora que em Yoknapatawpha mando eu. Ou num sentido mais prosaico, nesse universo puritano, é como se o nome de Deus fosse evocado a todo o instante, mas qualquer idéia que o associasse aos atributos de generosidade e solidariedade ficasse de fora, deixando o papo para os mortais.

A construção da estória em vários eixos narrativos é talvez a inovação de Faulkner. Um destes eixos está centrado no personagem principal Joe Christmas, a princípio tido como homem um branco que acredita ter sangue negro. Atormentado ou motivado por tal crença, Joe, age de maneira alheia aos valores dos brancos e instiga a intolerância racial que campeia no sul dos Estados Unidos. Num segundo eixo, uma outra personagem importante é Lena Grove, uma adolescente grávida que vem do Alabama e chega a Jefferson, a cidade ficcional criada por Faulkner em Yoknapatawpha County, a procura de Lucas Burch, o rapaz que a deixou grávida. No exato momento de sua chegada, a casa de Joana Burden, mulher de quem Joe Christmas foi amante, esta em chamas. Um terceiro eixo encontra sentido no reverendo Hightower, que é o personagem que ata as narrativas esparsas.

Joe Christmas é um personagem à parte. Um homem sem passado específico, uma espécie de órfão, que pouco a pouco vai se tornando uma espécie de pária, sem destino específico, à procura de sua identidade a ponto de quase perder de vez a razão nessa procura. Para o bom leitor, é um personagem que carrega um estigma que o força a ser indiferente por seu semelhante. Este mesmo estigma é usado para justificar seus atos violentos. É um personagem trágico e altivo que não se dobra às circunstâncias. Joe chega a Jefferson três anos antes do início da novela, ou seja, da chegada de Lena à cidade, ou seja, do incêndio e assassinato de Joanna Burden. Assim que chega, começa a trabalhar na lavoura, e este trabalho cria uma cortina de fumaça para a sua real atividade que é a de distribuição de àlcool durante a Lei Seca. E notório na cidade que Christmas é um homem que fabrica bebida clandestinamente durante a Prohibition - que vigorara nos EUA durante toda a década de 1920. Suas atividades ilícitas não chegam a chocar, pois acaba fornecendo birita a muita gente na cidade. As coisas mudam quando este passa a ser suspeito do assassinato da velha solteirona, de quem fora amante por algum tempo, quandoBrown, seu cúmplice na destilaria clandestina, de olho nos negócios do sócio, interrogado e pressionado, delata o companheiro. O sangue negro encoberto de Christmas, delatado pelo o assecla, desperta o ódio da comunidade. No mesmo dia em que a casa arde, chega à cidade Lena Grove.

Lena, após a morte do pai, vai morar com um irmão casado e cheio de filhos. O irmão é um homem rude, ‘doçura, delicadeza e idade florescente e quase tudo mais – exceto uma espécie de inteireza tenaz e deseperada e uma triste herança de orgulho familiar – tinham desparecido com a dureza do trabalho’. Após sofrer humilhações e ser constantemente chamada de meretriz, Lena foge de casa a procura do pai de seu filho, Lucas Burch. Sem destino certo acaba vindo parar em Jefferson, mais precisamente na serralheria de Mr. Breads, onde Byron Bunch trabalha. As proximidades dos nomes de Bunch e Burch acabam gerando um certo mal entendido fonérico – impressionantemente possível com o sotaque sdo sul dos Estados Unidos - , prontamente preenchido e aumentado pelos locais. Para muitos Buch é o pai da criatura que Lena carrega. O problema é que algo está fora do lugar nessa estória, mesmo para os mais interessados em tocar com a aldraba a porta do chisme. Bunch é um homem que segue à risca a ética puritana. É um homem trabalhador que dedica-se, inclusive aos sábados, a carregar carroças de tábuas e aos domingos, e após a jornada de trabalho anda mais de trinta milhas para ensaiar o coro de uma igreja. Seu amigo Hightower é o único que sabe de sua dedicação e entrega ao trabalho e à fé, e portanto seria algo diacrônico ser o pai da criança. Byron Bunch é um homem de poucas palavras, não por expressão de sabedoria, mas por inabilidade em usá-las. E um homem inculto. Faulkner é sutil ao contornar os detalhes seu intelecto, finalizando seus diálogos sempre com alguma reticência e evocando várias vezes sua admiração pela eloquência de Hightower.

Gail Hightower, é um homem que tendo sido reverendo, era obrigado a viver uma vida de aparências ao lado da esposa. Um homem fanático pelo passado de seu avô Confederado, julgado sumariamente por ser pego roubando um frango numa granja, e que proclama sermões inflamados causando desconforto na cidade evocavando constantemente a saga e o infortúnio do avô. Entretanto, não por ser difuso tampouco por ser repetitivo que Hightower é preterido, mas por que foi abandonado pela mulher, encontada morta pouco tempo depois. Os rumores que se seguiram o fizeram perder não apenas a mulher, mas sua reputação e sua congregação. Este passado distante ainda reverbera em sua vida eremita pois as desconfianças da preconceituosa sociedade local de Jefferson, que lhe vira as costas, são um componente fundamental para entender o destino de Joe Christmas, personagem principal dessa obra monumental.
Byron Bunch é o único que rompe esse círculo de isolamento e o visita eventualmente. Numa destas visitas Bunch pede que Hightower sirva de álibi a Joe Christmas, que ao escapar da prisão pelo suposto assassinato de Joanna Burden, se refugia na casa do reverendo. Interessante pois em nenhum momento do livro - ao menos que me lembre - fica claro que foi realmente Joe Christmas o assassino de Joanna Burden e tampouco é muito bem explicado - talvez eu necessite de uma segunda leitura - esse pedido de Bunch a Hightower, salvo por vagas razões. Sabe-se que quando Christmas foge do posto policial e se refugia na casa de Hightower, este o aceita, ainda que já seja tarde demais pois Percy Grimm ja anda em sua cola. Sabe-se também que Bunch é visto nas redondezas da casa de Joanna Burden enquanto a mesma ardia, mas nada é afirmado categoriacamente.

Mais interessante ainda é a falta de certezas em que Faulkner imerge o leitor evitando ser categórico sobre a relação entre Joe Christmas e Joanna Burden. A princípio, aquela era uma relação conflituosa, pois ao passo que Burden se dizia defensora dos ideais abolicionistas e fazia vista grossa para os pequenos roubos que Christmas efetuava, entrava em conflito com os demais habitantes da cidade por protegê-lo. Joe Christmas, por sua vez passa a sentir desprezo por Burden, uma mulher já em idade de menopausa, sem possibilidade de ter filhos e por isso mesmo entregue ao fanatismo religioso. Joe, que era órfão, tinha sido criado e abusado, física e psicologicamente, por uma família religiosamente conservadora.

Faulkner se utiliza de um recurso absolutamente original. Em cima dos fluxos de consciência, sejam eles falsos ou verdadeiros, de um personagem, Faulkner cria outras direções. Assim, vai instaura enredos intermináveis sobre o que o preconceito cristalizado na fala de um personagem cria a respeito de outros. Tendo em vista que a novela não é organizada de maneira linear, e é interrompida contantemente por flashbacks, o foco narrativo muda de um personagem para outro. Mesmo que um personagem desconheça a verdade dos fatos, tem sua própria versão moral sobre os mesmos. Neste sentido, apenas resta ao leitor a dedução das pistas deixadas pelo autor.

Impressiona também como é possível encontrar ainda hoje, numa novela de 1932, elementos de uma América ainda presente naquele tempo. Afinal, muitos dos elementos de identidade do americano não mudaram desde então: os constantes dogmas puritanos resgatados para afirmar a crença no protestantismo; a prática constante da desconfiança contra a alteridade como subterfúgio para a busca da própria identidade; a divisão de uma sociedade de classes em raças... Enfim todos fios de uma espécie de destino do qual um povo todo não pode escapar. Sina? Não sei. Mas é nesse ambiente em que os derrotados de todo o tipo deixam aflorar o fanatismo religioso numa pasma tentativa de fugir ao que o destino, de trágico, reservou, que se passa Luz de Agosto - e é sobre ele que se tenta reconstruir uma América pós-Era Bush.

A falta de ar é apenas uma metáfora para mostrar o quanto se precisa de fôlego e sentido para ler a Faulkner.
(continua...)


Nota. Na minha tradução portuguesa de Armando Ferreira de anos atrás está grafado Luz de Agosto

La Guerre est Finie

La guerra ha terminado, famosa frase de Franco dita em 1939, enquanto todavia existiam guerrilhas pelo interior da Espanha, serviu de mote a Resnais para executar este filme no qual faz um estudo profundo da luta revolucionária nos anos 1960. Na minha opinião um filme tão bom ou melhor que o clássico Hiroshima mon Amour, no que tange a desilusão de uma geração erudita e culta quanto aos destinos da Europa no pós-guerra, com o início da falência da esperança – um processo que demorou quase duas décadas para se concretizar. Resnais tem um papel importante nesse processo que se não me engano foi o Zuenir Ventura definiu como internacionalização de propostas contra-culturais.

O histórico Yves Montand interpreta Diego Mora, um histórico lider do PCE que se vê obrigado ao exílio na França e que vive à risca uma vida de clandestinidade solitária, com sucessivos nome falsos, estudos doutrinários, conexões com vários movimentos de esquerda europeus, e os naturais questionamentos sobre os destinos revolucionários de uma Espanha sob a égide do Franquismo. Diego quer ajudar a organizar a reestruturação sindical espanhola em seu exílio francês. Nesse momento, a centrais sindicais começam a se organizar no Pais Basco e em Madrid com o reagrupamento das antigas UGT e a CNT que faziam frente a corporativa Central Nacional Sindicalista – sindicato oficial do regime. O roteiro de Jorge Semprum está absolutamente a par desse momento histórico na Espanha.

Após atravessar a fronteira com identidade falsa, Diego é retido numa barreira francesa, mas salvo quando os policiais decidem checar o endereço expresso no passaporte e falam ao telefone com Nadine Sallanches, filha do homem que empresta a identidade a Diego. Nadine confirma sua identidade e os policiais liberam sua passagem. Depois de cruzar a fronteira, descobre-se que Diego ja estivera exilado algumas vezes em França, e que inclusive possui algumas raizes, relações amorosas e amigos de militância. Uma dessas relações é com Marianne, interpretada por Ingrid Thulin – que por acaso, ou não, manteve em La Guerre est Finie o mesmo nome que tivera no road movie de Bergman, Morangos Selvagens. Ingrid é uma editora influente, bonita, sofisticada e independente que vive em Paris e que conhecera Diego quando este ainda usava outros nomes falsos. Ela estaria disposta a largar a vida confortável em Paris para voltar à Espanha com Diego. Este vacila em levá-la que apesar de amá-la não se sente seguro em levá-la consigoe assumir a paternidade do filho de Marianne. Além disso, Diego passa a se envolver com Nadine, que também milita num obscuro movimento de apoio a grupos espanhóis. O envolvimento acontece no mesmo momento em que o Comitê Central tem outros planos para Diego.

Resnais opta por mostrar o lado humano deste militante em suas indagações existenciais, suas dúvidas ideológicas, seu amor dividido e o progressivo cansaço das discussões teóricas e dos destinos que a esquerda ia tomando naquele momento. Um desses momentos é quando o Comitê Central adia seu retorno para a Espanha pois em Paris descobre-se que Diego se tornou uma figura conhecida das policias de ambos países. Ver-se como prescindível o inquieta e desencadeia uma série de questões sobre sua própria nacionalidade e seus parâmetros culturais. Num jantar com amigos de Marianne, por exemplo, choca a seus amigos intelectuais, para quem mente dizendo-se um tradutor da Unesco, quando diz que está cheio de Lorca e de suas mulheres camponesas e estéreis.

Preterido pelo Partido, passa então a frequentar as discussões do grupo de Nadine, um grupo muito mais jovem e extremamente teórico e radical. A partir dessas discussões – e já afastado do PC – Diego recebe a incumbência de atravessar uma mala a Espanha. Na mala, descobre mais tarde, que há explosivos destinados a um atentado contra civis num ponto turístico da Espanha, o que o leva a questionar a opção do grupo de Nadine pelo terrorismo, levando-o a se reconciliar com os propósitos do velho grupo do PCE – mais ou menos como a opção do PCB na época da ditadura, pois o bom comunista sabe que quando uma bomba explode os primeiros a tomar pau são os comunistas, Semprum como dirigente do PC à época sabia bem desse fao e o usou com maestria no roteiro.

Interessante como Truffaut em The Films in my Life dedica uma importância apenas laudatória a Resnais e a Melville. Uma injustiça, pois cá pra nós, Resnais, obviamente auxiliado pelo time da pesada que seleciona para os seus roteiros (Duras, Semprum...), é melhor que muita gente do Nouvelle Vague. Neste filme ele consegue capturar a alma, o subconsciente de Diego. Antecipando as cenas das caidas de outros militantes mostra os medos subconsciente de Diego. E os pedantes que me desculpem, mas achei este filme mais rico e detalhado que Hiroshima, Mon Amour – apesar de ter gostado imenso deste também.

Ensaio sobre a Cegueira



Li Ensaio Sobre a Cegueira em 1998 - mais exatamente, como atesta a data de término da contra-capa autografada pelo próprio Saramago, julho de 1998. Mas sempre que me lembro do livro, a imagem de seus interiores claustrofóbicos é tão nítida em minha lembrança como a esperança que os personagens têm ao emergir do caos. Engraçado que a cegueira em si não abandona os personagens à deriva mas, ao contrário, radicaliza as existências daqueles homens e mulheres enclausurados em quarentena. Só me dei conta disso, de fato, finalmente assitindo o filme de Fernando Meirelles, há meses atrás.


Ensaio Sobre a Cegueira – o livro - narra os efeitos de uma inexplicável epidemia de cegueira que assola uma população. A primeira manifestação ocorrre logo nas duas primeiras páginas com um homem no trânsito e, lentamente, se espalha pelo seu oftamologistas, pelos pacientes da sala de espera, pelo meliante que tenta roubar seu carro e por todo o país. O governo, então, obriga o confinamento dos contaminados para os que ainda não perderam a visão, não sejam contaminados.

Este, de forma geral é o enredo do livro. Sempre tive a impressão que os livros de Saramago seriam dificílimos de uma adaptação para o cinema, justamente por tratarem os temas abordados com um viés demasiado alegóricos. Transmitem, os livros, muito mais sentido do que a simples compreensão literal das imagens contidas em suas linhas. Mas depois do filme certifiquei-me de meu engano. Ledo engano.


Meireles é um grande diretor. Grande mesmo. Ainda que tenha algo que me incomoda um pouco ao aproximar a estética de seus filmes a um enquadramento comercial demais. Vide em Cidade de Deus, dentre inúmeras outras, a cena do menino matando o vigia de um motel, dando-lhe as costas, e sair gargalhando. Aquela violência, ou sugestão da mesma – já que o elemento sangue não é visível (?), - parece-me Hollywood de baixa qualidade. A cena me pareceu a mais desnecessária de todo o filme, exatamente pela violência – mesmo não explícita – desnecessária. Me lembro que numa entrevista Meireles tentou ainda se defender dizendo que a forma como vemos a violência é diferende daquela nos filmes americanos. Não comprei o argumento. Como tampouco não aceitei as supressões feitas pelo roteiro, na cena em que o marido se descobre traído. No filme ele “apenas” mata a mulher. A cena não aparece, como sequer aparece a menção ao assassitado da mulher a golpes de pá, e o consequente emparedamento do cadáver - como se existissem níveis distintos de violência. Nesse sentido, Meireles traçou um caminho oposto ao de um Billy Wilder, que recusava-se a abrandar certos elementos dramáticos e realçar elementos mais técnicos como a velocidade das cenas num estilo mais palatável para as grandes audiências.


Mas por que Meireles é grande, mesmo? Bom, por que neste filme tudo foi preciso. Um outro diretor poderia trasnformar o filme numa bomba de filme com zumbis, assassinos em serie, e colocar no meio psicopatas com serras elétricas.... pois no fundo os elementos da falta de ordem, milícias mercenárias, ausência do Estado, e uma gama de medíocres reações humanas ante o caos poderiam descambar para um filme ruim. Ensaio sobre a Cegueira vai por outro caminho. Julianne Moore (a Mulher do Médico) e Mark Ruffalo (o Médico), dão um caráter humano à desumanização em seu Estado de Natureza mais brutal.


Tanto o romance como o filme nos mostram como a humanidade perdeu o jogo e não se deu conta, pois as atitudes de individualismo, de falta de solidariedade, não passam de atitudes individuais e portanto impreceptíveis num plano mais geral. Ou seja, enquanto um indivíduo perde a visão, tudo não passa da infelicidade de um infeliz desgraçado que perde a visão. Mas quando a sociedade por completo que, por causa da cegueira, perde tudo aquilo que considerara como pacto civilizatório, imergindo numa crise epidêmica, os indivíduos passam a ser obrigados a confiar uns nos outros. Sem outra escolha, passam a ser obrigados a buscar, em meio a um ambiente caótico de todos contra todos, a dignidade esquecida. Pensando bem, Saramago é esse escritor que resgata esse sentimento de solidariedade esquecida, existente num certo século XX.