Podia ser Sergio Leone. Podia ser o The Good, the Bad and the Ugly. Mas, não. Você pega um filme do Tarkovsky. Vamos supor o The Mirror. Tudo onírico, não é? Então. Então você coloca ali um pouco de Faulkner, de De Lillo e de Elmore Leonard. Clica a tecla forward umas duas vezes. O negócio fica muito rápido. Mas no enquadramento dos personagens voce só vê o essencial, mesmo que aqueles seres humanos em conflito não tenham passado e nem futuro, você só vê o essencial. Tudo é tão rápido que as vezes você nem se dá conta que ao ler Faroestes de Marçal Aquino, como bem disse o Cristóvao Tezza você está entrando numa zona franca, onde os 5 sentidos devem estar muito apurados e a tua arma tem que estar sempre carregada e principalmente en-ga-ti-lha-da. Na cidade, na roça, numa rodoviária de interior, num necrotério, onde quer que você esteja, o espaço criado por Aquino é um espaço sem lei e sem ordem.

Além da falta de lei e ordem, eu ousaria dizer que, a exemplo de Faulkner, o Marçal Aquino também penetrar seu cutelo no coração do conservadorismo brasileiro. Num sentido mais prosaico, nesse universo conservador, evangélico e de classe média, é como se o nome de Deus fosse evocado a todo o instante, mas qualquer idéia que o associasse aos atributos de generosidade e solidariedade ficasse de fora, deixando o papo para os mortais. Como se Aquino dissesse a deus, ô cidadão, fica de fora da minha Yoknapatawpha que aqui mando eu mando eu. Se você não tiver safisfeito, eu não vou sujar minhas mãos contigo, mas você toma muito cuidado quando chegar em casa tarde da noite, ou na saída para o trabalho de manhã, pois voce sabe... tem muito coisa ruim acontecendo no mundo...

No espaço geográfico do Aquino tudo é violento, fragmentário e multifacetado tipo filme de Chan-wook Park. O instrumento pérfuro-contuso está ali na tua cara, mas não é ilustrar nada não. Aquilo é pra furar, para sangrar, para foder com alguém. Você tem ainda uma outra certeza, armamento pesado não é só para dar confiança para o cara. Ou seja, a prosa do Marçal Aquino é um problema. E pode ser que as frases curtas, quase metrificadas, sugiram uma espécie de poesia, uma espécie de sonho. Pois tudo é tão real que passa a ser quase irreal, quase um sonho daqueles que você acorda no meio da noite atordoado, enxugando o suor do pescoço, com uma sensação de que se você voltar a dormir o sonho volta, duro e hiperrealista.

E ainda tem uma outra coisa. Como tudo que ele narra é aterrorizantemente familiar, passando no telediário da noite, no cinema, podendo ser ouvido no rádio ou num comentário no boteco da esquina, tudo dá mais medo ainda.

Só um exemplo:

DEZ MANEIRAS INFALÍVEIS DE ARRANJAR UM INIMIGO (PARA FACILITAR O TRABALHO DO LEGISTA)


3 – Você repara como é pernuda a repórter da TV que veio filmar o boteco onde aconteceu a chacina na sexta-feira. De minissaia, uma beleza. Ela começa a fazer perguntas, todo mundo se encolhe. Surdos e mudos. Então você se aproxima, como quem não quer nada além de ver de perto as manchas de sangue no chão, os buracos de bala nas paredes e no balcão. E, é claro, aquele belo par de pernas. Na hora em que surge a oportunidade, você diz a ela que topa contar o que sabe. Desde que seja longe dali e com duas condições: você só aparecerá de costas e terão de mudar sua voz quando a entrevista passar na televisão. Naquela noite, com a família e amigos na sala, é a primeira vez que você vê alguém impaciente com o capítulo da novela. Você se sente meio artista, ganha até um tapinha nas costas. Começa a reportagem, a repórter surge na tela, microfone em punho - e você comenta que ela é mais bonita pessoalmente. Sua voz, alterada, ficou parecida com a de um personagem de desenho animado, você não se lembra qual. Todos se divertem na sala. Menos você, porque acabou de notar que aparece vestindo sua velha jaqueta, que tem nas costas uns desenhos coloridos e manjados. A entrevista dura uma eternidade, mas você já não presta atenção. Está pensando que nunca mais vai usar aquela jaqueta. Gosta muito dela. Seria um pecado ela ficar cheia de furos.

Mas não pára aí não. Os sismógrafos de Aquino resgistram desde o minimalismo do ódio entre os olhares de um padrinho e uma madrinha, observados pelo afilhado, até a angustia de um pai que tem um filho marginal com tudo para acabar morto e acaba mesmo morto.

Ao terminar o livro você tem um dilema nas mãos. Uma sensação de angústia. Voce se sente esmagado, meio que um merda. Mas você tem duas certezas. Primeira, nem sempre quem está a fim de te ajudar é teu amigo – como no conto Tocaia. Segunda, nem sempre quem está afim de te ferrar é teu inimigo – como no conto Clinch, no chute que Abdala deu num cara para que ele aprendesse a nunca mais mexer com mulher alheia. Portanto, se voce está na merda, fica calado.

Em outras palavras, se você achar Faroestes ruim, você prova uma certa obtusidade. Se você achar bom, você se ferra, pois não dá para fechar o livro em paz. Lógico que não se trata de gostar ou não gostar apenas. Em todo o caso, não fala nada, fica calado e clica a tecla play novamente. The Good, the bad and the Ugly ou The Mirror. Tanto faz. Você não vai conseguir dormir mesmo…

4 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Que beleza de resenha, impossível não ler este livro agora. Amigo você continua afiado na escrita!

Andréa Motta - Conversa de Português disse...

Francisco, eu cheguei ao seu blog por indicação um amigo em comum, o professor Tarcísio Firmino. Ele tinha toda razão ao dizer que os textos são ótimos. Parabéns!

ilusão da semelhança disse...

Cara Andréa, se você é amiga do Tarcísio, voce corre um sério risco de eu me tornar um amigo seu também. Gosto muito desse cara desde a epoca de faculdade. Vi que voce tem um blog tambem. Em breve, se voce me permite, andarei dando umas visitas por lá.

Grande abraco e muito obrigado pelos elogios. Chico

ilusão da semelhança disse...

Grande Kovacs. Andei afastado por falta absoluta de tempo, mas fui la no link votar no teu blog, que sem duvida é um dos melhores blogs de literatura e divulgacao de cultura que conheco - e estou falano de Iluminismo, aqui, conceito que passa ao large de muita gente.
Abraco grande meu amigo, Chico