MARIO CESARINY

 

 


Título Mario Cesariny
Dimensões: 9x9cm
Data: Setembro de 2021

Técnica: Xilogravura

O pintor e poeta Mário Cesariny de Vasconcelos era um lisboeta nato, Nasceu em Vila Edith, em Benfica, a 9 de agosto de 1923. Filho caçula, tinha três irmãs mais velhas. O pai, um empresário e ourives, tinha uma joalheria na Rua da Palma, na baixa lisboeta.

O pai, aliás, era um homem de personalidade dominadora, de uma brutalidade tão exacerbada que chegava a bater na mãe.  Como todo o bom patriarca escroto, via no filho homem o herdeiro e continuador de seu legado. Não pensou duas vezes em mandar o jovem frequentar o Liceu Gil Vicente, para complementar os estudos secundários. Ao fim de um ano, com o intuito de dar continuidade ao negócio da família, o mudou-o para um curso de cinzelagem na Escola de Artes Decorativas Antônio Arroio. É nesta escola, a propósito, que conhece o também pintor Artur do Cruzeiro Seixas - com quem se relacionaria por longos anos.  Sabe-se também que estudou piano, e que apesar do grande talento, foi proibido pelo pai de continuar seus estudos de música. Aos 19 anos pintava e desenhava quando entrou no primeiro ano de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, e posteriormente na Escola António Arroio, onde conhece alguns dos futuros companheiros de arte.

Nesse período, o jovem frequenta os cafés de Lisboa, trava contato com a arte e a boemia, e descobre o grupo dos neo-realistas, pelos quais verdadeiramente não se interessa.   

Em 1947 Cesariny ganha uma bolsa de estudos e viaja para Paris, onde frequenta a Académie de la Grande Chaumiére. Nesse momento ele tem um encontro inusitado com o dadaísta Benjamin Péret e André Breton. Breton já com 51 anos, e recém chegado dos anos do exílio de Vichy, dos Estados Unidos. Nestes anos pós-guerra, Breton se imbuíra do firme propósito de animar os surrealistas na França e ao redor do mundo, incentivando exposições e posteriormente participando da revista La Brèche. Esse é o tipo de um encontro que realmente revolucionaria a vida de qualquer um. De regresso a Lisboa, Cesariny, sem dúvida, já é um outro homem. Como poeta, encarou o surrealismo, mergulhando de cabeça na quebra da forma e do automatismo psíquico das formas e das letras.  

Neste mesmo ano, passa a integrar o Grupo Surrealista de Lisboa, do qual faziam parte Alexandre O´Neill, Marcelino Vespeira, António Pedro, Cândido Costa Pinto, João Moniz Pereira. Como todo o bom grupo surrealista, as divergências não tardaram a acontecer, e dois anos depois Cesariny já faz parte de uma dissidência chamada “Os Surrealistas”, com Pedro Oom, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros. E redigem um manifesto coletivo” A Afixação Proibida”. Antônio Pedro, tinha ficado do lado de lá, com o projeto de reeditar a revista Variante. A partir daí os da Afixação Proibida promovem a primeira exposição surrealista de Portugal, que faria parte mais tarde dos anais, que o próprio escreveria sobre a História do Surrealismo português.

No tocante a vida pessoal, no fim da década de 1940, seu pai, arruma outra mulher, abandona a família e se muda para o Brasil. Isto faz com que Mário se aproxime mais de sua mãe e da sua irmã Henriette.

A década de 1950 é quando propriamente Cesariny se dedica à pintura e à poesia, e passa a colaborar com a Revista Pirâmide. Nesse período também, assume seu homossexualismo mais abertamente, o que o leva a ter sérios problemas com a Polícia Judiciária, e a ser vigiado de perto pela constante “suspeita de vagabundagem”. São anos duros politicamente. O regime salazarista não dava trégua a dissidentes, fossem eles comunistas, ou homossexuais. Dez anos antes, o poeta Antônio Botto, já com 45 anos, tivera de deixar o país às pressas, sem dinheiro, rumo ao Brasil, pois tinha sido demitido de sua função pública. Sem dúvida, um duro golpe no dândi, que inclusive precisou da ajuda de amigos, como Amália Rodrigues, que organizara um show de arrecadação de fundos para sua “fuga”.

Como pintor, nestes mesmos anos 1950, Cesariny incorporou imagens do inconsciente com justaposição de objetos desenhados em viscosidades quase orgânica. Seus trabalhos fazem uma espécie de inventário do mundo alastrando tintas, vernizes e colas à esmo, fundindo pigmentos, expressões de fundo neutro com a incisão de grafismo primitivos, abstratos e figurativos. Sua poesia, à propósito, funde-se nessa ambiguidade e reveste essa pintura dando sentido de liberdade.

Em toda a palavra que escreve, em todo o traço que pinta há um forte sentido de experimentação. Vemos isso no seu percurso pictórico: nas pinturas, nas colagens, nas “soprografias”, nas técnicas de sopro de tinta e, nas “sismografias”. Mesmo nos Exquisite corpse, técnica que promoveu e que consiste na produção de uma obra em cadeia criativa, realizada por 3 ou 4 artistas, em tempo real, há esse sentido de interatividade e iconoclastia.

Da mesma forma que é difícil o esforço de determinar-lhe uma categoria - art brut, arte incomum, arte surreal - é difícil exclui-lo da Modernidade. Ele rompeu completamente com o figurativo, e começou a praticar o que ele chamou de despintura, o que se desdobrou em seus poemas como uma forma de desregramento, demembramento da linguagem.

Nos anos 1960, depois das primeiras exposições, Cesariny recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian  para escrever um livro sobre Maria Helena Vieira da Silva e ruma para a Inglaterra, onde esteve por volta de sete anos, com vindas esporádicas a Portugal. Além de pintura, ganhava algo com as traduções de Rimbaud, Artaud, Michaux e outros autores malditos, para o português de Portugal. Outra parte do dinheiro para as viagens já vinha de bolsas e da venda de seus quadros e da intermediação por venda de quadros de outros artistas, como ocorreu com um de Maria Helena Vieira da Silva, dado a ele por Manuel Cargaleiro.

Teve uma vida cheia de amizades, desafetos e prêmios. Ganhou o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, e o Grande Prémio EDP de Artes Plásticas. Ainda nos anos 1980,sua obra poética de é reeditada pelo editor Manuel Monteiro, dono da tradicional editora Assírio&Alvim, podendo ser redescoberta por uma nova geração de leitores.

E doou parte de suas obras de arte para a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, e em testamento, deixou um milhão de Euros para a Casa Pia. Certa vez, perguntado sobre se pensava na morte? Respondeu: “Não muito. Penso na doença”. Acredita na imortalidade? “Não sei. Quando eu chegar, lá telefono [risos].”

 

Mário Cesariny faleceu a 26 de novembro de 2006 aos 83 anos de idade, com um câncer na próstata que já o vinha consumindo há alguns anos. O artista que deixou 19 livros publicados e inúmeras pinturas, foi sepultado no Talhão dos Artistas do Cemitério dos Prazeres.

OZUALDO CANDEIAS




Título Ozualdo Candeias
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

 

Nasceu em 5 de novembro de 1922, e foi registrado nas cercanias de Cajubi, nos arredores de São José do Rio Preto. Mas não sabe se nasceu em São Paulo, ou se nas cercanias de Campo Grande, a caminho de Cuiabá. Era filho de agricultores, e passou a infância e juventude entre São Paulo e Mato Grosso. Seu pai Antônio Ribeiro Candeias, era imigrante português, que veio com nove anos para o Brasil e foi trabalhar em fazendas no noroeste do estado de São Paulo, próximo a Ribeirão Preto. Homem de educação elementar, o pai, chegou a ter uma pequena frota de taxis e uma pensão para nordestinos que chegavam na cidade.

O filho bandonou a escola ainda no primário e foi trabalhar campo. Na idade do alistamento militar, serviu ao Exército como recruta no Mato Grosso. Depois se mandou para o Rio de Janeiro onde passou pouco tempo.

Dentre os inúmeros trabalhos que teve ao longo da vida, foi office-boy, vendedor de sorvete, lustrador de móveis, trabalhou em fábrica de cama, fábrica de armário, fábrica de bolsas, foi metalúrgico, vendedor de sorvete. Trabalhou também como metalúrgico, operário e funcionário público, chofer de táxi e caminhoneiro. 

Não. Seu nome não é Osvaldo. É Ozualdo, com “Zê” e “U”, no lugar do “Ésse” e do “Vê”. Ozualdo Ribeiro Candeias foi o mito do Cinema Marginal – expressão cunhada pelo jornalista e crítico de cinema Jairo Ferreira. E quem o conheceu, era unânime em afirmar que ele cara meio bruto, quase rude, desses metidos a machão, que fala palavrão e cuspe no chão.  

Casou pela primeira vez no final dos anos 1940, conseguiu um emprego público na prefeitura, como fiscal de obras. Comprou um caminhão e começou a fazer entregas, primeiro em São Paulo, depois Rio de Janeiro e Mato Grosso.

Nessas andanças pelo interior, já com o primeiro filho pequeno, teve uma ideia maluca de comprar uma câmera, pois segundo ele, nos caminhos apareciam muitos discos voadores. Convenceu dois produtores a bancar a maluquice, que naquela época custava caro. Eram filmes reversíveis de trinta metros, e a câmera mais barata era a clássica Keystone de 16mm, comercializada a partir dos anos 1930. Viajava com a câmera dentro do caminhão, pelas estradas do Brasil. O vendedor lhe deu umas noções básicas, mas nesses primeiros meses queimou rolos e rolos de filmes com seu amadorismo. Então, passou a ler tudo que lhe caía nas mãos sobre como começar a usar a tal Keystone. Descobriu o que era um fotômetro, diafragma, montagem de produção. Fez esforços tremendos para ler os catálogos e os mais de vinte livros em inglês e francês, sendo engolido por tudo aquilo.

A mãe, pragmática, nunca foi simpática à carreira de cineasta do filho, tanto que quando ganhou o primeiro prêmio com Cinema, a mãe perguntou “quanto é que te deram?”, ele respondeu “nada”, ela “prêmio sem dinheiro, que diabo é isso?”.

Quando assistiu Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, em 1955, e o bangue-bangue Matar ou Correr, de Carlos Manga, deixou aquela estória fiada de filmar disco voador para trás. E foi fazer Cinema.

Nesse mesmo ano lança o curta-metragem Tambau - Cidade dos Milagres. Filmado em 16mm, já podemos perceber nesse documentário sua atenção dada aos miseráveis e deserdados de toda a sorte, que tentam na figura do padre milagreiro Donizetti, um fio de esperança. Enquanto um narrador irônico fala, o diretor percorre com a câmera o movimentado mercado da fé que funciona fora da igreja, com seus santinhos, revistas contando os milagres, garrafas de água-benta, fitinhas milagrosas.

Ainda com o financiamento do governo do estado de São Paulo, Candeias dirigiu mais dois curtas documentais: Polícia Feminina lançado em 1959 e Ensino Industrial, três anos mais tarde.

Mas foi apenas na década de 1960 que deixou os filmes institucionais, e passou a dar-se a conhecer como um dos pioneiros do cinema marginal nacional.

Em 1963, trabalhou no roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos, junto com José Mojica Marins, o Zé do Caixão. E com quem trabalhou no anos seguinte como assistente de direção em À Meia Noite Levarei Tua Alma, com que trabalhou no ano seguinte, como assistente de direção.

Seu primeiro longa-metragem de ficção, A Margem, de 1967, foi realizado praticamente por conta própria, com evidentes falhas técnicas de sincronização de som, roteiro, e dureza das imagens. Foi um filme de baixíssimo orçamento, como quase tudo que ele realizou e por isso mesmo com as falhas características desse tipo de montagem. Os críticos sempre atribuíram a seus filmes, um certo primitivismo e dureza – aliás, dizem as más línguas, que Ozualdo era sempre num primeiro contato, muito mal humorado e seco.

Entretanto, o filme beira a obra prima, e desde a primeira cena, do barco a remo, atravessando as margens do Rio Tietê, já dialoga com obras como Limite, de Mario Peixoto. É absolutamente impossível, não fazer esse tipo de conexão entre os dois filmes, e portanto, entender com quem e com que tipo de tradição, Ozualdo queria dialogar. O enredo girava em torno a história de duas prostitutas, uma branca e uma negra, um cafetão e um homem com problemas mentais. Ainda que as cenas sejam todas fragmentadas - por conta muitas vezes dos restos de rolos de filmes que não davam para filmar um plano de sequência completo -, A Margem é um filme extremamente coerente e bem contado, toda permeada pela trilha jazzística do grupo Zimbo Trio. 

Ainda em 1974, filma e monta a estória de ZéZero, um agricultor pobre do interior de São Paulo, que vive no campo, trabalha duro e não vê perspectiva em nada. Surge, então, uma mulher fina, bonitona, sedutora, que mostra ao protagonista Zé Necas todas aquelas maravilhas da cidade grande: bilhete de loteria, jornal, cinema, fotos de mulher com biquini, cartela do Baú da Felicidade, e tudo aquilo que é bom, mas que pode ferrar um cara. Ou seja, o protagonista não toma outra decisão que não a errada. Abraça com vontade a idéia de sucesso, glamour, vida social e da grana fácil. E chegando na cidade, obviamente a coisa não é bem como ele pensava.

O filme era de fato subversivo na década de 70, e nunca foi exibido. Não por ter sido censurado, mas pelo fato de Candeias ter-se recusado a exibi-lo à Censura Oficial. Exibir ZéZero era, de fato, contestatório e passível de prisão. O caráter marginal e grotesco do filme fica muito evidente nas últimas cenas.

De tanto apostar, ZéZero, ganha na Loteca  -  espécie de loteria federal do Estado. Recebe o dinheiro e decide voltar para o campo. Quando chega ao seu lugar de origem, descobre que muitos parentes e amigos tinham morrido, não restando quase ninguém. Consternado, o protagonista se pergunta o que faria com tanto dinheiro. Nesse momento aparece antiga mulher do princípio do filme, como que fantasiada com fitas de negativos de filme enrolados por todo o corpo. E diz: “enfia no c…”

Ou seja, se você fosse Ozualdo, faria como ele fez. Nem perderia seu tempo preenchendo os formulários do Ministério da Justiça e Polícia Federal para pedir autorização de exibição, de uma fita que evidentemente seria censurada. Até por que sempre sem dinheiro, sem financiamento, tendo que volta e meia fazer filmes institucionais para sobreviver, até quando fosse possível, Ozualdo, ao logo da década de 1970 partiu para o cinema pornográficos e a pornochanchada, para poder sobreviver.

Ele não se tornou um mito na Boca do Lixo, paulista, onde para o bem e para mal se produziam obras primas e fenomenais porcarias fílmicas, à toa.  Ele tinha um cuidado quase fetichista por cada plano do filme -mesmo nas pornochanchadas. Antes mesmo de mergulhar de cabeça no universo das prostitutas, proxenetas, do sexo explícito, ainda fez montagens excepcionais como uma versão caipira para o Hamlet de Shakespeare, que tinha no papel principal de Hamlet, David Cardoso – ator que estourara no ano anterior como Augusto, no filme A Moreninha.

No filme A Herança, pode-se ver o mesmo cuidado com a expressão caipira brasileira – que passava longe das irrelevâncias caricaturais do cinema de Mazzaropi, porém não sem menos ironia, para o espectador atento. Essa certa nostalgia rural era sincera, mesmo que algumas cenas beirasse o grotesco - como de fato acontece no mundo rural. O filme todo tem pouquíssimos diálogos, recheado de atuações duvidosas dos atores, e cenas extremamente toscas como a cruza de cães, e a famosa cena do monólogo, em que Hamlet dialoga com o crânio de Yorick, o falecido bobo da corte - na versão tubi-ornot-tubi de Orzualdo, o crânio de Yorick dá lugar à cacaça da cabeça de um boi. O filme culmina com uma moda de viola, num circo, onde toda a cidade iria assistir a um espetáculo. Praticamente a única cena em que há áudio com voz, e nesta os cantadores, contratados por Hamlet, desmascaram a suposta farsa do casamento da mãe com o padrasto. O filme ainda tem no papel de Fortinbrás, o ator Agnaldo Rayol! 

Uma coisa há de se admitir. Entre coragem e cara de pau, esse cuidado – ou descuido - para além de estético tinha uma razão. Dizem que pela falta de orçamento, acabava fazendo filmes com restos de fitas, que amigos de outras produtoras passavam para ele. Assim, ia os emendando e formando suas fitas. Nessas condições, ele sabia que os erros eram fatais, e talvez por isso mesmo queria realizar todas as fases do filme, desde a produção e orçamento até a montagem final. Se tornou sobrevivente daquele cinema brasileiro heróico e tosco.

Ozualdo, numa entrevista justificou o filme:

“Eu achava que pegando o Shakespeare e passando para o bang-bang, os produtores, que eu sempre achei uns caras inteligentes, poderiam se interessar por esse tipo de coisa. Era um espetáculo e poderia ser o que também chamam de ‘cultura’. Daí eu fiz uma espécie de adaptação, mas quebrei a cara. Ninguém se interessou. Noventa por cento das pessoas que entendem de Shakespeare e de Hamlet só sabem dizer ‘Ser ou não ser‘. Por causa dessa fita, eu tive de andar me defendendo por que eu estava avacalhando com Shakespeare. Era uma transferência que eu estava fazendo: uma Ofélia poderia ser negra porque seria mais brasileiro. Mas quando eu dizia transferência de valores ou de situação, ninguém entendia”.

Ozualdo, com todo o respeito, meteu seu dedo bem fundo nos filmes eróticos da Boca do Lixo. Consta nos créditos de várias produções como As Mulheres do Sexo Violento (1976), de Francisco Cavalcanti; Agnaldo, perigo a vista (1969), de Reynaldo Paes de Barros; Sinal Vermelho As fêmeas (1972), de Fauzi Mansur; A Noite do desejo (1973), de Fauzi Mansur; Com a cama na cabeça (1973), de Mozael Silveira; Maria sempre Maria (1973), de Eduardo Llorente; dentre muitos outros que pode-se não ter a mínima idéia.

Foi um cineasta que construiu narrativas com baixos orçamentos, com personagens baseados em roteiros, mesmo que pouco elaborados, presentes sua vida cotidiana das ruas, dos  seus habitantes do centro, com suas prostitutas e a arquitetura dos casarões decadentes das imediações do bairro da Luz – entregues a uma imensa cracolândia nos dias atuais.   

Atores esquecidos, diretores, escritores, roteiristas, técnicos, enfim, uma infinidade até de atores e atrizes famosos na televisão brasileira, ainda hoje, participaram dessas produções de baixo custo. Muitos famosos e famosíssimos escondem ou desconversam que passaram pelas telas – e por que não pelas camas -  da Boca do Lixo. Mas isso é outra estória.   

Ozualdo Candeias, não. Literalmente nunca deixou de ser maldito. Sua identidade com essa região era tamanha que, já aposentado, durante os últimos anos de sua vida, era uma figura facilmente vista na adjacências da Estação da Luz, já decadente, e para a qual ele mesmo tinha se mudado para um apartamento na Av. Rio Branco. Era quase onipresente nos botequins, falando de cinema ou qualquer outro assunto. E morou nas proximidades da região até seus últimos dias.

Em 2010 Moura Reis publica uma longa entrevista de Ozualdo Candeias para a Coleção Aplausos Cinema Brasil onde o diretor mostra bem quem era: “Levo uma vidinha meio barata, sem muitas exigências, que dá para ir tocando, quase sem terra. Teto, eu tenho. Comprei esse teto trabalhando em uma fita americana. Não lembro o título nem o nome dos caras que vieram filmar no Brasil e tinham que contratar certo número de técnicos brasileiros. Entrei como câmera, iluminador e outras coisas mais, contratado por dez semanas. Eles foram me pagando por semana e no final juntei um troco, não me lembro se 40 mil ou 60 mil na moeda da época, e comprei um mocó aqui perto, na Rio Branco com Duque de Caxias. Gosto de morar no Centro, que tem uma arquitetura muito bonita. […]E gosto do Centro, daqui da Boca e deste boteco. […] Conheço o Teixeira há muitos anos e venho sempre aqui. Gosto da vizinhança. Converso com as pessoas.” 

Sua biografia conta com 11 filmes como Diretor, 13 filmes que participou como fotógrafo, 6 como produtor, 7 como ator, e um como Assistente de Direção -  justamente com José Mojica Marins. 

Morreu em 2007, às 15 horas de uma quinta-feira, aos 88 anos, vítima de insuficiência respiratória no Hospital Brigadeiro, no bairro Bela Vista, deixando 4  filhos, netos, 3 ex-esposas uma penca ex-mulheres. 


http://revistazingu.blogspot.com/2007/03/doc-filmografia.html


TORQUATO NETO


 

Título: Torquato Neto
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Linoleogravura

 

Filho único de um defensor público e uma professora, passou sua infância em Teresina até os 16 anos, mudando-se para Salvador no intuito de complementar os estudos secundários. E todo o brasileiro sabe que quem tem Neto no sobrenome, tem algo de diferente da pirâmide social Brasileira. A mãe, Salomé, provavelmente mesmo que intuitivamente sabia disso e queria a carreira de diplomata para o filho. O piauiense Torquato Pereira Araújo Neto, apesar de ter Neto no nome, deu voos em outras direções. 

Tudo ia bem até o primeiro vôo em sua ida para a Bahia. No Colégio Nossa Senhora da Vitória, o Marista, passava a maior parte das aulas rabiscando poemas. E ali conheceu Gilberto Gil. Não demorou e já estava colaborando com o jornalzinho da escola e participando das atividades estudantis. Foi no Centro de Cultura Popular da UNE (União Nacional dos Estudantes), que conheceu, também, Caetano Veloso, Duda Machado, Gal Costa, Capinam, Maria Bethânia dentre outros. Nesse início dos anos 1960, passou também a assistir filmes e ler compulsivamente sobre a sétima arte, chegando a trabalhar como assistente no filme Barravento, de Glauber Rocha.

Dois anos depois, o segundo voo, rumo ao rio de Janeiro. Lá termina o científico e, por dois anos, cursa jornalismo na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil.

Ainda no Rio de Janeiro foi apresentado a Edu Lobo, pelo cineasta Rui Guerra, formando imediatamente uma das melhores uma parcerias musicais da música brasileira que, apesar de curta, foi marcante, para ambos. Em três meses, trabalhando intensamente, fizeram Veleiro, Lua Nova, Pra Dizer Adeus, que Edu Lobo diria anos mais tarde, se tratarem as suas melhores músicas.

Além de poeta, inicia também sua atividade jornalística, trabalhando para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora.  Trabalha também em agências de propaganda e na gravadora Philips.

Por sugestão do parceiro Edu Lobo, foi para São Paulo, em 1966. Nessa época, Gilberto Gil morava na cidade, no bairro de Cidade Vargas, e hospedava frequentemente os amigos de fora. Na “Pensão dos Baianos”, como foi batizada, passaram Ruy Guerra, que era mais ou menos baiano, Capinam, Torquato e um monte deles.

Um ano depois, em 1967, Torquato Neto decide casar-se com a baiana Ana Maria dos Santos e Silva. Três anos depois nascia seu único filho Thiago, atualmente piloto de aviação civil.

Durante toda essa década de 1960, o Brasil viveu um turbulento período político e iniciou-se um Ditadura Militar, com um golpe de Estado, dado por militares e apoiado pelas classes médias brasileiras. Torquato, através de seus artigos de jornal, atuava como agitador cultural, polemista e defensor de manifestações culturais de vanguarda, como Tropicália, o Cinema Marginal, a Poesia Concreta. Nesse período, passou a defender ardentemente o Tropicalismo, tendo escrito uma espécie de breviário, onde defendia a necessidade de criar uma cultura pop genuinamente brasileira, baseada numa estética dos trópicos, que em suas palavras seria mais ou menos algo como uma cultura sem preconceitos, sem mau gosto, sem cafonices.

Nesse momento iniciava meios sem querer uma carreira como poeta, jornalista, letrista de música popular e de um supostamente  experimentador ligado à contracultura.

Com amigos como Décio Pignatari, Waly Salomão, os Irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Ivan Cardoso, e Hélio Oiticica, Torquato Neto, puxava a brasa para sua sardinha, já que tinha sido um dos principais letristas de músicas icônicas do Tropicalismo.

Sua grande contribuição para o movimento não foram apenas as letras da canção-manifesto “Geléia Geral”, de “Marginália 2”, de Gilberto Gil, e de “Mamãe Coragem” e de “Deus vos salve esta casa santa”, de Caetano Veloso.  Em suas colunas jornalísticas, defendeu com veemência a contracultura, além disso compôs em parceria inúmeras músicas. Com Gilberto Gil compôs sucessos como, "Louvação", "Domingou", "Zabelê", "A Rua" ou "Encarnada" em que dividiu a autoria com Geraldo Vandré. Com Caetano Veloso ainda compôs "Deus vos salve a casa Santa", "Ai de mim"; "Copacabana", "Nenhuma Dor". Com Jards Macalé: "Lets Play That. Com Carlos Pinto: "Todo dia é dia D". E "Três da Madrugada".

Em 1971 e 1972, Torquato escreveu a polêmica coluna no jornal Última Hora, intitulada Geléia Geral. A essa altura, Torquato já era um alcoólatra inveterado. Nesse espaço, Torquato defendeu desesperadamente o cinema marginal, combateu o Cinema Novo e a música comercial e lutou pelos direitos autorais. Ele defendia que o cinema deveria ser contra-hegemônico. 7 de fevereiro de 1972, Torquato afirmava aos seus leitores da Geléia Geral – coluna que posterior ao Plug – que o cinema não se resumia à produção.  Tinha de ter invenção, uma ação guiada pelo “coração selvagem” – que ele usa entre aspas, por provavelmente usar a expressão de Clarice Lispector. Nesse caminhar pelo cinema, Torquato iria expressar uma maior afinidade com os cineastas ligados ao grupo que ficou conhecido como Cinema Marginal.

O biógrafo Toninho Vaz, narra que essa ruptura com o Cinema Novo tinha nome e endereço. Torquato se aproximara de Ivan Cardoso e de Luís Otávio Pimentel, que segundo o poeta realizavam cinema de forma independente. O afastamento e a divergência com Glauber Rocha, manifestado numa carta, estavam ligados ao fato do Cinema Novo ter capitaneado a nova política cinematográfica ligada à Embrafilme. No fundo, Torquato não engolia bem essa história de se fazer filme com o dinheiro do governo.

Além dos sintomas evidentes, decorrentes do álcool, o poeta sempre teve temperamento difícil, com vários episódios de crises emocionais, consideradas pelos psicólogos como "surtos psicóticos". Por conta disso, foi internado oito vezes em hospitais psiquiátricos do Piauí e do Rio de Janeiro, incluindo o hospital de Engenho de Dentro, de Nise da Silveira. Tentou o suicídio por quatro vezes, e não foi por falta de aviso quando "Pra Dizer Adeus" de Edu Lobo, foi lançada e encarada como uma lírica de separação de uma casal. Ao final, na última tentativa, nem família e nem os antigos amigos conseguiram conviver com seus humores.

Toninho Vaz – que fez mais de setenta entrevistas com parentes, amigos e inimigos do letrista -  também desconstrói a imagem de Torquato como poeta tímido, reservado, introspectivo, melancólico. A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva. Resgata entrevistas antigas, uma delas com Nana Caymmi que comenta não sem uma dose de malícia: "Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso". Caetano Veloso, outros entrevistado para a biografia, foi categórico. "Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!"

A polêmica fez com que a viúva de Torquato, Ana Maria Duarte processasse o biógrafo impedindo que o projeto fosse adiante pela editora Record. Mantendo a aura do "maldito", a biografia desse maldito foi publicada pela Casa Amarela, braço editorial da saudosa revista "Caros Amigos".

No início dos anos 1970, já tinha brigado com as esquerdas e com o pessoal do Cinema Novo, já afastado dos colegas tropicalistas, chegou a queimar quase todos os originais inéditos. Passou a frequentar novos grupos, como o pessoal do underground carioca (da Zona Sul, é proprio dizer), o pessoal do cinema Super8, e os malditos da MPB, como Jards Macalé, João Bosco e Luis Melodia, estes em quem focou últimos trabalhos. 

Em seu último ano de vida -  já com 34 músicas lançadas -, e escreveu artigos para jornais marginais como Flor do Mal e Presença, e organizou, com Waly Salomão, a edição única da revista Navilouca, publicada postumamente em 1974. Logo após sua morte, um material inédito de poemas foi reunido por Waly e pela esposa de Torquato, Ana Araújo, no livro Os Últimos Dias de Paupéria, além disso mais de 100 música de sua autoria seriam lançadas por diversos artistas -  algumas prontas, outras só na letra. Uma centena. 

No dia específico em que morreu, chegou de uma festa organizada por alguns amigos, após longa conversa com sua ex-esposa, deprimido, trancou-se no banheiro, fechou a porta, vedou todas as frestas com lençóis, abriu o gás do chuveiro e, asfixiado, atravessou o espelho do banheiro, aos 28 anos de idade, Exatamente: no dia do seu aniversário.

Na ocasião da morte deixou uma espécie de carta testamento/último poema, chamado "Fico".

"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

 Nota: Thiago era o filho de dois anos de idade, à época.

 

STELLA DO PATROCINIO





Título: Stella do Patrocinio

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura
Data: Fevereiro de 2022

Sabe-se que ela gostava de Coca-cola, óculos escuros, biscoito de sabor chocolate, blusas de cor azul, caixas de fósforo Olho, leite condensado e maços de cigarro. Pelas fichas do Hospital Psiquiátrico, sabe-se que o pai era sergipano e chamava-se Manoel do Patrocínio e a mãe Zilda Francisca Xavier, e que nasceu a 9 de janeiro de 1941 na cidade do Rio de Janeiro. Pouco se sabe dos primeiros 21 anos de vida da cidadã Stella do Patrocínio, e o que se sabe de posterior é digno um filme com tantos cortes, que torna a história dessa poeta, uma das mais angustiantes sobre biografias da literatura brasileira. Certeza, poucas: mulher, negra, postura altiva, pobre, estatura alta e esquizofrênica, num Rio de Janeiro de uma de década de 1960.

Sabe-se que sorria muito pouco e que sua escolaridade ia até o segundo grau. Trabalhou como empregada doméstica no bairro da Urca, na mesma residência, aliás, em que sua mãe enlouquecera. A cabeça deu uma pifada no ano de 1962. E o episódio em que Stella foi presa em agosto deste ano, na quarta delegacia de polícia e posteriormente transferia para o Hospital Psiquiátrico Pedro II - o mesmo, por sinal, em que a mãe tinha sido internada anos antes - nunca foi esclarecido. Segundo ela deixou registrado em entrevista, quando ia pegar o ônibus no Bairro de Botafogo, onde morava, para a Central do Brasil, foi levada pela polícia. Depois de injeção, seção de porrada e eletrochoque, foi admitida num Hospital Psiquiátrico aos 21 anos de idade.

Diagnosticada com um quadro de “personalidade psicótica mais esquizofrenia hebefrênica evoluindo sob reações psicóticas”, ficou 4 anos no Centro Pedro II. E foi transferida  posteriormente, a 3 de março de 1966, para uma colônia de alienados que tinha por acaso nome em homenagem a um dos primeiros médicos negros do Brasil, fundador da psiquiatria brasileira. Quando Colônia Juliano Moreira foi criada, era imensa. Para se ter uma idéia, aquele depósito de esquecidos tinha o tamanho do bairro de Copacabana inteiro. O Hospital que ficava em Jacarepaguá era tão grande que a instituição chegou a internar 7.700 almas, encerradas em sabe-se lá que condições, entre suas três unidades. Numa destas unidades, Stella se livrou deste purgatório com morte em 1992.

Dos trinta anos em que passou em hospitais psiquiátricos, aliás os mesmos por que passaram o artista Arthur Bispo do Rosário, a mulher Stella passou a ficar invisível para a sociedade. O que ficou dela foram laudos, questionários preenchidos em letra de fôrma por enfermeiras e médicos, fichas, prontuários e documentos institucionais. O único registro intelectual, foram gravações de seus monólogos em fita cassete e que, anos depois, foram transcritas, organizadas e publicadas em 2001 pela escritora Viviane Mosé no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue Editorial). O livro chegou a ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti daquele ano.

A tortuosa e polêmica história deste livro parece ter começado no ano de 1986, quando artista plástica e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Nelly Gutmacher foi convidada pela psicóloga Denise Correia a montar um ateliê na Colônia Juliano Moreira. Gutmacher e a também artista plástica Carla Guagliardi, atuaram na Colônia entre 1986 e 1988, na ala feminina do Núcleo Teixeira Brandão, onde usaram a arte como forma de desenvolver a capacidade de expressão das pacientes. Na verdade, um braço de  continuidade do trabalho iniciado há 30 anos, por Nise da Silveira, na casa das Palmeiras com sua pesquisa sobre imagens do inconsciente.


A essa altura, com 45 anos, Stella, mulher negra, esquizofênica e abandonada, viva numa condição precária de ser humano. Já não tinha nenhum dente na boca, apresentava um quadro de diabetes avançado, e não gostava de desenhar, apesar de apresentar uma eloquência verbal muito acima do normal. Sua sofisticação conversacional, surpreendia a todos os que pretenderam dar um passado àquela mulher. O negócio dela era falar. Falava sozinha. No meio de seus monólogos soltava, de repente, considerações existenciais sobre sua reclusão e traçava um quadro sombrio, muitas vezes escatológico, sobre o ser humano: 
“Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha”

A experiência artística no manicômio e parte dessas falas poéticas gravadas, culminaram, em 1988, na exposição “Ares subterrâneos” no Paço Imperial, da Praça XV, que reunia a produção artística dos pacientes. Este trabalho arqueológico, chegou até à filósofa e psicóloga Viviane Mosé, que percebeu ali densidade suficiente para editar um livro de poesia. O livro, finalista do Prêmio Jabuti, seria reeditado em 2009. Ainda no ano de 2003, um o espetáculo musical Entrevista com Stela do Patrocínio, de Lincoln Antonio e Ney Mesquita, foi montado. E para o cinema em 2008 com o filme Stela do Patrocínio: a mulher que falava coisas, de Márcio de Andrade.

Ler Stella do Patrocínio, nesse livro editado em 2001, pode nos fazer pensar, sem nos dar conta do paradoxo, que estamos lendo Stella do Patrocínio. Stella do Patrocínio: poeta negra, presa num hospício, de escrita truncada numa cognição quebrada e imagens inesperadas. A poeta que repete travamentos rítmicos, deslocamentos rápidos, como se fosse uma fala para si para consigo mesma, cheia de delírios e alucinações. Entretanto, essa Stella do Patrocínio nunca escreveu seu livro lançado postumamente. O que lemos é a transcrição de um conjunto de declarações, baseado em entrevistas e conversas gravadas, muitas vezes induzidas por perguntas. Atribuir esse dado a uma pessoa que ficou esquizofrênica, antes de se tornar poeta e participar modus operandi do mercado, pode parecer irrelevante. Mas não é isso que diz Anna Carolina Vicentini Zacharias, em sua fundamental dissertação de mestrado intitulada Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira. Para a pesquisadora, que num incansável trabalho de pesquisa, no qual revirou as gravações que originaram o livro, e descobriu sobrinhos e parentes ainda vivos da poeta, o livro tem não apenas  esses problemas conceituais, e outros.

Sua organização, corte, versificação e distribuição endossado por uma editora como a Azougue, ultrapassava o trabalho editorial. Criava uma Stella do Patrocínio poeta brasileira, algo que a cidadã Stella do Patrocínio nunca teve a chance sequer de se propor. Criava uma espécie de obra remixada, baseada em conversas, não em discursos espontâneos. 

Um quadro que sem dúvida nos remete apenas opacamente a Arthur Bispo do Rosário. Já que Arthur Bispo ainda estava vivo quando sua obra se tornou parte especulada no mercado da arte. O artista ainda pode interagir com essa surreal tentativa de apropriação da arte, pelo mercado.  Tampouco, podemos comprar o caso de Stella com o de Lima Barreto ou mesmo Maura Lopes Cançado, ambos com histórico de internamentos psiquiátricos, e que publicaram livros que por escolha própria, e de alguma maneira, cada um a seu modo, participou do jogo literário.

Resumidamente, Stella Patrocínio criou uma obra poética que se insere de maneira angustiante no corpo documental da poesia moderna brasileira. Entretanto,  jamais foi transcrita, jamais foi escutada a não ser em prontuários e intervenções violentas. Jamais escreveu um só poema, mesmo fazendo sem parar poesia na oralidade do cotidiano.

Sabe-se que gostava de óculos escuros, Coca-cola,  caixas de fósforo Olho,  blusas de cor azul e maços de cigarro. Mas talvez pelo abuso de leite condensado, da Coca-cola, e dos biscoitos de sabor chocolate, as extremidades do corpo foram colapsando por falta de circulação. Stella foi internada em 1992, no Hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá, com um quadro de hiperglicemia grave.  A diabetes levou à amputação de sua perna. De volta à unidade hospitalar psiquiátrica, conviveu com uma infecção generalizada devido a complicações da cirurgia. Parou de se alimentar, não queria mais conversar e entrou em um processo depressão. Morreu pouco tempo depois neste mesmo ano.

Não se pode dizer quase nada de Stella do Patrocínio, nem sequer que algum dia foi ou quis ser uma poeta marginal. Entretanto, através dos fragmentos de sua biografia e do paradoxo de sua poética reunida algures, seu exemplo contribui com a história da luta antimanicomial, cria tranças com os movimentos negros e feministas, e contra a violência do Estado, num país estruturalmente racista, que esquece seus cidadãos. Quando se lembra, os aprisiona em jaulas, senzalas, camburões  e manicômios por crime, rebeldia ou loucura - ou às vezes, por muito menos.

BOCAGE

 




Título Bocage
Dimensões: 9x9cm
Data: Fevereiro de 2022
Técnica: Xilogravura

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765. Suas muitas versões biográficas estão cercadas de prisões, deserções e um certo mistério quanto a autoria de muitas obras a ele atribuídas. Mas são unanimes e dizer que que foi possivelmente o maior representante do arcaísmo lusitano.

Antes de continuarmos, uma advertência:  Por ser uma biografia não-autorizada de l'Hedois du Bocage, teremos, ao longo dessa biografia, muitas palavras de baixo calão. Portanto, se o leitor quiser interromper aqui a leitura, agradecemos a intenção recebida até aqui…

Nos primeiros anos, sabe-se que perdeu a mãe muito cedo e que o pai, um juiz de fora, esteve preso por longos anos, por, digamos assim, desviar algo de herbário do erário público – ainda que, digam as más línguas, que andava com gente amiga dos inimigos do Marques de Pombal, e como diz aquele velho adágio luso “Diz-me com quem andas e eu te direi que és”, não se sabe exatamente se foi preso por isso ou por aquilo. O fato é que Manuel Maria era criança quando o pai foi para o xilindró. Na linha ancestral, nessa que vem antes da escumalha dos parentes diretos, sabe-se que era neto de almirante. Por parte de mãe, tinha uma fauna hereditária artística respeitável entranhada nas raízes. A família da mãe vinha dos lados da França. Sua mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Marie Anne Le Page du Bocage, tradutora do Paraíso de Milton, imitadora da Morte de Abel, de Gessner, e autora da tragédia As Amazonas e do poema épico em dez cantos A Columbiada, que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o primeiro premio da academia de Rouen. Bocage ainda tinha um nobre e uma freira como padrinhos. Com esse cabedal, o jovem ingressou no exército em 1781 permanecendo por dois anos. Logo seguindo para Lisboa, onde foi admitido na Escola da Marinha Real, da qual desertou antes do final do curso. Mas essa coisa de ter ligações com a França, em fins do século XVIII, se me permitem a licença poética, sempre pode dar merda.

Ainda assim, consta que foi nomeado Guarda-Marinha por decreto de D. Maria I, A Louca, embarcando em 1786 para India com uma significante passagens pelo Rio de Janeiro. Com 21 anos, sua fama de fazedor de versos e poeta, já corria pela boemia lisboeta.

No Brasil, consta no "Dicionário de Curiosidades do Rio de Janeiro" de A. Campos Da Costa e Silva, que viveu na atual Rua Teófilo Otoni, no centro da cidade, e que gostou muito.  "Gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente, dedicou ao vice-rei algumas poesias-canção cheias de bajulações, visando atingir seus objetivos. Sendo, porém o vice-rei avesso a elogios, e admoestado com algumas rimas de baixo calão, que originaram a famosa frase: ‘quem tem cu tem medo, e eu também posso errar’. " Sem titubear, o Vice-rei obrigou-o a prosseguir viagem para as Índias. E se me permitem a licença poética, este poeta que dizia ser “capaz de foder Lisboa inteira!”, acatou a ordem do vice-rei e seguiu viagem com seu rabo entre as pernas. Ou refaço a frase: seguiu viagem com seus “conos e cus feitos num trapo”

Após essa tentativa frustrada de viver nos trópicos, rumou para India com passagens por Moçambique, Damão e Macau. E logo depois, frente as inúmeras tentativas de deserção, foi preso pela inquisição, que apesar de não mais assassinar, a altura dos anos de 1780, ainda era temida como braço politico do terror.

Pela inquisição seria preso duas vezes e pela polícia de Lisboa outras tantas, mas dizem que foi justamente no período de cárcere que Bocage produziu a maioria de seus textos, inclusive os textos sérios como as traduções e comentários de manuscritos em latim e sua primeira edição de rimas.

Nos calabouços da Inquisição, provavelmente, em nome de Deus, comeu o pão que o diabo amassou, pois na década de 1790, sua produção foi imensa.

Elegia que o mais ingénuo e verdadeiro sentimento consagra à deplorável morte do ill.mo e ex.mo sr. D. José Tomás de Meneses, etc.,1790; Rimas de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, tomo I, 1791; Eufémia ou o triunfo da religião: drama de Mr. de Arnaud, traduzido em versos portugueses, Lisboa, 1793; Elogio poético à admirável intrepidez, com que em domingo 24 de agosto de 1794 subiu o capitão Lunardi no balão aerostático, Lisboa, 1794; As chinelas de Abu-Casem, conto árabe de 1797; dentre outros.

Ainda nesta década de 1790, foi convidado a fazer parte da Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudónimo Elmano Sadino, com o qual já vinha escrevendo desde 1791, por exemplo,  Qeixumes do pastor Elmano contra a falsidade da pastora Urselina. Entretanto, o fescenino e boemio foi acumulando desafetos como todo o bom desbocado, passando a escrever ferozes sátiras contra os próprios confrades. Ou seja, não chegou a esquentar os couros das cadeiras na Nova Arcádia, sendo logo expulso.

Acredita-se que um dos seus principais rivais intelectuais na “Academia de Belas Artes”, Belchior Curvo Semedo, articulado com os “moscas”, polícia política regia que prezava pelo mantenimento do regime em plena turbulência dos ecos da Revolução francesa, denunciou alguns de seus poemas licenciosos e traduções que circulavam, inclusive no Brasil. Como tradutor dos Iluministas, não seria difícil atribuir-lhe outras culpas num tempo de paranóia restauradora e anti-revolucionária, afinal a denúncia contra o despotismo, o fanatismo religioso, a hipocrisia do clero, a moral sexual, eram temas recorrentes e correlatos aos Iluministas. No fundo isso é inveja, só pode ser.

E diga-se de passagem, Lisboa era dominada por Pina Manique, intendente de polícia e homem de confiança do temido Marquês de Pombal, o mesmo que em 1797 decretara a prisão de Bocage por ser “desordenado nos costumes”, Manuel Du Bocage já era uma figura marcada e conhecida por suas simpatias com as idéias do Iluminismo e figuras como Voltaire, Rousseau, La Mettrie, Diderot, d’ Alembert.

De 1799 até 1801 Bocage trabalhou com o Frei José Mariano da Conceição Veloso, um religioso brasileiro bem conceituado entre a corte e a igreja, que lhe proporcionou ganhar algum dinheiro com muito trabalho e troca de redução de suas penas. Deste período são os panfletos:

Sabe-se também que ao longo da vida foi tradutor com várias versões portuguesas de textos clássicos latinos, entre os quais se contam autores como Virgílio e Ovídio, caracterizadas pelo rigor e pela originalidade, atribuídas a Bocage. O mesmo rigor crítico ser também aplicados às suas traduções da língua francesa de escritores de vertente “Liberal”, como Voltaire, La Fontaine, Florian, Lacroix, d’Arnaud, Delille e Castel. De Le Sage, por exemplo, traduziu do francês para o português da picaresca História de Gil Braz de Santilhana, 1798. Bocage a traduziu até à página 116 do tomo II, a partir daí passou a ser feita por Luís Caetano de Campos, pois Bocage brigou com o editor e não quis continuar.

Em 1805 descobriu uma doença cardíaca com a qual iria sucumbir em cinco anos. Ainda nesse ano publicou Os improvisos e os Novos improvisos, escritos já durante a enfermidade. Estes últimos cinco anos, que precederam a sua morte, foram dolorosos. Pobre e doente, só não se viu completamente desassistido, graças ao amigo, o dono do café das Parras, no Rossio, José Pedro da Silva. Este café por muitos anos teve um lugar reservado para Bocage e seus amigos do Agulheiro dos sábios. Na sua doença, Pedro das Luminárias, como era conhecido o amigo taberneiro, o auxiliou com doações, dinheiro e ajuda na venda de seus livros, chegando a pagar as despesas do funeral.

O poeta, que ao longo da História, frequentou mais anedotário que lhe é atribuído, que à sua obra, é hoje um mito.  O mito e o anedotário muito se deve aos indispensáveis editores pilantras que, na primeira metade do século XX, sem escrúpulos, foram perpetuando esta fraude, através de edições com poemas e piadas de baixo calão, em sucessivas e de inúmeras tiragens, indo ao encontro da procura assinalável de um público que sempre esteve atrás de uma piada do Bocage. Afinal, junto à dos papagaios, as piada do Bocage, sempre foram as melhores.

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage morreu em 21 de Dezembro de 1805, em Lisboa. Vítima de aneurisma da artéria cervical interior do lado esquerdo, aos 40 anos.

 

DYONELIO MACHADO

 



Título: Dyonélio Machado

Dimensões: 9x9cm

Técnica: Xilogravura

Data: Junho de 2021

 

Dyonélio Tubino Machado nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Quirai, fronteira com o Uruguai, a 21 de Agosto de 1895. Filho de Sylvio Rodrigues Machado e da costureira Elvira Tubino Machado. Ainda criança, teve a vida marcada por uma tragédia. O pai, que era despachante aduaneiro na fronteira, foi assassinado quando ele era ainda um menino. Orfão de pai aos sete anos, o menino tinha uma família, agora, arruinada, constituída apenas pela mãe e pelo irmão mais novo Severino. 

Dyonélio nasce durante os anos da instauração da República, entre 1893 e 1895, travou-se cruenta luta entre as facções oligárquicas pelo comando do Estado, à qual se deu o nome de Revolução Federalista. Os republicanos – chimangos – estavam agrupados no Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e os liberais –maragatos -, no Partido Federalista.

Anos mais tarde, Dyonélio explicaria o contexto da morte do pai. Em cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O estadista. Rio de Janeiro: Graphia, 1995, Dyonélio disse: “Quaraí, é uma cidade de fronteira, com um movimento grande de importação e exportação. Toda a produção de lá tinha vazão pro Uruguai, pois para transportar charque pro Nordeste, passava-se dentro do Uruguai, o que dava margem a mil e uma safadezas.”

Aos oito anos, ele já vendia bilhetes de loteria para ajudar no sustento da casa. E menos de um ano depois do assassinato do pai, outro fato marcante ocorre. Um dia, na rua, encontrou o assassino do pai. O homem queria comprar um bilhete. Esse encontro é narrado pelo próprio escritor: “Não queiram passar pelo momento que passei: negociar com quem me fizera órfão era renegar uma adoração que nada abalaria. Mas trocar por dinheiro os poucos bilhetes de loteria que eu carregava, era obter meio quilo de carne. Cedi. Nossa transação se fez sem palavras. Sabia também o que me esperava em casa: era minha mãe chorando”.

A falta de recursos econômicos, não o impediu de estudar. Matriculou-se e ao irmão menor na recém-aberta Escola de Aurélio Porto. Para pagar a escola para os dois, Dyonélio dava aulas para os meninos das classes mais atrasadas. Com 12 anos, independente e solitário, começou a trabalhar como servente no semanário O Quaraí, o que lhe permitiu conhecer os intelectuais locais. Foi também balconista na livraria de um parente, João Antônio Dias. Não se sabe exatamente quando se tornou Comunista, mas por volta de 1911, aos 15 anos, funda em Quaraí o jornal O Martelo, nome sugestivo e que já demonstrava o seu interesse pelo marxismo.

Aos vinte anos já colaborava com os jornais Gazeta do Alegrete, Correio do Povo, Diário de Notícias e o Diário Carioca, vindo a se casar em 1921, aos 26 anos, com a professora de piano Adalgisa Martins. Três anos mais tarde entra para a Faculdade de Medicina, e ainda durante os estudos publicaria seu primeiro livro, Um Pobre Homem. No início dos anos 1930, o já formado, o Dr. Dyonélio continua com seus hábitos antigos dos chás e chimarrão.

Não gostava de médicos nem de remédios. Quando adoecia só tomava Melhoral, um analgésico e antipirético. E talvez por isso especializa-se em Psiquiatria, rumando para o Rio de Janeiro. Nesse momento iniciava-se um período político e econômico conturbado, na capital e no Brasil. Getúlio Vargas se torna o presidente e permaneceria no poder nos próximos 15 anos.

Durante o período de estudos acadêmicos, escreve em 1933, Uma definição biológica do crime, Um ensaio, parte da tese de doutoramento do autor que foi a precursora da bibliografia freudiana no Rio Grande do Sul. Nesse mesmo período, ainda encontrou tempo para traduzir a obra Elementos da psicanálise, do psicanalista italiano Edoardo Weiss.

No ano seguinte, de volta a sua terra, envolveu-se na greve dos gráficos da Livraria do Globo, por isso, foi preso pela primeira vez, ainda que por pouco tempo, num quartel militar, na Praia de Belas. Como homem de esquerda, tornou-se membro dedicado do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Após ser solto, ainda vai para o interior ajudar um familiar doente.

A segunda prisão ocorreu no dia 2 de outubro de 1935. Era uma quarta-feira. Nesse dia, Dyonélio Machado foi detido e levado para a carceragem do quartel do Terceiro Batalhão da Brigada Militar, devido sua participação na paralização dos gráficos do Rio Grande do Sul. Acusado de incitar os trabalhadores, Dyonélio foi enquadrado no artigo 19 da recém criada Lei de Segurança Nacional, instituída durante o governo de Getúlio Vargas. Aliás, ele foi um dos primeiros intelectuais a sofrer nas garras da “Monstruosa” como era chamada a lei que também encarceraria, um ano mais tarde, o alagoano Graciliano Ramos, por anos. Curiosamente, no mesmo dia da prisão, recebe a visita do jovem repórter, Rubem Braga, que registraria dias depois no jornal A Manhã, o recebimento do Prêmio Machado de Assis, em reconhecimento a Os Ratos. O escritor ficaria seis meses nessa prisão até ser transferido para o Rio de Janeiro, amargando um total de 2 anos de reclusão.

Segundo o próprio Dyonélio, a estória de Os Ratos o acompanhava há mais de 9 anos, estava toda em sua cabeça. Nessa época trabalhava em três hospitais. Chegava em casa do trabalho de médico, sentava-se à mesa e punha-se a escrever à mão em folhas de papel. Dormia muito pouco naquelas noites. Mas segundo ele, foram vinte noites mal dormidas. Escreveu Os Ratos em 20 noites. Pela manhã cedo, deixava o que escrevera à noite para que sua mulher fizesse a primeira revisão dos manuscritos. E no mesmo dia a esposa os entregava a uma funcionária empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo, para o trabalho de datilografia.

O livro, baseado num pesadelo que sua mãe havia lhe contado há anos,  tem um enredo bastante simples, linguagem seca e direta, que muito lembra a de seu companheiro de prisão Graciliano Ramos. Até os anos 1960, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava na base de um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados.

O personagem principal dessa obra é Naziazeno, um funcionário público, que dispões de apenas um dia para pagar uma conta com o leiteiro. Desesperado, chega no trabalho e pensa em pedir um empréstimo com o chefe da repartição. Sem sucesso, recorre ao amigo Duque. Ambos não foram trabalhar naquele dia. A doença do filho o desespera. Precisa conseguir dinheiro para o leite e o tratamento. Angustiado, Naziazeno consegue algum dinheiro emprestado para apostar num cassino. Entre as indecisões de apostar num número ou noutro, acaba ganha quinze mil-réis.  Guarda dez no bolso. Pega cinco, e compra mais fichas, na esperança de multiplicar seus ganhos. Porém, ele perde tudo.

No fim do dia, encontra os amigos Alcides e Duque, e os três procuram casas de agiotas, sem sucesso. Duque convence Alcides, que possui um anel penhorado com um agiota, a reavê-lo e renovar a penhora com outro agiota. Porém, para recuperar o anel, o trio é levado a fazer um outro empréstimo com outro agiota, Mondina.

Com o anel em mãos, Naziazeno e Alcides são instruídos por Duque a procurar Dupasquier, um comerciante de ouro. O dia está quase no fim, o tempo passa, e o leitor não consegue se livrar do efeito psicológico que a angustia do protagonista causa. O conselho de Duque não funciona.  Dupasquier trabalha apenas com venda, não com penhora. Quando finalmente os três conseguem negociar o penhor do objeto, e conseguem o dinheiro, Naziazeno chega em casa, exausto.  

Naziazeno, muito abalado, pensa e repensa o dia que passara, a angústia se torna uma espécie de paranóia e logo passa a ter umas alucinações entranhas com uma ratada. Ouve ruídos vindos da cozinha, entre pratos e panelas. A legião crescente de ratos invadem a casa e roem o dinheiro que obtivera, reduzindo-o a migalhas. E de repente tudo fica em silêncio.

Naziazeno se dá conta que está sentado na cama ao lado de sua mulher, Adelaide. Ele fica assim por horas a fio, até o amanhecer. Naziazeno só dorme após perceber o leite sendo deixado à porta de sua casa.

Em junho de 1937, obteve sua libertação, beneficiado que foi – como tantos outros – pela “Macedada”, nome do então ministro da Justiça Macedo Soares. De volta ao sul, foi a Quaraí (RS) se reunir com a família. Na cidade, passa a ter dificuldades de aceitação por parte da comunidade, em virtude de suas ligações PCB. Antes de se tornar comunista, Dyonélio tivera ligações poliíticas com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Ele fora muito amigo do governador Borges de Medeiros, de Protásio Alves e de toda a direção do PRR, além de ser parente do senador Francisco Flores da Cunha. Nessa fase, pós-prisão, a família sobrevivia às custas das aulas de piano ministradas por dona Adalgiza, esposa do escritor.

Após a celebrada recepção de Os Ratos, publica O Louco do Cati, em 1942, que foi mal aceito pelas editoras e critica.  Com o fim da Era Vargas, elege-se deputado estadual nas eleições de 1947, pelo PCB (ainda legalizado). Tornou-se líder desta bancada, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Mas com o decreto da ilegalidade do Partido, a bancada é cassada e Dyonélio volta a clinicar e militar no jornalismo político.  

Seu reconhecimento somente viria no final dos anos 1970, quando o escritor já tinha 88 anos. Nesse interregno publicou Eletroencefalograma (1944) e tardaria vinte anos para voltar a publicar Deuses Econômicos (1966), Endiabrados (1980), O Sol Subterrâneo (1981), e Ele vem do Fundão (1982).

O “Lobo Solitário” da literatura gaúcha, como o chamou Érico Veríssimo, deixou uma obra composta de 12 romances, um livro de contos, um volume de memórias e vários ensaios. Com uma vida cheia de traumas, prisões, independência e solidão,  faleceu no dia 19 de junho de 1985, no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, em decorrência das complicações de uma cirurgia no fêmur.

GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO 



Título: Glaucomattoso

Dimensões: 9x9cm
Técnica: Xilogravura
Data: Janeiro de 2022

O nome no CPF é outro:  Pedro José Ferreira da Silva. Nasceu em São Paulo a 29 de junho de 1951. De ascendência italiana, entre Vila Mariana e Mooca, morou em diversos bairros de São Paulo. Os pais viam o menino estudioso, leitor compulsivo, e sonhavam e vê-lo advogado. Entretanto, Pedro José tornou-se bibliotecário. Formado em biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, também estudou Letras na Universidade de São Paulo, mas não chegou a concluir o curso.

Logo após a faculdade, já funcionário do Banco do Brasil, vai morar em Santa Teresa no Rio de Janeiro. Dalí para o Centro Cultural do Banco do Brasil, onde trabalhava na seção de numismática, era um pulo. Nesse mesmo período em que começa a colaborar com revistas e jornais alternativos, agrava-se o problema de visão que o acompanha pela vida. Pedro José desenvolveu um caso raro de glaucoma que o tornaria completamente cego em 1995. Mas ainda em meados dos anos 1970, assume o nome artístico de Glaucomattoso, um engenhoso trocadilho que envolve sua perda de visão com sua admiração por Gregório de Matos, de quem se considera o herdeiro na sátira fescenina. O novo Pedro José, então, passa a meter o dedo na ferida, na vida, na língua, nos orifícios, na dor e no prazer alheios.

Entre 1976 e 1994, colabora com periódicos no Rio de Janeiro, como Pasquim, 34 Letras. Participa dos primeiros movimentos LGBT’s do Brasil, o Somos, e colabora o jornal gay, Lampião. Em São Paulo como Chiclete com Banana no Jornal da Tarde. Com Nilto Maciel, organiza uma coletânea do conto marginal, Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal. Como ele mesmo disse recentemente: “Eu me identifico com os marginais porque publicávamos nossos livros com recursos próprios e não estávamos nem aí para as editoras".

A coletânea de poemas publicados na imprensa nanica e alternativa da ditadura, se concretizou num livro. O Jornal Dobradil, foi lançado em 1981 – um trocadilho do Jornal do Brasil, num formato de papel dobrado com poemas satíricos. E chegava a mandar sua criação para figuras como Millôr Fernandes e Tom Jobim. Neste mesmo ano, ainda escreveu um pequeno livro paradidático para a editora Brasiliense, Que É Poesia Marginal?

Paulistano convicto, com o agravamento da doença, volta para São Paulo. E entre a década de 1980 e 1990 participa ativamente de palestras e debates envolvendo a poesia marginal. Talvez por se considerar abertamente um produto do rock, da contracultura e do gibi, muito críticos embarcam na solução fácil de considerá-lo apenas um poeta de linguagem obscena e muitas vezes chula. Entretanto, sua obra é altamente elaborada. Abrange uma produção inicial de poemas concretos, visuais, passando a sonetos elaboradíssimos.

Até o início dos anos 1990, a visão, já muito comprometida, ainda lhe permitia ler e escrever. Nessa década, entretanto, com o agravamento da doença, que o impediu de fazer esse essencial para um poeta, se isola.

Entre altos e baixos, é tomado por uma depressão, e graças a amigos próximos, dá a volta por cima. Fã declarado do humor britânico, por, segundo ele, encararem as piores desgraças pelo lado mais grotesco, viaja a Inglaterra e trava contato com a cena punk britânica, especialmente grupos punks gays. De volta ao Brasil, já com a visão muito comprometida, passa a produzir CDs de punk e rock alternativo pelo selo independente Rotten Records, que fundou em 1995, e pelo qual orbitaram importantes nomes do cenário punk brasileiro. Em 1996 lançar o Urbanoise, dos Garotos Podres, e nesse mesmo período torna-se amigo de figuras como Redson Pozzi, guitarrista e vocalista do Cholera, Clemente Tadeu, guitarrista e vocalista dos Innocentes – e posteriormente Plebe Rude - e de João Gordo, dos Ratos de Porão.

Completamente cego, homossexual, sadomasoquista e podólatra, não necessariamente nessa ordem, Glaucomattoso ainda manteve uma carreira paralela como tradutor, durante os anos 1990. Em 1993, trabalha na tradução para o português da Bíblia do Skinhead de George Marshall para a Trama Editorial.  E na fase mais brava, após o desengano de qualquer operação corretiva para a visão,  o amigo Jorge Schwartz fez uma proposta de trabalho que, em certa medida, resgatou o velho Glauco: traduzir Fervor de Buenos Aires, obra de estréia do grande escritor argentino Jorge Luis Borges – que também ficara cego.

Aos domingos, falavam por telefone. Schwartz lia, enquanto que Glauco vertia os versos para o português com sua fala grave, sem nunca embaralhar as palavras, e assim Schwartz digitava no computador. Ganharam o Prêmio Jabuti de tradução, um dos mais importantes do país.

Como se já não bastasse a cegueira, para uma pessoa  que encara o alfabeto ainda tem 23 letras, incluído o Cá, o Dábliu, e o ìpsilon, a vida é difícil. Para falar a prosaica palavra “foda”, por exemplo, usa o pê e o agá. É que Glaucomattoso é meio parnasiano e ainda escreve em ortografia anterior à Reforma de 1943. No início dos anos 2000, já desiludido com alguma cirurgia que lhe devolvesse a visão, teve um sopro de esperança. Apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox (desenvolvido pela UFRJ para a língua portuguesa), em que a pessoa falava o que vai sendo digitado na tela do computador, ou lê em voz alta o que já vem escrito. Mas o problema ortográfico permanecia no meio da grafia de um ou outro orifício tocados por sua língua e seus dedos. Em fevereiro de 2008 completou dois mil e trezentos sonetos de uma série iniciada em 1999, e que segundo ele tinha batido a meta histórica do italiano Giuseppe Belli que no século XIX teria composto 2.279 sonetos.

Paulistana convicto, como já dito, hoje em dia Glaucomattoso vive na cidade de São Paulo, com seu companheiro. Segue produzindo incansavelmente e publicando sem parar. Quase tudo o que escreve e publica em livros de papel, vai para seu blog e redes sociais. Ele sabe que um parnasiano em tempos de Tik Tok, tem que se adaptar. É phoda, mas é verdade. Mantem assim em seu espírito anárquico, que é interrompido apenas nas segundas-feiras, quando vem um profissional especializado que o conduz à farmácia e ao correio. Ajuda-o nessas tarefas rotineiras, porém indispensáveis, que ele, um bancário aposentado do Banco do Brasil, cumpre geralmente sem ser reconhecido -  como um tarado, o louco, ou sanguinário - por ninguém na fila da padaria.