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Fogo Amigo

 E por falar em filmes...


Ponto 
Artigo de Cesar Benjamin
Sexta-feira, Novembro 27, 2009

"Os filhos do Brasil"
A PRISÃO na Polícia do Exército da Vila Militar, em setembro de 1971, era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela tão pequena que só conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a diagonal. A cela era nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os militares chamavam de "boi"; a única água disponível era a da descarga do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis tentativas de espantar o frio. Comia com as mãos. Tinha 17 anos de idade.
Um dia a equipe de plantão abriu a porta de bom humor. Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram gentis e solidários comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri, passando a usá-lo nos dias seguintes como uma toga troncha de senador romano.
Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me que "estavam pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria matá-los. Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo que sabia inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas interpretações. Repetia uma ideia, pensando alto: "O Brasil não dá mais. Aqui só tem gente esperta. Quando sair dessa, vou para o Senegal. Vou ser rei do Senegal".
Voltei para a solitária alguns dias depois. Ainda não sabia que começava então um longo período que me levou ao limite.
Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes -"sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio", para lembrar Fernando Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem saber o que acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde, abriram a porta e colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora da Vila Militar. A caçamba do carro era dividida ao meio por uma chapa de ferro, de modo que duas pessoas podiam ser conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação, porém, não era completa. Por uma fresta de alguns centímetros, no canto inferior à minha direita, apareceram dedos que, pelo tato, percebi serem femininos.
Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há anos eu não via, muito menos tocava, uma mulher. Fui desembarcado em um dos presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e colocado na galeria F, "de alta periculosia", como se dizia por lá. Havia 30 a 40 homens, sem superlotação, e três eram travestis, a Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi o pesadelo de sofrer uma curra, mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e a direção do presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão para que os detentos pudessem assistir ao desfile.
Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude então, nessa noite, ter uma longa conversa com as lideranças do novo lugar: Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari Navalhada, por causa de uma imensa cicatriz que trazia no rosto) e Chinês. Quando o dia amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu que, durante algum tempo, eu fosse submetido à tradicional série de "provas de fogo", situações armadas para testar a firmeza de cada novato.
Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar. Aos poucos, aprendi a "língua de congo", o dialeto que os presos usam entre si para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.
Com a entrada de um novo diretor, mais liberal, consegui reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro e de segundo grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas penitenciários e até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma do supletivo. Era o que eu faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso desde os 17, já estava com 22 e não tinha o segundo grau. Tornei-me o professor de todas as matérias, mas faria as provas junto com eles.
Passei assim a maior parte dos quase dois anos que fiquei em Bangu. Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo, para aprender línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas de amor que eles enviavam para namoradas reais, supostas ou apenas desejadas, algumas das quais presas no Talavera Bruce, ali ao lado. Quanto mais melosas, melhor.
Como não havia sido levado a julgamento, por causa da menoridade na época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era mantido nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais presos políticos. Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa situação.
Lembro-me com emoção -toda essa trajetória me emociona, a ponto de eu nunca tê-la compartilhado- do dia em que circulou a notícia de que eu seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as galerias, trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma espécie de bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos outros presídios por onde passar.
Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião, temendo que a transferência fosse parte de um plano contra a minha vida. A essa altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era uma ditadura.
Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam os meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos depois. Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos e amigos. O Devagar ia embora.
*
São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa campanha.

Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas, mais ou menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.

Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele, conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas eu não queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório, durante um almoço.

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta".

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.

*
Dias depois de ter retornado para a solitária, ainda na PE da Vila Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do jornal "O Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete principal, anunciava que Caveirinha e Português haviam sido localizados no bairro do Rio Comprido por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de intensa perseguição e tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles haviam antevisto.

Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma greve de fome contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia naquela unidade.

Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo Lee foi transferido para a Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá foi desativado. Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que o enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os planos e o mandou para o Alasca. Na última vez que falei com ele, há mais de 20 anos, estava animado com a perspectiva do embarque: "Arábia ou Alasca, Devagar, é tudo as mesmas Alemanhas!" Ele quis ir embora para escapar do destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente preso e dessa vez assassinado. Não sei o que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.

A todos, autênticos filhos do Brasil, tão castigados, presto homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela maneira como trataram um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que lhes esteve ao alcance das mãos. Eu nunca soube quem é o "menino do MEP". Suponho que esteja vivo, pois a organização era formada por gente com o meu perfil. Nossa sobrevida, em geral, é bem maior do que a dos pobres e pretos.

O homem que me disse que o atacou é hoje presidente da República. É conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou projeção internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que tenha melhorado com o passar dos anos.

Mesmo assim, não pretendo assistir a "O Filho do Brasil", que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o filme mostra cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar, rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à personalidade, tenta esconder.

CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista do Jornal Folha de São Paulo.


Contra Ponto

Artigo de José Arbex Júnior

A César o que é de César
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.

Por José Arbex Jr., jornalista e escritor*, na revista Caros Amigos
Quando comecei a ler o já famoso texto de César Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia. Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria “confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo, Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto, o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica, ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que, supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin, adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo. Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e nunca fui “lulista”; não sou mais, já fui petista; não simpatizo com a maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar — o colega de cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos, então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos, então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam, eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César, terás então descido a tão baixo nível?”).
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro, claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo. Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva, necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de glórias. Requiescate in pace.
*José Arbex Jr. é autor do excelente livro “Showrnalismo – a notícia como espetáculo”, dentre outros.


Música do dia. Profecia Final (ou No mais Profundo). Cordel de Fogo Encantado


Adeus povo, adeus árvores adeus campos
Aceitai minha despedida
Fico governando essa zona de cá por inteiro até a ponta dos trilhos em Rio Branco
e o senhor por sua vez governa
do Rio Branco até a pancada do mar
Espinhos soltos no chão
Mistérios presos no ar
Não desejei carregar esse cajado infinito
Anuncio a tua vinda
No silêncio dos cocões
Já vou, meu primeiro trago
Longe da terra primeira
A nitidez se acentua
O nevoeiro se engole
Minhas raízes caminham

Herdeiros do fim do mundo
Queimai vossa história tão mal contada

No mais profundo riacho seco
Na mais alta casa do mundo
Na vastidão do teu olho
Na pancada do segundo
Suor de santa vela acesa
A língua hóstia consagrada
Sangue vinho do meu peito
Pés andor da dor cansada


Muros

Lendo essa reportagem da BBC, nesta semana - onde sobra até para o Rio de Janeiro - , chego a uma conclusão gravíssima... somos todos figurantes de uma promessa sem premissas. Quem não se lembra no final da década de 80 de Reagan desafiando Gorbachev, Tear down this wall!. Vivemos a segunda metade do século XX forçados a pensar que aquele muro construído em 1961 representava a opressão. O problema é se dar conta do engano tarde, tão tarde.



http://news.bbc.co.uk/2/hi/in_depth/world/2009/walls_around_the_world/default.stm

Incêndio destrói obras do artista plástico Hélio Oiticica

O Globo. Dias atrás.

RIO - Um incêndio na casa da família do artista plástico, pintor e escultor Hélio Oiticica no final da noite desta sexta-feira, no Jardim Botânico, Zona Sul, destruiu 90% do acervo das obras de arte do artista, um dos fundadores do movimento neoconcretista. Segundo o arquiteto César Oiticica, 70 anos, irmão de Hélio, cerca de duas mil peças do artista, morto na década de 1980, foram queimadas, num prejuízo estimado em US$ 200 milhões. De acordo com a família, a coleção não tinha seguro. Ninguém ficou ferido e as causas do incêndio ainda são desconhecidas.
- Não tinha seguro, nem a casa nem a obra do Hélio. Fizemos um estudo, mas o valor era muito alto, não lembro mais qual era a cifra. O valor era tão alto que ficou inviável. Poderíamos fazer seguro contra incêndio que cobrisse só a casa, e não o acervo, mas acabamos não fazendo isso, decidimos arcar com os riscos - disse César.
De acordo com o arquiteto, o fogo começou por volta das 22h. Ele contou que jantava com a mulher e um grupo de amigos quando sentiu forte cheiro de queimado. Bombeiros do quartel do Humaitá foram chamados para apagar as chamas. Abalado, César disse que 90% do acervo do irmão - avaliado em 200 milhões de dólares - foi destruído pelo fogo.
- Qual a justificativa que vamos encontrar para uma tragédia como essa? - lamentou o arquiteto. - Foi a maior tragédia que poderia acontecer para a cultura brasileira. Sem dúvida alguma, a única vítima dessa tragédia foi a cultura brasileira.
O arquiteto, no entanto, descartou a hipótese de um incêndio criminoso. Segundo César Oiticica, no ateliê havia controle de umidade e temperatura para manutenção das obras, além de alarmes de presença e anti-incêndios. O tenente do Corpo de Bombeiros Yuri Manso informou que as chamas consumiram as obras com rapidez. Ainda de acordo com o oficial, só após laudo técnico é que será possível descobrir as causas do incêndio.
Segundo César Oiticica, entre as obras destruídas pelas chamas estavam quadros, documentários e livros. Obras consagradas como Bólides e os Parangolés - a primeira manifestação ambiental coletiva, envolvendo capas, barracas, estandartes e passistas da Mangueira, na mostra Opinião 65 - também foram destruídas. Só se salvaram os trabalhos que estavam armazenados em CDs e no computador da casa. Todo o acervo fotográfico do pai do artista, o renomado José Oiticica Filho, também teria se perdido no incêndio.
Considerado um dos mais revolucionários artistas de seu tempo, Hélio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro, em julho de 1937. Ele morreu em março de 1980, após sofrer um AVC. Ao lado de nomes como Lígia Clark, Amílcar de Castro e Ferreira Gullar, Hélio participou do movimento neoconcretista e teve obras expostas em âmbito internacional.
Entre seus trabalhos mais conhecidos estão os parangolés (espécie de capas coloridas, arte para ser vestida) e penetráveis (instalações). É autor da conhecida frase "Seja marginal, seja herói", que escreveu em uma bandeira sobre a foto de um traficante morto publicada em um jornal carioca em 1968, durante a ditadura, e foi um dos grandes inspiradores do movimento tropicalista com sua obra "Tropicália".
O artista viveu de 1970 a 1978, Oiticica viveu em Nova York, onde participou da mostra Information, realizada pelo MoMA (Museu de Arte Moderna).
Em 1981, um ano após a sua morte - em 22 de março de 1980 -, foi criado no Rio de Janeiro o Projeto Hélio Oiticica, para preservar a obra do artista. A Secretaria municipal de Cultura do Rio criou o Centro de Artes Hélio Oiticica em 1996.
Para o diretor da Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, Jones Bergamin, o maior legado de Oiticica eram seus projetos e anotações.
- O problema é que as obras dele existem espalhadas em coleções particulares e museus mundo afora, mas seus projetos estavam todos aqui. O valor artístico é muito maior que o financeiro. É uma perda incalculável - disse Bergamin em entrevista à Globonews.



Nota 1. Hélio Oiticica, Tom Zé e Torquato Neto foram os maiores artistas brasileiros do Torpicalismo. Para se ter uma idéia de como a Tropa de Elite Baiana tratava-os, vale sempre a pena conferir o "Os Ultimos dias de Paupéria" de Torquato Neto, e mais recentemente o epistolário entre Oiticica e Torquato - mostrando a fraternal amizade entre os dois - reunido num grande livro organizado pelo Paulo Roberto Pires chamado "Torquália { do lado de dentro }"
Nota 2. Metaesquema n. 348. 1958. MoMA Collection.

Nota 3. O que um acervo dessa magnitude estava fazendo na casa da família e não no Centro Oiticica, ou no Museu de Arte Moderna ou em qualquer outro museu? E por que não tinha seguro? E agora que estão reduzidas em 90% quanto não valerão as obras restantes? Golpe de mestre das moiras, que certamente irá beneficiar alguém...

O Alçapão de Marcelino

...como dizia Balzac ao descrever o senhor Grandet, em Eugénie Grandet,

«O senhor Grandet desfruta em Samur de uma reputação cujas causas e efeitos não podem ser totalmente compreendidos por pessoas que não tenham vivido muito ou pouco numa província»,

...por essas e por outras, imagino que o livro Marcelino, de Godofredo de Oliveira Neto, talvez deva ser compreendido com esse olhar, nesse diapasão de quem tem parentes na roça, e que ao mesmo tempo vê, escuta e sente tudo, com a devida familiaridade da matuta estranheza. Ou seja, um olho na roça e um olho no Modernismo.

...a estória se passa nas costa do litoral de Santa Catarina, onde vive Marcelino Alves Nanmbrá dos Santos, o herói  -  ou anti-herói do romance. Marcelino é um jovem pescador, neto da mistura de uma avó índia, com um escravo e um açoriano. Profissionalmente, Marcelino cruza e cabeceia,  é uma espécie de arrais, pescador e contramestre, que pilota um barco de pesca, o Divíno Espírito Santo, presente se sua avó a quem dedica toda sua memória e agradecimento. A embarcação, que aos 15 anos recebera de presente, é uma baleeira de onde tira seu ganha-pão e que seria razão de sua vida, e diga-se de passagem, do início de sua desgraça.

...eventualmente, Marcelino, trabalha para o ex-senador da República e alto funcionário do governo federal Nazareno Correa da Veiga di Montibello, casado com Emma Alencastro quando este passa férias na Villa Faial, na praia do Negro Forro: tipo assim, leva para passear, traz um peixinho fresco… e por ai vai.

...os Di Montibello são uma família politicamente poderosa. A casa e a rua são a mesma coisa. Usufruem da coisa pública de uma maneira semelhante com que administram a casa. Os cientistas sociais diriam assim ó, dos Montibello: o aconchego e as formas emotivas, falsamente próximas, com que tratam os empregados são levadas à esfera do Estado com naturalidade sem maiores dramas quanto à reserva do que é privado ou público.

...além da grana, da ascendência baseada no patrimonialismo, e do poder baseado na imbricação política, os Di Montibello tem dois outros tesouros. As filhas Sibila e Martinha. Sibila é uma menina que, na flor da puberdade, insinua-se para Marcelino – que não é bobo né! Não que aos 18 anos o rapaz não sentisse falta de uma mulher. Sentia. Obvio que sentia. Imagine, você leitor, os hectolitros de testosterona, próprios dos 18 anos, projetados numa Sibila andando por ali pela praia do Negro Forro. Mesmo em seu silêncio, Marcelino, que é jovem de vida simples, e que cuida de pássaros, e que vive em harmonia com a natureza e com os vizinhos, tem seus momentos de reflexão e divagação romântica, se é que vocês entendem quando se fala de Romantismo. Ou seja, no plot do livro, Marcelino sabe que se chegar junto em Sibila a treta fica cheia de complicações.

...Nego Tião é o amigo de Marcelino que entende da vida prática. O rapaz é aquele anjo torto que todo o amigo tem. Nego Tião tá de olho em tudo. Vê que a moça se insinua para Marcelino de uma maneira diferente, mas que este estranhamente não corresponde às investidas. Nego Tião então o instiga para conhecer as mulheres do “L’Amore”, onde, segundo o próprio, Rosália lhe ensinaria tudo. Ou seja, tudo. Nesse caso tudo é tudo, entendeu?  Mas ele não consegue convencer a um Marcelino que dispensava no “Amore” tanto quanto tudo aquilo que poderia encontrar em Sibila. Enquanto no “L’Amore”, segundo reflexões de Marcelino, estavam as mulheres de todos e, portanto, nenhuma que se encaixasse em seu universo idílico,  filha do senador, não fazia por menos em mostrar-se sempre superior, elitista, cosmopolita - caso se pudesse dizer isso de alguém do Rio de Janeiro. Mas de fato, sempre quando Sibila passava férias na Villa Faial, o jogo de sedução se repetia, ano a ano.

...os personagens secundários são igualmente um universo à parte nesse mosaico balzaquiano que o autor vai montando aos poucos. Mesmo sem dar muito ouvidos ao Nego Tião, é só junto aos companheiros do colégio Luis Delfino que Marcelino se sente em casa, à vontade, com os seus. Seus como a professora Ednéia, como Martinha, filha de Ézio, da venda de Praia do Nego Forro, menina sonhadora que queria casar  - talvez com Marcelino. Ou seus, como o próprio Tião do Luiz Delfino, um amigo próximo, que é o responsável por desvendar a razão do estoicismo de Marcelino. Tião é quem descobre  ter sido Marcelino embruxado pela alemoa Eve, a governanta dos Di Montibello. A mulher que pelo apodo de “potranca polonesa” devia mesmo ter nada de metafísico e muito de femme fatale. No fundo, Marcelino só tem olhos para a governanta do doutor Nazareno Correa. Sendo mais claro, Marcelino só tem olhos para butique da alemoa.

...e justamente no momento em que a paixão por Eve é revelada na trama, sua vida parece virar de ponta a cabeça. O jovem tem seu destino mudado a partir de uma tempestade no mar que causa grandes estragos a sua embarcação e pior que isso, resulta na morte de um de seus ajudantes, um menino aprendiz de nome Edinho. De volta à Praia do Negro Forro (vizinha de Santo Antônio de Lisboa, Ilha de Santa Catarina – se não sabe onde é, dá ai um Goolgle), atormentado pela perda, Marcelino Nanmbrá, ou simplesmente Lino Voador, retorna desnorteado, remoído pelo arrependimento, ferido gravemente na mão.

...gravemente ferido na mão e deprimido, Marcelino está entregue a uma espécie de letargia, quando Eve aparece em sua casa. Ele interpreta a visita como algo mais que solidariedade. Dá-se um diálogo de surdos. Ele, ainda atormentado pelo infortúnio, e a polonesa falando de planos mirabolantes que consistiam em Marcelino salvar o Brasil. Percebendo que suas palavras não surtiam efeito nos pensamentos ausentes do pescador, Eve começa a insinuar-se, o que faz com que Tião, um tipo digamos mais sagaz para esse tipo de coisa, dias mais tarde interpreta o evento de maneira prosaica, comentando que a polaca anda com calor nas partes.

,,,as férias acabam. Os Di Montibello retornam ao Rio. A mão ferida piora por falta de tratamento. A febre toma conta de seu corpo, a gangrena é inevitável e a amputação da mão uma consequência natural. Tudo podia ser trágico, mas o autor estanca aqui o calamitoso.

,,,aqui, Godofredo começa com suas investidas no triller de espionagem. Diga-se de passagem, muito bem fundamentado em fatos históricos e em detalhes históricos que passam pelas transmissões do Reporter Esso, e pelas linhas das revistas Seleções, Diretrizes, e por ai vai. A série de acontecimentos e infortúnios em torno ao acidente de Marcelino desencadeiam uma manipulação de bastidores dos inimigos políticos de Nazareno Correa. 

...Eve e o Senador convencem Lino a passar uns tempos no Rio para se recuperar e cuidar dos pássaros do Senador, entretanto, o que está em jogo é uma ação muito mais ambiciosa. A casa do senador é frequentada por políticos, empresários, agricultores, exportadores, banqueiros e toda uma gama de gente do andar de cima, simpatizante ou não do governo. O próprio senador é homem que tem livre acesso ao Palácio do Catete. Estamos mais ou menos nos inícios dos anos 1940, época da política das barganhas de Vargas. Anos antes, Karl Ritter é declarado persona non grata, pelo governo brasileiro, o Wilhemstrasse paga com a mesma moeda expulsando Moniz Aragão da Alemanha, o Eximbank manda dinheiro para a constução da CSN e por trás desses grandes acontecimentos pendulares internacionais entre os pró-americanos e os simpatizantes do Eixo, existe a política palaciana no Catete muito mais local e realista como foi o governo Vargas. E é ai que entra o Claudionor!

...Claudionor é dos assessores políticos de Vargas, visto por aqueles dias de estada de Marcelino no Rio com Eve e seu grupo. A figura nefasta na política das paragens da praia de Negro Forro, por ter interferido na decisão de Getúlio em romper relações com o Eixo e consequentemente contra a Alemanha. Em seus diálogos internos, Eve sonha com ver Lino matando-o a tiros. E Lino, aos poucos passa a acreditar nos sonhos megalomaníacos da amante, e entende, em sua maneira peculiar de entender o mundo, que ele salvaria o Brasil eliminando Claudionor.

...bom, eu também paro por aqui, respeitando o clímax da estória, e dou um salto de algumas páginas para o final reconciliador. Marcelino regressa a Santa Catarina num cargueiro sujo e infestados de arganazes. Esquecido e “perdoado” pela família dos patrões grã-finos. O Marcelino que retorna à p
raia do Negro Forro como um  farrapo humano. Chega irreconhecível - aqui, por volta do capítulo 98, pode haver um pequeno erro de continuidade, pois o protagonista é algemado...como algemado? Entendeu? 

Os Di Montibello acharam por bem, melhor dizendo, que pobre coitado fora enganado pelos nazistas. No dia seguinte, todos correm para a àrvore onde Marcelino pendura suas gaiolas em galhos altíssimos. Anda de galho em galho, vago nos princípios e impreciso em suas desilusões, carregando memórias absolutamente enigmáticas. Para os que o viam do pé da árvore, não faziam do que ocorrera no Rio. Estes, pensam que se jogará. Martinha murmura de amor. Tião sobe para tentar socorrê-lo. A professora chama-o manumisso. Talvez fosse. Talvez não. Fato é que todos os personagens desconhecem sua intenção, e inclui-se aí o leitor, já que Godofredo Neto, habilmente segreda o foco narrativo de Marcelino, calando-o nos momentos decisivos da trama. O alçapão de Marcelino, ou melhor, a gaiola de Godofredo de Oliveira Neto não é feita para pegar trouxas. Ou é…


...pois um  muito trouxa como eu, tem a impressão errônea, ao fechar o livro, de que Marcelino figura como um títere. Um objeto de mofa utilizado pela família do senador, por Eve, e pelos seus amigos. Mas essa idéia vai se desfazendo aos poucos, ao se perceber que do ponto de vista da construção do personagem, Godofredo de Oliveira Neto rompe logo de cara com duas idéias genéricas contidas no Modernismo. Primeiro, seu livro se encaixa talvez muito de longe na proposta Regionalista. Há ali obviamente essa tal tensão entre o idílico e o realista, o vinco entre a oralidade e a língua culta (inclusive atentando para as idiossincrasias do português falado na Negro Forro e no Rio de Janeiro), entre o campo bucólico e cidade perversa. Mas pára por aí e não se prolonga nisso de maneira lá muito exaustiva. Segundo, o autor, mantendo a estrutura narrativas de tempo, respeitando a separação muitas vezes irreconciliável entre o culto e o popular – clara quando Marcelino trauteia uma ària de ópera ouvida na casa dos Di Montibello - , imprime um profundo respeito com a linguagem, e não assume o texto como um relato, onde o narrador é onipresente. Nesse ponto, rompe e ultrapassa a herança modernista e meio tosca de herói. Godofredo tira Marcelino do espectro desse herói... daquele herói..., que sem nenhum caráter, que racionalmente se posiciona acima do bem e do mal, que por isso mesmo isenta-se da moral, é um herói que por malabarismos linguísticos transforma-se no herói a procura de um caráter.

...a pretensão de Godofredo de Oliveira Neto é clara, ao menos para mim. O autor tenta fugir da retórica do Modernismo, que a reboque de tanto academicismo, de tanta bobagem, criou, e tenta refundar seu Marcelino claramente como um herói pré-moderno, nos moldes dos heróis vencidos bem próprios e mais próximos de um protagonista da obra de Lima Barreto - o mais visionário e avançado dos modernos. Na verdade, pra ser sincero, nem sei se Godofredo de Oliveira queria criar novos heróis literários ou prender no visgo do seu alçapão os ainda tentam sobreviver.

 

Música do dia. Matador de Passarinho. Rogério Skylab.


Ray Bradbury se esqueceu de nós

Em 1966 Truffaut lançou Fahrenheit 451 baseado no livro homônimo de Ray Bradbury. Nunca fui muito chegado no gênero de ficção científica, pois sempre pensei que a fabulação interferia de alguma forma na trama apondando sempre para um fim moralista. Mas quanto a este livro, percorri o caminho inverso. Assiti ao filme antes de ler o livro. O filme, apesar de ser um dos mais fracos de Truffat, deixa-nos uma sensação estranha.

Num futuro, numa certa América, as pessoas vivem numa circunstância de ações pragmáticas ao extremo. Hedonismo e ignorância levam ao Estado punir qualquer um que seja pego lendo livros, enclausulando-os num sanatório. Os livros ilegais encontrados (por exemplo, Whitman, Faulkner e Ortega y Gasset), são queimados por bombeiros. Guy Montag, é um bombeiro que queima livros, mas um bombeiro diferente. No dia seguinte em que encontra a esposa prostrada ao lado de um frasco de comprimidos, vai para mais um dia de labuta. Furtivamente, ainda perturbado com o suicídio da mulher, numa das casas subversivasa, acaba folheando uma revista. Sente-se atraído pel conteúdo e passa a roubar livros para ler. Daí em diante, a estória toma outro rumo e ele vai descobrindo, agora com simpatia, que cada vez mais pessoas tem esse hábito subversivo.

Ou seja, de alguma forma, pensar numa sociedade que não lê, pode ser algo assutador. E ontem, revidando o blog de Galeno Amorim, me deparei com essa notícia.
Norte tem 92 cidades sem bibliotecas

A região Norte do Brasil apresenta um dos maiores déficits de bibliotecas do País. Uma, entre cada cinco cidades que ainda não possuem esse equipamento, está em um dos estados da área. Ao todo, são 92 cidades sem bibliotecas: Acre (6), Amazonas (36), Roraima (7), Rondônia (3), Pará (10), Amapá (4) e Tocantis (26).O Ministério da Cultura pretende zerar o número de municípios sem acesso público e gratuito aos livros até o mês de julho.

De alguma forma, até julho ainda corremos o risco de que a realidade possa ser muito mais perigosa e cruel que a ficção científica de Bradbury.

Imaginem se até julho, por falta de recursos públicos, essas bibliotecas não chegam à região Norte e as crianças que não tiveram acesso a esta biblioteca - que de fato nunca existiu - , se tornem adultos sem leitura e cheguem a conclusão que bibliotecas são prescindíveis, na mesma medida que a pobreza espiritual, àquela que desliga os olhos com que lemos ao sentimento, seja algo normal, e que os edifícios prisionais, lotados de pessoas que geralmente nunca puderam ler, sejam mais importantes que escolas, e que um policial seja tão desrespeitado quanto um professor, exatamente por aceleradamente perder a função social, mas isso não impede que as pessoas tenham uma idéia idílica do país como um lugar muito agradável de viver, mesmo sem saber ao certo como se irá sentir dignidade depois.

Pronto, botei um fim fabuloso, cabuloso e moralista.

Linha do tempo

1792. No Rio, na praça de nome Tiradentes, há uma estátua do neto da mulher que mandou executar o alferes.
1822. A Independência Política de portugal foi feita por um príncipe português, que se tornaria rei de Portugal.
1838. 30 mil mortos é o saldo da Balaiada, que teve como herói um homem com codinome de O Pacificador.
1850. A lei da proibição do tráfico intercontinental de escravos veio no mesmo ano que a lei de terras. Ou seja, torna-se a terra cativa, na iminência da mão-de-obra passar a ser livre.
1864. A Guerra do Paraguai foi a única guerra em toda a América Latina a usar armas biológicas (Decepava-se a cabeca da vítima de varíola e deixava-se o corpo na cabeceira do rio, contaminando a água)
1861. O maior romancista brasileiro, Machado de Assis, trabalhou com censor no Conservatório Dramático Brasileiro.
1888. A abolição da escravidão foi assinada por uma senhora de escravos.
1889. A República foi proclamada por um monarquista.
1889. As eleições do Império, com voto era censitário, havia mais votantes que a da República onde mulher e analfabeto não votava.
1896. Um dos maiores massacres de um movimento igualitário foi liderado por um fanático religioso moralizante e conservador.
1922. O herói nacional do Modernismo é um tipo sem caráter.
1930. A Revolução Burguesa foi feita pelas oligarquias. A Revolução de 1930 não foi uma revolução.
1937. Um presidente ditador criou mais garantias trabalhistas que todos os presidentes democratas até então.
1954. O mais marcante feito de um presidente foi um suicídio.
1964. Ditadores eram estatistas. Democratas financistas.
1982. A redemocratização foi encabeçada por um general Sorbonne e um lider da UDN Bossa Nova.
1990. O único presidente que sofreu impeachment por corrupção foi o único que prometeu eliminá-la.
1995. O maior plano de privatização foi feito por um intelectual esquerdista.
2003. Os maiores lucros bancários da história da República foram alcançados na gestão de um presidente filiado a um partido trabalhista/socialista. O adágio de Celso Furtado é incômodo. Na bonança o Brasil concentra os lucros e e na crise socializa as perdas.

Efemérides e quinquilharias

Para todos os efeitos, no dia 22 de abril de 1500, o jovem de 33 anos, nascido em Belmonte, Pedro Alvares Cabral, chegou às costas da Bahia. Veio trazido, de inopinado que era, por ventos que o desviaram da rota das Indias.

Não se sabe ao certo se sabia-se ou não da existência de Pindorama, mas já havia indícios de que havia algo do lado de cá do Atlântico, já que em Novembro de 1493 Cristóvão Colombo escrevera em carta ao Rei sobre o achado as supostas Índias Orientais.

http://www.wdl.org/en/item/2962/

Há indícios que Alonso Ojeda, acompanhado de Américo Vaspúcio teria descido pela Venezuela e tocado a Terra dos Papagaios no litoral do Rio Grande do Norte, antes de Cabral. Quem sugere isso é Varnhaguen, que acabou sendo contestado por Capistrano de Abreu e Rio Branco - que diga-se de passagem era homem de Estado e dependente da arte psicotrópico-cartográfica. Dizem que, tendo casado com uma dançarina francesa, não lhe restava outra coisa que dormir sobre os mapas espalhados na mesa do palácio Itamaraty.

Corre outra lenda que Vicente Yánez Pinzón havia tocado o litoral de Pernambuco, ou a ponta do Mucuripe no Ceará, tomado posse e chegado ao chamado Mar Dulce, que viria a ser a foz do Amazonas, mas resolveu seguir para o Norte. Os historiadores Duarte Leite, Capistrano e o Visconde de Porto Seguro a contestam, com o argumento baseado na preexistência conhecida do Tratado de Tordesilhas, mas escondendo a opinião de que no fundo pai é quem cria.

Embora o descobrimento tenha sido de fato feito por Pinzón, o descobrimento oficialmente válido foi feito pelo seu Cabral.

Em 1852, no IHGB - aquela arcádia olissiponense de gente inteligente mas chata para dedéu, iniciou-se uma peleja das mais tiranicídias, com direito a dedos no olho, cuspidas na cara e envolvimentos de nomes de mães no meio. O tema do acaso ou da intencionalidade do descobrimento, ou como diziam, a questão da prioridade e da intencionalidade, veio à tona. Gonçalves Dias - aquele... do... Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá... - sustentando a tese de Norberto de Sousa sobre a prioridade da posse, afirma que D. Manuel, em carta aos reis da Espanha, comunicava a descoberta 'milagrosa' da terra.

Referia-se o Rei que Cabral "chegou a uma terra que novamente descobriu". Esse novamente virou objeto de discórdia entre a velharada do IHGB por anos. Foi resolvido apenas por Capistrano de Abreu, que retoricamente afirmou tratar-se a carta de viagens feitas à região sententrional, onde havia estado outros navegantes portugueses, e a palavra novamente, poderia ter bem o sentido de recentemente - mas essa é uma questão que de fato apenas uma pessoa pode resolver: Zé Saramago.


Nota do dia.
Lançamento da World Digital Library.
http://www.wdl.org/pt/

O homem de palavras

O discurso político eficiente, requer retórica própria. E a persuasão é uma regra básica da retórica. Aristóteles sabia disso e nos ensinou uma palavra mágica, Ethos, para definir a parte da retórica que estabelece a bona fides do orador, seja ele político ou não. Assim sendo, o camarada pode escolher caminhos diametrais para ser persuasivo, usando o Logos, o Pathos, ou ambos. Ou seja, um exemplo literário claro, já que no estamos falando de outra coisa, poderia ser expresso de três formas: Ethos ( compre meu livro por que me chamo XYZ); Logos ( compre meu livro, leia-o, pois nele há uma estória que pode te dizer algo); Pathos (compre meu livro, mesmo que não o leias, caso contrário torço o pescoço do teu bigglesworth). Evidentemente que estes caminhos são diametrais porém não excludentes.

Pode ser ilusão, mas em termos de discursos, as semelhanças entre Obama e Kennedy foram comentadas durante as eleições americanas. O poder da retórica dos dois foi alvo de comparações e, justamente, por esta capacidade de argumentar não necessariamente se tornaram presidentes, mas sem dúvida políticos notórios. Tenho 4 sisos há quase 20 anos, e não sou ingenuo em afirmar presidentes se sustentam simplesmente pela força da retórica até por que as biografias pesam e pesam muito. Há diferenças. Kennedy era filho de um especulador imobiliário em NYC, de um prevaricador que por tráfico de influências fechava negócios milionários e lavava a grana em ramos da metalurgia, importação de àlcool durante a Prohibition, e filmes para Hollywood. Quando Jack assumiu o poder, estima-se que a fortuna do pai beirava os 400 milhões de dólares. Obama é filho de universitários, um queniano e uma americana. Isso explicaria muito de sua trajetória se ele continuasse sendo apenas um advogado de direitos civis, ou apenas um brilhante e dedicado presidente de Harvard. Mas não, o camarada tornou-se aos 34 anos escritor sensível com Dreams of My Father, presidente e mito aos quarenta e poucos anos.

No nível retórico, estou sinceramente curioso para ouvir as palavras de Obama em seu discurso de posse já que os discursos de posse imprimem as marcas pessoais dos presidentes. Como se fossem os selos que suas administrações mostrarão. Portanto, são diferentes dos discuros de camapanha. Até por que o discurso de campanha é um, o discurso inaugural é outro, e os discursos no poder são outros – estes sim diametralmente diferentes dos dois anteriores. Analisar os discursos de posse dos presidentes pode ser diletantismo mas é um exercício interessante. Kennedy disse em 1961:


“[...] não perguntem o que o seu país pode fazer por vocês, perguntem o que vocês podem fazer por seu país. Cidadãos do mundo, não perguntem o que os Estados Unidos podem fazer por vocês, e sim o que podemos fazer juntos pela liberdade"


Estes eram tempos de Eisenhower, da Guerra Fria, da neurose anti-comunista. Os americanos ainda não tinham ido para o Vietnã e a política da Détente nem era sonho.

Eu ainda podia citar mais dois exemplos de discursos clássicos recentes. Um deles o de Reagan em 1981: "Na atual crise, o Estado não é a solução para nosso problema; o Estado é o problema". Estes eram tempos da Dama de Ferro, monetarismo, fim dos programas socias, da Guerra nas Estrelas, da onda New Wave e de muitas outras coisas esquisitas.

Ainda nessa linha poderiamos citar o discurso de posse deste que sai – o qual me recuso pronunciar o nome. Em sua segunda posse, em 2005 disse:


"A política dos Estados Unidos é apoiar a expansão dos movimentos e instituições democráticas em todos os países e culturas, com o objetivo último de pôr fim à tirania em nosso mundo[...]"


“[...] pois enquanto regiões inteiras do planeta fervilharem em ressentimento e tirania inclinadas a ideologias que alimentam o ódio e perdoam o assassinato, a violência gerará e multiplicará seu poder destrutivo, cruzará as mais defendidas fronteiras e representará sempre uma ameaça mortal. Existe apenas uma força na história capaz de pôr fim ao reino do ódio e do ressentimento, de expor as pretensões dos tiranos e recompensar as esperanças das pessoas decentes e tolerantes, e é a força da liberdade humana[…]”.



Estes foram tempos de torturas de Abu Ghraib televisionadas, relatórios falsos na Assembléia Geral da ONU televisionados, enforcamento de tiranos televisionados, e uma grande apatia por parte dos telespectadores. Um Logos sem Ethos. Um Pathos com o Logos de manipular as emoções da audiência.

Em poucas horas Obama fará seu discurso de posse. Vai dar tudo certo. Eu também hope .

Gastaldi veio ao mangue:ô my god ai, que bode que vai dar...

O cartografo italiano Giacomo Gastaldi foi um revisor do Atlas de Ptolomeu e responsavel, segundo dizem, por uma de suas mais compreensiveis adicoes, particulamente por introduzir partes da America, ate entao desconhecidas. A edicao preparada em 1548, analisada em retrospectiva, batia a dos alemaes, belgas e holandeses – ases na arte da confeccao de mapas. Nomeadamente a do alemao Martin Waldseemuller - que sugeriu o nome de America para esse cantinho onde vivemos, em homenagem ao Americo Vespucio - Geographia ode1513 e a do belga Abraham Ortelius Theatrum de 1570.

Giacomo nao tinha sido o primeiro a falar da America. Pierre Decellier, em 1546, ja havia tracado aspectos geograficos e antropologicos da America, mas por pertencer a Escola de Dieppe, a patriotada marota encalacrada nos Institutos Historicos e Goegraficos da Vida o desconsidera - bem como a Giacomo e a Ortelius que somente viria a publicar o seu Mapa da America ou do Novo Mundo em 1587 – valendo para razoes ufanistas apenas as contribuicoes de Diogo Homem, cartografo portugues que trabalhou na Antuerpia e Veneza.

Giacomo era Piamontes e jamais pisou no Brasil. Ate ai tudo bem, pois nao era pratica dos cartografos europeus iram a America, e por isso apareciam os monstros marinhos, os fenomemnos teratologicos de gente comendo gente no sentido lato do termo. Mas o feito do Giacomo foi importante pois publicou em 1965 Nella Stamperia de Giunti, onde entre outros detalhes percebe-se indios trabalhando inocentes, praticando escambo com portugueses voluntariosos, e...




...copulando...

Musica do dia: Mingus samba(Guinga - Aldir Blanc)
Balangandã da baiana...Maracanã do Carvana...deixa a Chiquita bacana voltar!Mane Garrincha sacana...tá bem, nós somos bananas mas não é preciso se embananar.Mingus veio ao mangue:ô my godai, que bodeque vai dar...Mingus com seu somvai botar o mingaua knockdown.Mingus, senta o pauque o pitecantropustem que mamáMamba, Mingus,mani-pi-cao!Mingus me sacudiu:tchan, tchau!Ô, ô, morena faceira,ai, ai, cubana mañera,hoje é do Mingus o meu carnaval.Ai, caboclinha, me aqueçatransforma a quinta e a terçaem feriados, do-Mingus de sol!Ai, que mistura que dá...ôi, zum-zum-zum resedá...Vou com o Mingus e um primo do Neino domingo pra Piabetá.Ai, ai, Iaiá de Ioiô,Mingus te manda um helloJá tomamo umazinhae há o bafo da onça na onda que eu vou...Mamba, Mingus,mani-pi-cao"Mingus samba e pingajazz de coringa na geral!

Policial civil é baleado em tentativa de assalto

Policial civil é baleado em tentativa de assalto
Desde terça-feira, é o terceiro policial ferido. Seis agentes morreram em cinco dias.

O policial civil Richard Valença Braga, de 37 anos, foi baleado durante uma tentativa de assalto na saída da Linha Amarela, na altura de Del Castilho, no subúrbio do Rio, na manhã desta quarta-feira (23). Na terça-feira (22) um policial foi morto e dois ficaram feridos. Ao todo seis agentes morreram desde a última sexta-feira (18) vítimas de ataques. As informações são do serviço reservado do 3º BPM (Méier).

Segundo a polícia, Braga seguia em seu carro por volta das 7h quando foi abordado por três homens num veículo e teria reagido. O policial, que trabalha na Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae), foi atingido no abdômen e na perna esquerda. Ele foi levado para o Hospital Salgado Filho, no Méier, no subúrbio. De acordo com informações da Secretaria municipal de Saúde, ele já foi operado, e passa bem. Seu estado é estável. Os suspeitos fugiram sem levar o carro.

Seis mortos e três feridos

Desde sexta-feira (18), seis policiais foram mortos e dois ficaram feridos. Na sexta, morreram o cabo Kleber Amparo foi morto em Niterói, na Região Metropolitana, o soldado Márcio de Oliveira Mendonça, em Bangu, na Zona Oeste, e Paulo Craveiro, que trabalhava no Detran, em Olaria. No dia 19, foram mortos o cabo João Luiz de Souza, em Campo Grande, na Zona Oeste, e o sargento Marcos Patrillo Mercês, em Vilar dos Teles, na Baixada Fluminense. Na terça-feira (22), o sargento Edgar de Freitas Navarro, morreu em Cascadura, no subúrbio do Rio.

Além do policial civil Richard Valença Braga, baleado nesta quarta (23), em Del Castilho, no subúrbio, também foram feridos na terça-feira (22) o sargento Carlos Vargas de Lima, durante uma tentiva de assalto, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e o cabo Ueslen de Carvalho Guimarães, em Guaratiba, na Zona Oeste.

Breve biografia do Richard:

Eu o conheci antes de entrarmos para a faculdade, e nao por acaso ele é um dos caras que admiro.

Passamos juntos no vestibular. Ele foi primeiro lugar em sociologia na UERJ e UFRJ. Com 18 anos, totalmente auto-didata, e dominando a escrita como poucos, ja conhecia boa parte da obra de Freud e Jung, alem de filosofia classica - acho que até hoje guardo as cartas que ele me enviava sugerindo leituras, dentre elas um livro que guardo até hoje do Ralph Linton. A propósito, foi um dos primeiros lugares no mestrado em antropologia do Museu Nacional. Lembro que quando nos encontravamos para um cafe acabavamos sempre conversando sobre Sergio Buarque e Gilberto Freyre, autores que eu comecava a descobrir e ele ja estava careca de ler. Era tao distinto que inspirava respeito nao so dos alunos, mas dos professores. Mas de repente, decidiu abandonar a vida academica - eu sempre tive a impressao que ele era brilhante demais para essa vida. Penou trabalhando numa livraria até decidir fazer o que queria, ser policial civil. Ha pouco mais de um ano, tomou um tiro de fuzil numa operacao numa favela. Por esses segundos e milimetros controlados por forcas maiores que podemos perceber mas nao entender tampouco ver, a bala nao tocou a arteria femoral.

E ontem recebi essa nova noticia.

Desde ontem não paro de pensar que nos Estados Unidos - um lugar onde a tensao entre um policial e um bandido não é menor - um bandido não tem sequer a coragem de pensar em atirar num policial. E eh por isso que as vezes penso seriamente em me tornar um ex-carioca.

O Richard vai sair dessa. Só isso.

Você tem inveja?

Globo - ROBERTO da MATTA

A inveja é um sentimento básico no Brasil. Está para nascer umbrasileiro sem inveja. A coisa é tão forte que falamos em "ter" — emvez de "sentir" — inveja. Outros seres humanos e povos sentem inveja (um sentimento entre outros), mas nós somos por ela possuídos.

Tomados pela conjunção perversa e humana de ódio e desgosto,promovidos justamente pelo sucesso alheio. Nosso problema é o sujeitodo lado, rico e famoso, que esbanja reformando a casa, comprando automóveis importados e dando "aquelas festas de tremendo mau gosto!".Ou é o sujeito brilhante que — estamos convencidos — "tira" (rouba,apaga, represa, impede) a nossa chance de fulgurar naquela região além do céu, pois, residindo no nirvana social dos poderosos (mesmo quandosão cínicos e fracos), dos ricos (mesmo quando pobres e sofredores),dos belos (mesmo quando são feios). dos famosos (mesmo quando sãofruto promocional de revistas e jornais), e dos elegantes (mesmo quando são cafonas), estariam acima de todas as circunstâncias. Estouseguro de que não é o patriotismo, mas a inveja, o sentimento básicode nossa vida coletiva. Para começar a gostar do Brasil, tínhamos queinvejar a França, a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha, a Itália e osEstados Unidos.

Era, sem dúvida, a inveja que nos fazia torcer pela queda do Brasil notal abismo de onde ele sairia melhor do que todo mundo. Antes do sexo, o brasileiro tem inveja. Ela antecede a sensualidade e o erotismo,sendo básica na formação de nossa identidade pessoal. Você sabe quemé, leitor, pela inveja que sente todas as vezes que encontra o tal "alguém" que, pela relação invejosa, faz você se sentir um bosta: um"ninguém".

Como as nuvens em volta das montanhas, a inveja se adensa em torno dequem é visto como importante, de modo que ser invejado é equivalente a "ter poder", "charme", "prestígio" e "riqueza".



Dizem que a inveja é perigosa, mas o fato concreto é que não há brasileiro que não goste de ser invejado por alguma coisa. Pelo salário, pelo poder, pela beleza, pelo sucesso, pela inteligência eaté mesmo pelas sacanagens, injustiças, calúnias e descalabros quecomete. Num seminário recente sobre "Ética e corrupção", eu disse que é justamente a vontade de ser invejado que descobre os corruptos.Pois, diferentemente dos ladrões de outros países, que roubam e somemno mundo, os nossos são forçados pela "lei relacional da inveja" a retornar ao lugar natal para mostrar aos seus parentes, amigos e,acima de tudo, inimigos, como estão ricos e, nisso, são denunciados,presos, soltos e, finalmente, colocados no panteão cada vez maisextenso dos canalhas nacionais.

Dos infames que comprovam como a inveja e o desejo de ser invejado sãoo motor da vida brasileira. Minha tese é a de que até a canalhice éinvejada no Brasil. Richard Moneygrand, o grande brasilianista,escreveu no seu diário filosófico, "Voyage into Brazil", que: "Para os brasileiros, um dia sem inveja é um dia sem luz. A inveja confirma aidéia nacional do sucesso para poucos, como antes confirmava o berço eo dia sem luz. A inveja confirma a idéia nacional do sucesso parapoucos, como antes confirmava o berço e o sangue para a aristocracia e a superioridade social para os funcionários públicos e senhores de engenho.

Todos a condenam, mas ninguém pode passar sem ela". A inveja, digo eu,é o sinal mais forte de um sistema fechado, onde a autonomia individual é fraca e todos vivem se balizando mutuamente. O controlepor intriga, boato, fofoca, fuxico e mexerico é a prova desseincessante comparar de condutas cujo objetivo não é igualar, mashierarquizar, distinguir, pôr em gradação. O horror à competição, ao bom-senso, à transparência e à mobilidade é o outro lado dessa culturaonde ter sucesso é uma ilegitimidade, um descalabro e um delito.

O êxito demarca, eis o problema, um escapar da rede que liga todos comtodos. Essa indesejável individualização tem mais legitimidade quandovem de quem já está estabelecido. Daí ser imperdoável que Fulano —"aquela figurinha" — o faça, destacando-se pelo disco, novela, livro ou empreendimento desse mundo onde todos são pobres e miseráveis pordefinição e por culpa do "social". O pecado mortal das sociedadesrelacionais é justamente essa individualização que separa o sujeito de uma rede hierárquica. Rede que nos persegue neste e no outro mundo.

Como, então, não sentir inveja do sucesso alheio, se estamos convencidos de que o êxito é um ato de traição a um pertencer coletivo conformado e obediente? Como não sentir inveja se o exitoso é aquele que se recusa a ser o bom cabrito que não chama atenção e passa a sero mais vistoso — esse símbolo de egoísmo e ambição? Ademais, como não ter inveja se o sucesso é um sinal de pilhagem de um bem coletivo? Essa coletividade que, entra ano, sai ano, continua a ser percebida como mesquinha, subdesenvolvida, pobre e atrasada? Como um bolo pequeno e que jamais cresce, destinado a ser comido somente pelos que estão sentados à mesa.

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A trajetória do Da Matta - - e do Eduardo Viveiros de Castro - - me lembra um pouco a do Bourdieu. Ambos começaram a estudar tribos primitivas (o primeiro estudando os Apinaye no Tocantins e o segundo estudando os Cabyla na Argélia), e já com a experiência dos anos passaram comparar cariocas, paulistas e parisienses com aqueles primitivos para quem estes viram a cara, pois pensam que como urbanos, modernos, ocidentais e cosmopolitas se diferenciam daqueles. O engraçado é que se você pergunta para 95% dos acadêmicos brasileiros da àrea de humanas se eles conhecem a Bourdieu ou a Da Matta, eles dirão que obviamente sim. Dirão ainda com empáfia: quem não conhece conceitos como o ‘habitus’ ou ‘poder simbólico’ ou a diferença entre a ‘casa e a rua’....

Palmas, portanto, para o Da Matta e o Bourdieu por criarem uma caixa de pandora para apedeutas e desavisados.

Um dos livros mais famosos de da Matta é um de 1985 chamado A casa e a rua : espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Nesse livro ele traça em linhas gerais a diferença que todo o brasileiro faz entre os espaços privados e públicos. Entre a ordem e a desordem. Entretanto, um livrinho que eu gosto muito dele não é nem o Carnavais, malandros e heróis : para uma sociologia do dilema brasileiro, mas o estrutural Um mundo dividido : a estrutura social dos índios apinaye de 1976. Um dia ainda volto aos meus apontamentos e escrevo por que gosto tanto desse livro e da maturidade desses antropólogos, que desvendam o Brasil pelas próprias incapacidades de entendimento dos brasileiros.

Bolsa-Família

Sempre aprendemos na escola que o Brasil é um país grande e o quinto mais populoso do mundo. O Brasil é um país grande e tem 189,5 milhões de pessoas que nasceram no Brasil e portanto são consideradas brasileiras. Apesar de serem todos brasileiros, os nascidos no Brasil, nem todos são iguais. Ou melhor, apesar de os nascidos no Brasil serem brasileiros, exitem brasileiros que se diluem em estatísticas – ou seja, existem apenas como números para um ramo das matemáticas aplicadas que recorre ao cálculo das probabilidades para estabelecer hipóteses com base em acontecimentos reais, com o fim de fazer previsões. Prova disso é que o Brasil, que é o quinto pais mais populoso do mundo, possui um programa social que assiste a famílias desamparadas chamado Bolsa-Família. O programa Bolsa-Família beneficia estatísticamente 48,5 milhões de pessoas, nascidas no Brasil e portanto brasileiras. Infelizmente, um em cada quatro brasileiros necessita do Bolsa-Família. Parte do grupo de três em cada quatro brasileiros critica o programa Bolsa–Família, pois acredita que um em cada quatro brasileiro não prosperou na vida por conta de sua individual incapacidade em perceber que, brasileiros ou não, todos nascem iguais, em igualdade de condições, e com o dom divino do Individualismo Possessivo. Falaciosamente, parte do grupo de três em cada quatro brasileiros invoca a Locke para explicar estatisticamente o que pilantramente justifica uns serem diferentes dos ( ou melhores que) outros.

Fato é que um em cada quatro brasileiros faz parte de uma estatísitca incômoda. Aqueles que não estão no grupo das estatísticas incômodas, e portanto se incomodam com os números e os propósitos do programa Bolsa-Familia, criticam o Programa argumentando que é assistencialista. Porém, na prática a teoria é outra. Esclareço didaticamente: o valor do benefício vai de R$ 18,00 a R$ 112,00, que provavelmente é o valor de um jantar de um dos membros do grupo que não está no grupo do das estatísticas incômodas, ou seja, o grupo dos incomodados, mas que critica o governo e ao grupo dos estatisticamente incômodos sem se dar conta que há uma não desprezível inverosimilhança entre os R$ 112,00 gastados num jantar, digerido e excretado em 24-48 dependendo do metabolismo intestinal do incomodado, e os R$112,00 que uma família de cinco pessoas necessita para sobreviver durante um mês. Assim sendo, orçamento do Bolsa-Família é de 8,7 bilhões de reais e por parecer muito para aqueles que não estão no grupo das estatísticas incômodas, ou seja os incomodados, é um programa que recebe muitas críticas. Para incomodar mais ainda ao grupo dos que não estão no grupo das estatísticas incômodas, e portanto entram na estatísticas dos confortavelmente incomodados, o programa deve ser aumentado em 400 milhões antes do fim de 2007, incomodando ainda mais àqueles que já se sentem incomodados e que já provavelmente digeriram o jantar de, suponhamos, R$ 50,00 de ontem a noite.

Assusta que 30,3% dos beneficiados está na faixa entre 7 e 15 anos. E assusta mais ainda a crueldade com que uma pessoa de 65 anos de idade é jogada, estatisticamente falando, nafaixa de 1,4% to total de pessoas que não sobreviveriam sem o mesmo valor gasto por um comensal que gasta 50 reais num jantar trivial. Talvez os incomodados ainda não saibam, mas 69,2% dos beneficiados vivem em zonas urbanas.

Entristece o fato de que Brasil é um país grande e o quinto mais populoso do mundo, com 189,5 milhões de pessoas que nasceram no Brasil e portanto são consideradas brasileiras, e que apesar de serem todas brasileiras, nascidas no Brasil, nem todas são iguais, ja que 48,5 milhões delas, ou seja, um em cada quatro dos brasileiros não tem escolha - estatisticamente falando.



Quem quiser conferir tampe o nariz, a bra e leia com atenção o Estado de São Paulo de hoje.

O mé e o alcool

Suddenly, todo mundo virou especialista em alcool. Qualquer picareta washingtoniano agora, alem de ser 'consultor', eh especialista em alcool. Governos patrimonialistas, politicos sibaritas, ex-ministros aproveitadores, entidades civis salvacionistas, sindicatos rurais morigerados, ongs raivosas, cidadaos comuns desinformados. Diz-se ateh no blog do Alon e do Carta que Dirceu abrirah uma consultoria no para tratar do assunto com os gringos malvados, maus e bobocas.

Ah, se os especialistas consultassem aos verdadeiros discipulos do Conde de Afonso Celso... chegariam a conclusao de que que ha muita coisa em jogo dos dois lados da negociacao, mas ainda acho que pressao maior contra o projeto vem do lobby do Corn Belt la da caipirolandia do Missouri, Indiana, Ohio, Kansas... temerosa da perda dos subsidios agricolas que o Estado Americano proporciona - alias sei que todos se queixam mas nao sei quanto eh em porcentagem. Uma coisa eh certa, todo mundo sabe que lobby aqui - ao contrario do Brasil - eh negocio serio, para o bem e para o mal.

Mas vamos por partes...

Para o Brasil seria otimo exportar a producao - mas nao a tecnologia -, obviamente. Para os grandes produtores brasileiros isso seria otimo tambem, e, vamos ser sinceros, ajudaria athe os mirrados 10% da participacao da agricultura no PIB e por tabela nossas transacoes correntes e na balanca de pagamentos que dependem caridosamente das exportacoes - do agrobusiness. Geopoliticamente, se diz que o Haiti poderia entrar na jogada produzindo cana e milho. Com isso o Brasil poderia dar uma certa licao de moral de como pacificar uma regiao, e reconstrui-la produtivamente - ao contrario do que foi feito no Iraque. Mas vamos parar de ufanismo por aqui. Agora.

Primeiro, como meu amigo Fred disse, a energia produzida por tonelada de milho eh irrisoria se comparada com a cana, e infima se comaprada com o petroleo - o que ja eh motivo para por minhas matusalenicas barbas de molho. Segundo, toda essa estoria esta me ceirando a retorica para escamotear por que o Brasil nao cresce significativamente ha mais de 30 anos; por que nao tem investimento externo que nao seja direto; por que ruminamos a combinacao de taxas de crescimento irrisorias com taxas de juros que impedem qualquer planejamento de investimento produtivo a longo prazo - tendo o Estado que ser o fomentador do investimento seja com os classicos GEIA, GEIPOT do passado ou com o PAC. Enfim, milho, soja, cana... exportar eh o que importa... voltamos ao velho papo da agricultura como a salvadora da situacao quando tudo o mais da errado. O velho papo do Brasil como o celeiro do mundo - que esta fazendo o Eugenio Gudin dar gargalhadas sadicas na cova...

Enfim, ha muita diferenca entre os que entornam mé e os que se locupletam com o alcool....


Musica do dia: Inutil paisagem. Eumir Deodato