o gAtO biGodUDo

Guilherme: o nome do meu amigo que "transa vídeo", e que está por trás do O Bigode do Gato. Trata-se de uma série de entrevistas,  visões etnográficas, vastas impressões, estudos de representação dos hábitos, pensamentos imperfeitos, documentários, ou sei lá o que, mas que é muito bom.

As entrevistas são ótimas, os entrevistados melhores ainda. Na edição, capítulo à parte, Guilherme mostra toda sua habilidade. Recentemente, tive o imenso prazer de trabalhar e de dividir vários churrasquinhos de gato - perdão pelo paralelismo - nas noites intermináveis das edições. Enquanto uns editavam outros - me incluo neste grupo - tiravam um cochilo no imenso, confortável e horroroso sofá marrom da ilha de edição. As circunstâncias do trabalho, claro, não permitiam, mas o cara sempre tinha camisas de estampas interessantissimas e gestos elegantes, para além dos cinco ou dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém no tipo de trabalho, com o tipo de gente  que éramos obrigados a conviver.

Qualidades pessoais à parte, bom mesmo era ver o cara editando, mexendo nos controles da sua engenhoca com dedos mais rápidos que os olhos podiam seguir.


Um banho de tcheco

A Tchecoeslovaquia sempre foi para mim um pais misterioso. As vezes sonho com Praga que deve ser linda e deve ter a impressão digital de Kafka em cada xícara de café servida no Café Slavia, onde ele e Max Brod se reuniam para falar coisas seríssimas. Sempre me disseram que Kafka era um cara denso. Quando li  Metamorfose, achei umas partes engracadíssimas, uns personagens curiosos, caricaturais, tão surreal que os conflitos entre Gregor Samsa e o mundo pareciam convincentemente miméticos. Quando li O Processo, ai pelo final dos anos 80, numa edição ruim da Ediouro, me certifiquei que Kafka fazia firula narrativa com a seriedade. Cheguei a assistir o filme do Orson Welles da década de 1960. Parecia muito sério e claustrofóbico. Mas não pegava bem comentar com meus amigos de faculdade que eu via justamente nesse revés a proficiência de Kafka. Eles eram inteligentes e densos pra caramba. Iam rir de mim. Pior, iam pensar que eu era uma pessoa... assim... dessas...” leves”,  e se afastariam de mim, nunca mais me convidariam para uma cerveja, a não ser, lógico, que eu pagasse. Anos depois, me caiu nas mãos a biografia que Max Brod escreveu sobre Kafka e percebi que havia, para além da cumplicidade entre os dois amigos, sim uma espécie de humor surrealista naquilo tudo. E como dizia o saudoso Millor, o humor compreende o mau humor, o mau humor é que não compreende nada.


Afinal, quem não iria concordar hoje em dia que há uma semelhança fervilhante entre as agruras do bancário Joseph K, preso, julgado por motivos que ignorava, acusado de corrupção  e de fazer coisas que no fundo todos faziam mas que escondiam nas cuecas, e os julgamentos e CPIs que acontecem no Brasil -  que não chegam a conclusão alguma por, no fundo, não existir regras claras quanto a regulação da prática do lobby e do financiamento de campanhas políticas.
Enfim, sobre tudo isso (Kafka, culturalismo, fabulação realista, brincadeirinhas metaliterárias...) fala o filme Leaving (Odcházení), exibido numa mostra de cinema Tcheco que assisti ontem. Só eu mesmo para, numa noite de quarta-feira, me enfiar num cinema por mais 5 horas e tomar um banho de filme tchecos, que ainda incluiram um documentário  chamado Matchmaking Mayor de Erika Hníkova, e Four Suns de Bohdan Sláma – o mesmo cara que dirigiu o tocante filme The Country Teacher.
A comédia Leaving de Vaclav Havel estreou no palco em 2008, em Praga. Originalmente, o texto foi concebido como uma peça de teatro e sua versão fílmica, que assisti ontem,  guarda muito da expressão cênica teatral. O enredo trata da vida de ex-líder de um país não especificado, Vilem Rieger, interpretado por Josef Abrham, que deixa o poder depois de muitos anos. Sua excêntrica família, composta pela mãe, uma esposa bem mais nova com quantidades de botox no rosto suficientes para bloquear a contração dos músculos do pé esquerdo - interpretada pela propria esposa de Havel - , uma enteada lunática e uma filha sinceramente interessada em se locupletar das últimas gotas de prestígio e dos últimos zeros a direita da combalida conta bancária do pai. Deixando o poder, o ex-mandatário deve deixar para trás as prebendas que o poder proporcionava. Dentre elas a mansão que habita e que se recusa deixar. A astúcia da peça/filme reside em conjugar várias influências nos tempos verbais que englobam Tom Stoppard mesclando com um certo Teatro do Absurdo de Artaud e Beckett. Além disso, quem ja assistiu o Jardim das Cerejeiras percebe a penumbra de Tchecov o tempo todo. E Havel é bem escrachado nesse ponto... Como quando Rieger oferece uma maçã para a ninferta Beatrice. É do seu pomar? Ela pergunta.  Não, minha filha trouxe. Aqui nós só temos um pomar de cerejeiras.

Vaclav Havel tornou-se uma figura simbólica no seu país por ter defendido a resistência não-violenta na Revolução de Veludo, em 1989, ano em que saiu da cadeia para assumir a presidência  da Tchecoslováquia, e que abriu caminho para o rompimento com o Pacto de Varsóvia. Ou seja, entrou como presidente de dois paises e saiu como presidente de um apenas, a República Checa sem Eslováquia. Mas insiste que o filme, que ele próprio dirigiu, não tem nada de autobiográfico. Até por que, segundo ele mesmo,  escreveu-o na decada de 1980 - tá bom, vou fingir que acredito, ainda mais em se tratando de uma peça, onde o que esta no papel marca o diálogo mas não o tempo e o modo cênico, o elemento géstico do ator . Foi um presidente intelectual que privatizou forte, rompeu com a União Soviética, abriu a economia para as multinacionais alemães e em paralelo permitiu o movimento, irrefreável, de separação da Eslovaquia. No fundo foi um presidente liberal e um tanto de direita, principalmente pelo peso do papel do primeiro-ministro, que de fato mandava, Vaclav Klaus.

Vilem Rieger, o ex-mandátario, habita ainda umas das mansões em que vivia durante o exercício do poder. Ao lado dele há um mordomo (que sempre tropeça numa pedra Drummondiana), um assessor (uma espécie de Frederico Schmidt da Casa Civil), e um auditor responsável em separar os seus bens originais dos bens que adquiriu no exercício do poder. Além desses fiéis escudeiros circundam a casa dois jornalistas de tablóides sensacionalistas, tipo Caras, que procuram mostrar a decrepitude moral e financeira do mandatário. Há ainda um deputado mafioso com ares de Cachoeira, e uma estagiária, Beatrice Weisenmuttelhofova, formada em sócio-psicologia multicultural e comunicação social de meios eletrônicos por uma obscura universidade, interpretada pela belíssima atriz Barbora Seidlová. Na forte pressão para que o ex-mandatário deixe a casa reside toda a comicidade do filme. Sua forma narrativa e não primordialmente cômica pode muitas vezes confundir, visto que o mundo imaginário de Havel é mediado pela imagem de basicamente um cenário (a frente da casa)  que independe em larga medida do diálogo, exercendo funções descritivas e narrativas. Isso passa a falsa impressão de efeito rarefeito, nessa porosidade que separa a literatura e a vida a política da ficção.

Nota. Ótimo filme. Além disso tinha um cidadão, provavelmente tcheco, que ria das piadas antes das legendas. Em tcheco os diálogos devem ser melhores.

Choking Man

Quem chega a Nova Yorque de avião aterrrisa no aeroporto JFK. Muito pouca gente sabe mas o nome  do local onde fica aquele fim de mundo é Jamaica. Muito pouca gente sabe, mas o nome do diretor por trás de muitos do videoclipes de uma coisa chamada Michael Jackson, Dire Straits e um torço chamado A-ha, nos anos 80, era Steve Baron, um irlandês que quando não está fazendo videos para musicais realiza bons filmes independentes. Choking Man é um drama psicológico sobre a experiência do imigrante latino na América, mais especificamente na região de Jamaica, Queens. Jorge é um dishwasher, um lavador de pratos, que quase não fala inglês e que fica enfiado na cozinha de um pequeno restaurante muitas horas por dia. Por não falar inglês, ou em decorrência disso, é um jovem equatoriano isolado, sem amigos, que vive da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Seu trabalho consiste em enxaguar com uma mangueira, pratos, copos, talheres, panelas e artigos de cozinha, colocá-los numa bandeja e enfiá-los numa esteira que lavará com água em alta temperatura os utensílios. Após passarem pela tal máquina, Jorge confere se estão realmente limpos, recolhe-os e os direciona a seus respectivos locais. Pratos e talheres para a parte frontal do restaurante e para a cozinha, de onde saem os pratos prontos, e os demais utensílios para a cozinha. Quando o movimento do restaurante é menor, na entre-hora do almoço e da janta, José limpa o chão do restaurante e recolhe os sacos de lixo. O trabalho de José é monótono e repetitivo e ele o realiza em silêncio absoluto.  Além de pratos, a única coisa que José vê todos os dias à sua frente é um cartaz velho e sujo com instruções para salvamento de pessoas em casos de engasgo.

José é um rapaz calado por natureza, em seu  laconismo consome-se, submerso e contrafeito, numa espiral de obsessivos pensamentos contra seu companheiro de trabalho, Jerry,  que parece estar sempre meio chapadão e viajando, tentando a seu jeito tornar José um cara mais comunicativo Se no trabalho há esse companheiro supostamente  apurrinhando sua vida, em casa  a coisa não é melhor. O fantasma de um tio misterioso o assola a todo o momento com sugestões e pensamentos, geralmente confissões mal escondidas, ressentimentos contra os malogros pessoais. Sua incomunicabilidade, levemente autista, é decorrente, no fundo, mais das expressões de demônios interiores que das ameaças reais. A coisa toda só parece mudar um pouco quando a garçonete chinesa Amy é contratada para trabalhar no restaurante. José, ensaia um pequeno vínculo com o mundo exterior. Entretanto, Jerry está ali rondando a moça como uma ameaça ao amor de José. Consumido por uma espécie de paixão morbida pela moça e ódio visceral pelo rapaz, José, como todo o  homem que não sabe atacar concatena vinganças. Vislumbra assassinar Jerry.

Todo o filme é um tanto claustrofóbico. As cenas mais angustiantes são exatamente as que o protagonista tenta se comunicar, em vão, num ambiente anglofônico. Ou seja, as cenas em que o protagonista comunica menos em palavras, são as mais expressivas.

Grande Hotel



A belga Lotte Stoops reinventa com elegância o presente e revive imprecisão passado do Grande Hotel, um suntuoso hotel que teve vida curta durante os últimos anos da colonização portuguesa no território africano, mais especificamente na cidade de Beira em Moçambique. O seu documentário sobre uma das mais mal acabadas obras do “poder colonial” português na Africa é um exemplo do muito que nos diz, a brasileiros e moçambicanos, sobres os sentidos da colonização. Uma vez fabulosamente rico, o Grande Hotel, um edifício que é mais uma cidade dentro da cidade, foi um luxuoso hotel foi construído em 1955 pelo empreendedor português Arthur Brandão, numa enorme àrea de 12.000 metros quadrados. Desta cidade e do gigantesco hotel, sobrou apenas um esqueleto, povoado hoje em dia por 3.500 seres viventes que habitam suas ruínas, tentando criar em cada canto um lugar habitável em meios aos escombros e a sujeira. Mais do que um simples documentário sobre a história deste hotel, o filme retrata que nem a megalomania colonial, nem a vaidade ideológica, conseguiram tornar o lugar eficiente.

Mesmo antes do colapso colonial, o hotel ja havia falido pelo fato de que a obra deixou de ser rentável já na planta. Construído em 1955, o hotel ofereceu aos seus residentes este pequeno paraíso em grande dimensões por apenas 11 anos. Com a falência, dez anos antes da queda do sistema colonial, não demorou muito até que as suites se transformassem em lixeiras, as salas de jogo em bordeis e a piscina num pântano. A revolução, e guerra civil, acabou com seu propósito – se é que havia algum. Grande Hotel passou a ser uma grande ruína, e o lugar que, supostamente, uma vez recebeu presidentes, reis, políticos e o mais alto escalão do poder colonial, passou a hospedar trabalhadores, refugiados, conselhos guerrilheiros, prostitutas e fanáticos religiosos.

O luxo desapareceu. O que restou foi sendo dilapidado, roubado e vendido. E nesse processo, tudo passou a ser moeda de troca: azulejos, portas, vitrais, janelas. Hoje em dia, no lugar dos corredores há todo o tipo de comércio e prestação de serviços que vão desde a venda de comida em condições de higiene precária à presença de salões de cabelereiras. E para um lugar onde não há luz, água, saneamento, nem esperança, há uma dinâmica paralela, que Lotte Stoops se esforça em mostrar intercalando os comentários mais non-sense daqueles que viveram e ainda se lembram do hotel, com imagens dessa estranha miséria que gera uma honesta solidariedade.

As passagens onde uma hospede octagenária lembra com ingenuidade e barbárie de uma recepção de casamento, anos após o fechamento do hotel, de um ofical colonial de alta patente portuguesa é impagável sobre o choque de culturas. A pobre mulher diz que a festa tinha sido tão opulenta, que só se lembrava das muitas vezes que fora ao banheiro para forçar o vômito e voltar para o salão para comer tudo de bom que o banquete da festa oferecia. Todo o luxo que habitou aquelas paredes, desapareceu para sempre.

A diretora, além de percorrer todo o edifício e entrevistar os que lá vivem, mostrando o seu quotidiano, teve o cuidado de intercalar comentários bizarros e muitas vezes preconceituosos com a realidade presente das pessoas que vivem lá e se adaptam à adversidade de viver nas ruínas. Algumas imagens muitas vezes reforçam o argumento dos que frequentavam o hotel como hóspedes. Por exemplo, onde um dia foi o centro de conferências hoje temos uma mesquita, e a piscina olímpica, hoje com um resto de àgua verde, serve de lavadouro de roupas e balneário público. Entretanto, os seus atuais habitantes, que por sua capacidade de adaptação e a estranha solidariedade que a adversidade gera, já se consideram “whato munos”, nativos. Com sua capacidade de adaptação criaram seus próprios mecanismos de defesa e vigilância, onde em cada corredor de dez apartamentos há um vigilante. Um destes é Mateus, uma espécie de zelador/síndico do edifício. Segunda geração no prédio, ele é filho de um antigo funcionário do Hotel, ainda do tempo em queo Hotel recebia hóspedes como Kim Novak, alugava seus quartos para ir fazer safaris na Africa.

Música do dia. O Povo no Poder. Azagaia.

Fluminense x Vasco

Numa tarde de domingo, com um clássico dessa estatura, não há outra opção. Assistir aos mulambos disputando uma taça que nem sei o nome, ou ir ao cinema. O melhor a fazer é assistir os indicados para o Oscar na categoria Short Film:




Pentecost

Estória engraçadíssima de um menino coroinha que não pensa em outra coisa que em futebol. O mnenino é expulso da congregação depois de dar com o turíbulo, acidentalmente, na cabeça de um padre. A punição é severa. O menino fica privado de assistir as partidas do Liverpool. O ano é 1977 e o Liverpool está disputando a copa européia. Mas o Bispo vem à cidade para uma missa e o único que sabe conduzir o incensário é Damien. O paralelo que o diretor, o irlandês Peter McDonald, faz entre o vestiário de um time e os minitos anteriores à misa com o Bispo são impagáveis. Nem Hugo Geogete em Boleiros conseguiria.

Raju

Tudo bem, entendo. Max Zahle, o diretor alemão de Raju, tentou colocar etnicidade, dramalhão, choques culturais, inversão de roteiro, fazendo da última cena a primeira, e tudo mais... mas o filme não decola. Um casal alemão vai até a India para adotar o menino Raju. Tudo lindo. Tudo perfeito. Pegam o menino no orfanato, assinam os papéis de tutela e leva o menino apra o hotel. Os três ainda têm três dias na India e o novo pai de Raju decide dar uma volta pela cidade. Num momento de distração, os dois ficam olhando umas pipas, e o menino desaparece. O pai entao vai a polícia, ao orfanato, a todos os lugares sem sucesso. Até que encontra uma ONG que investiga rapto de crianças. O pai adotivo então descobre que Raju e todos os meninos do orfanato são crianças raptadas. O curta é bom, mas tenho implicância com temas tão globais desde Babel....


The Shore

Outro filme irlandês da pesada. O diretor Terry George fez um filme emocionante sobre o reencontro de dois amigos que se reúnem depois de 25 anos. Pelo que li previamente, o cara fez um filme em frente à sua casa com os atores sendo seus amigos e familiares. É a estória de dois meninos Joe e Paddy que voltam a se ver e acertar as contas de coisas que ficaram no passado. O filme se desvenda nos diálogos do pai com a filha ameriana, numa viagem em que ele a leva para que ela conheça a sua terra natal. A cena impagável é quando os amigos se reencontram. Paddy no seguro desemprego mas catando uns mariscos para defender algum por fora, e Joe e a filha acenando de longe para que ele viese até eles. Paddy e seus amigos pensavam se tratar dos agentes do governo que vinham investigar se eles estavam trabalhado. A trupe sai correndo. Impagável. Um filme emocionante do ponto de vista do roteiro e da direção. Raju leva, por razões acadêmicas, mas meu voto vai para este filme, que não é brilhante, mas tem essa coisa de filme feito com dedicação e transpiração.


Time Freak

Sem comentários. Péssimo, mas vai agradar quem pensa cinema, afinal é a metáfora dos inúmeros takes que um diretor precisa para fazer uma cena.


Tuba Atlantic

Sem comentários. Estória interessantíssima de Hallvar Witzø’s. Um homem em estado terminal que constrói uma geringonça que supostamente pode ser ouvida desde a Escandinávia, na América. Podia funcionar se o diretor não tivesse feito uma verdadeira bosta com um enredo que daria pano para manga.




Nota. Postado 10 minutos antes de começar o Oscar. Que The Artist leve tudo, e que pingue alguma coisa para o Rio, que é um filme chatinho, mas que tem uma trilha sonora boa - apesar do Sergio Mendes.

La Ronde

Parafraseando Raymond Queneau, o filme La Ronde, de 1950, é um elegante exercício de estilo. Poucos filmes dos anos 50, talvez com a exceção dos filmes de Billy Wilder, tem uma carga de sexualidade tão grande e consequentemente tão divertida. A estória se centra numa peça de teatro vienense do século XIX, de Arthur Schnitzler, que causara muita polêmica à época, pois falava do tão famigerado fantasma que assola a história da literatura, desde que o homem é homem e a mulher é mulher: o adultério, i.e. o mais popularmente conhecido, par de cornos.  No filme de Max Ophuls os vários personagens ocupam uma série de vignettes que adquirem uma lógica circular num enredo que envolve, amor, pequenas traições, sedução e uma crítica sobre a moral, permeada por diálogos absolutamente fantásticos e divertidos. Ophuls borda uma reflexão sobre o desejo sexual e seus mecanismos de controle tomando como metáfora um carrossel onde todos somos passivos objetos da vontade dos deuses. As referências – morais, sexuais, religiosas, familiares, profissionais – são mostradas no filme com uma nostalgia da virtude - nas próprias palavras do marido Charles Breitkopt que antes de dormir conversa com a esposa Emma, exausta após uma tarde digna de Belle de Jour. Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas. O filme é genial.

Logo na primeira cena uma prostituta flerta com um soldado, e na segunda cena uma empregada é seduzida pelo seu patrão. Tudo de maneira muito natural, sem resistências nem grande entusiasmos de ambas as partes, até a cena final com a prostituta voltando à cena. A maneira circular e a transitorialidade das paixões está toda ali em amores passageiros, que duram apenas o que tem para durar. Ophus imprime, através de um narrador onipresente, Walbrook,  a cada cena, um fatalismo irônico na narrativa. O Racounter assume várias formas diferentes. Guia pratiamente todas as cenas e introduz as várias intrigas chegando mesmo a filosofar entre as cenas. Não incidentalmente, ele é o próprio operador do carrossel. Algumas cenas são geniais. Algumas vezes quando os encontros amorosos não se realizam por algum motivo, o mestre de cerimônias para a cena e faz reparos no carrossel para que o amor continue girando. As suas criaturas vagam e desconhecem que não passam de atores em cenas criadas por ele próprio e que habitam um palco. Numa outra dimensão, o enredo exige dos atores um exercício de exigente de interpretação, por exemplo, do poeta Barraut que numa das cenas seduz uma jovem e ingênua com uma verborragia e um exagero de gestos e atitudes que adquire uma face quase caricata, e numa outra trava uma pragmática conversação com uma atriz mais velha e temperamental por quem é apaixonado. Com esta, mede as palavras, é um paciente crítico de sua condição, as vezes agitado, mas sempre atordoado com a possibilidade de perdê-la.

Com o filme, Ophus mostra como as referências morais são fajutas, esvaziadas, quando não hipócitas e absurdas, isso muito antes da série Californication! Filme é genial.

Money is not required to buy one necessity of the soul


Tomo  a palavra para dizer que estes são apenas cinco dos 60 discos que comprei por 70 dinheiros estrangeiros. Dentre as preciosidades estão Carmen McRae, Miles, Charlie Byrd Trio, Stan Getz, o rarissimo Veloso, Gil Bethania - Bethania canta Noel de 68, Django Reinhardt, Ahmad Jamal e Wes Montgomery, dentre muita coisa boa. E a frase é do Henry Thoreau, pois no fim das contas money que é good nós num have!

Os Efeitos Maléficos de Hollywood

Quando adolescente, eu queria ser um desses jovens fora-da-lei. Queria andar por aí com um camarada meio sórdido como o Edward G. Robinson, ou um que que suasse muito, e que fosse conhecedor de todas as malandragens das ruas como o James Cagney. Eu era uma espécie de Antoine Doinel, que gostava de faltar as aulas e andar pela cidade com meus amigos. As vezes pegávamos o trem no subúrbio e íamos até quase a Central do Brasil. Por isso eu inventava meus amigos. Dava-lhes apelidos. Claro que eu guardava o papel do Bogart para mim. Eu era magricela, e apesar de magricela eu era metido a machão e sentimental, como o Bogart. Eu só não tinha aquele mel que ele usava com a Lauren Bacal, mas eu sabia que isso era só um detalhe. Eu pensava que era apenas questão de treino, pois quando eu ficasse mais velho a coisa viria naturalmente. Eu tinha até  um amigo negão, o que não é nada demais. No subúrbio do Rio de Janeiro todo mundo tem pelo menos dois amigos negões. Ele ficava aguentando minhas bebedeiras  até de madrugada. Eu pedia sempre para ele, toca aquela. E em vez de um “As time goes by”, o que sempre saia do violão do Sam era um Chico Buarque. Os porres geralmente eram por conta de alguma atriz que não queria se encaixar no papel que eu criara especialmente para ela. 


Geralmente, eu não era chegado em mulheres do tipo da Ingrid Bergman ou Barbara Stanwick. Muito finas, muito sofisticadas, eu até chegava a cogitar que elas tinham sido feitas mesmo para o Cary Grant – mas obviamente, na época, eu não ficava por aí dizendo essas coisas. Eu nem saberia o que dizer para uma mulher assim. Gostava das barraqueiras, das ciumentas, das possessivas, das mulheres que pudessem ter algum vínculo metafísico com o subúrbio. Tipo... a Elizabeth Taylor em Who’s afraid of Virginia Wolf?, ou o que por tabela seria a  Gene Tierney em Leave Her to Heaven.  Com elas eu treinava meu Humphrey Bogart. Eu as chamava de angel e precious  com um Gauloise no canto da boca – nessa época eu já era professor e entre uma aula e outra, eu fumava quase um maço de Malboro por dia. Elas não entendiam nada e me achavam um cara meio maluco.  


Depois eu acabei mudando de bairro e me juntei com uma turma mais prosaica. Éramos eu, Owen Wilson e o Adrian Brondi. Os tipos gostavam de fazer poesia e fumar uns negócios. Eu não. Eu só lia, passava o dia inteiro lendo, assistindo filmes,  e as vezes escrevendo ficção. A turma em que eles andavam era meio chata. Um bando de garotos e garotas metidos a intelectuais que ficava lendo Ricoeur, Queneau e Holderin, achando o máximo comunicar coisas que ninguém entendia.  Eu estava ali junto com eles, mas no fundo eu os via como num trailer de filme do Billy Wilder.
Numa determinada fase da minha vida, passei por um dilema terrível: houve uma mulher de quem gostei muito, a Anita Ekberg. Era mais velha. Um colosso: aprendi muitas coisas com ela. Mas com o tempo, não apenas a diferença de idade, os peitos também foram pesando. Além do mais,  essa coisa de mulher ficar perguntando umas 180 vezes por semana  se você a ama, começa a aborrecer. No fundo, eu achei que ela ia ser mais feliz sozinha, procurando sua vida, preferia ela como amiga a amante. Enfim, mesmo que as vezes baixasse um espírito de Doris Day nela, eu já estava em outra. Era um amor de pessoa, mas de uma mulher chata é melhor se separar.
Minha primeira grande paixão, paixão de verdade, aconteceu nessa fase da minha vida. E foi traumática. Não era bem uma namorada, pois eu tinha uma namoradinha. Ela era minha amante. Passamos por todas as fases da paixão:  encontros clandestinos pelas tarde, telefonemas afobados, cartas assinadas com um “Eu”.  Quando estávamos juntos eu imitava atores famosos, Karloff, Gary Cooper e o James Stewart. Ela imitava atrizes de filme B fazendo strip-tease.  E cheguei a bater com a cabeça quando vi que tudo estava acabado, mas eu sabia que não havia o que fazer. Eu não era nada, mas na época de jovem imaturo eu ainda acreditei que pudesse bater o Blue Eyes e tomar de assalto o coração daquela indomável Ava Garner. Pura ilusão pois ele devia cantar no ouvidinho dela. O que me magoou de verdade foi a frase que ela soltou nos jornais após uma das muitas brigas com Sinatra: “Éramos fantásticos na cama, mas as brigas começavam a caminho do bidê.” Isso ela disse quando nos separamos!  Depois foi para o New York Times dizer que isso era coisa do Sinatra. Doeu.
O que eu quero dizer é que não é nada bom querer ser o Bogart. O Frank Sinatra quis ardentemente  e se deu mal. Assim como eu a perdi para ele, ele a perdeu para um troureiro espanhol, desses que usam umas calças colantes e ficam rebolando no meio da arena. Esse negócio de querer ser quem não se pode não dá certo. Nunca dá.
Música do dia. Concierto de Aranjuez, Lado A, Faixa 1. Miles Davis. Scketches of Spain.