George
Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia
25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e
ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após
sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados
Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa
loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão
disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.
-
vinte merréis, um Jackson. pqp.
O
fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência
policial, o preconceito, a hipocrisia…
Não
sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o
racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto
complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos.
Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito
nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram
importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados,
humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco
séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três
séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo
de cara…
-
sim estou puto sim, foda-se.
Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e
sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes
diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.
Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto,
e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de
fantasmas e ausências históricas faça
com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o
homem negro, já que para o policial o
mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico,
o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam
menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime.
Óbvio!
Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar
no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou,
quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era
como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?
- Óbvio é o
cacete. Correto porra nenhuma!
Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry
Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça”
ele se declarava pertencer. O menino João
Pedro Mattos Pinto,
morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle
Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um
formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania
nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava
da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é
diferente!
-
vdd!
Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio
democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a
benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E
vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber
mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o
racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e
passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil.
Então, para que riots ao sul do Equador? Ora bolas!
- O problema é
que o buraco é muito muito muito mais embaixo…
O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de
malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas
- sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a
inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares,
geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados,
tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e
tem de conviver com a ausência do Estado.
- Tudo separado… sei…
A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das
lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em
universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art.
3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares
mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita
entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país
mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA
matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de
5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística,
por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram
assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai
você vai vendo.
A eficácia desses números não se mede pela sua
capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência
policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas
estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por
favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?
Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo
prazo, e não
podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas
as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de
corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos
dizem ser apenas de classe.
O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil,
como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está
numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem
sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de
dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos
para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento
em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando
calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de
frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia
que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário
do ato hipócrita.
O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação
vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa
e não o que os une.
- Eu também gosto do Milton Santos…
Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como
nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O
problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade
fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por
acaso estão mais negros e pardos que brancos, e isso não deixa de conter uma certa ironia
azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que
fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí
passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.
Nota:
não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.