A inveja é um sentimento básico no Brasil. Está para nascer umbrasileiro sem inveja. A coisa é tão forte que falamos em "ter" — emvez de "sentir" — inveja. Outros seres humanos e povos sentem inveja (um sentimento entre outros), mas nós somos por ela possuídos.
Tomados pela conjunção perversa e humana de ódio e desgosto,promovidos justamente pelo sucesso alheio. Nosso problema é o sujeitodo lado, rico e famoso, que esbanja reformando a casa, comprando automóveis importados e dando "aquelas festas de tremendo mau gosto!".Ou é o sujeito brilhante que — estamos convencidos — "tira" (rouba,apaga, represa, impede) a nossa chance de fulgurar naquela região além do céu, pois, residindo no nirvana social dos poderosos (mesmo quandosão cínicos e fracos), dos ricos (mesmo quando pobres e sofredores),dos belos (mesmo quando são feios). dos famosos (mesmo quando sãofruto promocional de revistas e jornais), e dos elegantes (mesmo quando são cafonas), estariam acima de todas as circunstâncias. Estouseguro de que não é o patriotismo, mas a inveja, o sentimento básicode nossa vida coletiva. Para começar a gostar do Brasil, tínhamos queinvejar a França, a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha, a Itália e osEstados Unidos.
Era, sem dúvida, a inveja que nos fazia torcer pela queda do Brasil notal abismo de onde ele sairia melhor do que todo mundo. Antes do sexo, o brasileiro tem inveja. Ela antecede a sensualidade e o erotismo,sendo básica na formação de nossa identidade pessoal. Você sabe quemé, leitor, pela inveja que sente todas as vezes que encontra o tal "alguém" que, pela relação invejosa, faz você se sentir um bosta: um"ninguém".
Como as nuvens em volta das montanhas, a inveja se adensa em torno dequem é visto como importante, de modo que ser invejado é equivalente a "ter poder", "charme", "prestígio" e "riqueza".
Dizem que a inveja é perigosa, mas o fato concreto é que não há brasileiro que não goste de ser invejado por alguma coisa. Pelo salário, pelo poder, pela beleza, pelo sucesso, pela inteligência eaté mesmo pelas sacanagens, injustiças, calúnias e descalabros quecomete. Num seminário recente sobre "Ética e corrupção", eu disse que é justamente a vontade de ser invejado que descobre os corruptos.Pois, diferentemente dos ladrões de outros países, que roubam e somemno mundo, os nossos são forçados pela "lei relacional da inveja" a retornar ao lugar natal para mostrar aos seus parentes, amigos e,acima de tudo, inimigos, como estão ricos e, nisso, são denunciados,presos, soltos e, finalmente, colocados no panteão cada vez maisextenso dos canalhas nacionais.
Dos infames que comprovam como a inveja e o desejo de ser invejado sãoo motor da vida brasileira. Minha tese é a de que até a canalhice éinvejada no Brasil. Richard Moneygrand, o grande brasilianista,escreveu no seu diário filosófico, "Voyage into Brazil", que: "Para os brasileiros, um dia sem inveja é um dia sem luz. A inveja confirma aidéia nacional do sucesso para poucos, como antes confirmava o berço eo dia sem luz. A inveja confirma a idéia nacional do sucesso parapoucos, como antes confirmava o berço e o sangue para a aristocracia e a superioridade social para os funcionários públicos e senhores de engenho.
Todos a condenam, mas ninguém pode passar sem ela". A inveja, digo eu,é o sinal mais forte de um sistema fechado, onde a autonomia individual é fraca e todos vivem se balizando mutuamente. O controlepor intriga, boato, fofoca, fuxico e mexerico é a prova desseincessante comparar de condutas cujo objetivo não é igualar, mashierarquizar, distinguir, pôr em gradação. O horror à competição, ao bom-senso, à transparência e à mobilidade é o outro lado dessa culturaonde ter sucesso é uma ilegitimidade, um descalabro e um delito.
O êxito demarca, eis o problema, um escapar da rede que liga todos comtodos. Essa indesejável individualização tem mais legitimidade quandovem de quem já está estabelecido. Daí ser imperdoável que Fulano —"aquela figurinha" — o faça, destacando-se pelo disco, novela, livro ou empreendimento desse mundo onde todos são pobres e miseráveis pordefinição e por culpa do "social". O pecado mortal das sociedadesrelacionais é justamente essa individualização que separa o sujeito de uma rede hierárquica. Rede que nos persegue neste e no outro mundo.
Como, então, não sentir inveja do sucesso alheio, se estamos convencidos de que o êxito é um ato de traição a um pertencer coletivo conformado e obediente? Como não sentir inveja se o exitoso é aquele que se recusa a ser o bom cabrito que não chama atenção e passa a sero mais vistoso — esse símbolo de egoísmo e ambição? Ademais, como não ter inveja se o sucesso é um sinal de pilhagem de um bem coletivo? Essa coletividade que, entra ano, sai ano, continua a ser percebida como mesquinha, subdesenvolvida, pobre e atrasada? Como um bolo pequeno e que jamais cresce, destinado a ser comido somente pelos que estão sentados à mesa.
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A trajetória do Da Matta - - e do Eduardo Viveiros de Castro - - me lembra um pouco a do Bourdieu. Ambos começaram a estudar tribos primitivas (o primeiro estudando os Apinaye no Tocantins e o segundo estudando os Cabyla na Argélia), e já com a experiência dos anos passaram comparar cariocas, paulistas e parisienses com aqueles primitivos para quem estes viram a cara, pois pensam que como urbanos, modernos, ocidentais e cosmopolitas se diferenciam daqueles. O engraçado é que se você pergunta para 95% dos acadêmicos brasileiros da àrea de humanas se eles conhecem a Bourdieu ou a Da Matta, eles dirão que obviamente sim. Dirão ainda com empáfia: quem não conhece conceitos como o ‘habitus’ ou ‘poder simbólico’ ou a diferença entre a ‘casa e a rua’....
Palmas, portanto, para o Da Matta e o Bourdieu por criarem uma caixa de pandora para apedeutas e desavisados.
Um dos livros mais famosos de da Matta é um de 1985 chamado A casa e a rua : espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Nesse livro ele traça em linhas gerais a diferença que todo o brasileiro faz entre os espaços privados e públicos. Entre a ordem e a desordem. Entretanto, um livrinho que eu gosto muito dele não é nem o Carnavais, malandros e heróis : para uma sociologia do dilema brasileiro, mas o estrutural Um mundo dividido : a estrutura social dos índios apinaye de 1976. Um dia ainda volto aos meus apontamentos e escrevo por que gosto tanto desse livro e da maturidade desses antropólogos, que desvendam o Brasil pelas próprias incapacidades de entendimento dos brasileiros.
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