Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Entre Portinari e Spellbound
Mister Buddwing, interpretado pelo canastrão James Garner, evoca o mesmo tema da perda da memória que Gregory Peck imprimiu, com muito mais força e talento, em Spellbound. Mister Buddwing desperta certa manhã num banco de praça, no meio do Central Park. Acorda, olha para o céu e percebe que não tem idéia quem é. Está bem vestido, portanto não é um mendigo. Não está de ressaca, portanto não é manguaça. Simplesmente, o homem acorda sem memória. Encontra em seu bolso algumas, diríamos, drageas e um número de telefone. Na mão direita um anel com as iniciais “de G.V.” Vaga desorientado pelas ruas de Manhattan em meio a uma trilha sonora povoada de jazz. Perdido, cria um nome Sam Buddwing inspirado nas asas de um avião e na cerveja, agora brasileira (!), Budweiser. Durante todo o filme, buscando sua identidade, Mister Buddwing acaba encontrando vários tipos esquisitos que alimentam um certo voyeurismo de princípio do espectador. Enfim, o filme é um melodrama meio vulgar sobre um cara com amnésia em meio a uma sociedade mediatizada e massificada, que nem valeria a nota, mas veio a calhar exatamente na mesma noite que terminei um livrinho interessante de Godofredo de Oliveira Neto chamado O Menino Oculto.
Um livrinho interessante e experimental na linguagem, na trama e na forma de narrar. De forma leve, mas sem perder o pulso da linguagem, concilía uma estrutura narrativa de planos múltiplos, mas sem uma cronologia muito bem definida - o que por vezes acaba confundindo o leitor. Mas também não é pra menos... O protagonista Aimoré Seixas é um português que ainda jovem foi morar em Santa Catarina. Aimoré é um pintor de quadros. Mais exatamente: um falsificador de quadros perturbado por delírios e ziquiziras mentais. Com uma suposta inteligência acima da média é capaz de só numa olhadela, absorver os detalhes e copiar telas de grandes pintores brasileiros. Meio que por acaso, acaba se envolvendo com negociantes de quadros falsos, que lhe encomendam uma cópia do Menino Morto, de Portinari. Além dos dotes visuais e perceptivos o cara, que usa as guias de Clio e deve ter batido cabeça para Mnemosine, é capaz de recitar trechos inteiros de autores clássicos do cânone brasileiro. Porém, entretanto, todavia, Aimoré tem um problema. Ele perde a memória num acidente e passa a viver o dilema de identidade... a mesma perda de identidade presente em famosos duplos literários como os de Borges em Borges; como Goliádkin no Duplo ou Pávlovitch em O Eterno Marido Dostoievski; como Mr. Blank nas Viagens do Scriptorium de Paul Auster; ou como recentemente o Indigitado do Cony.
A trama toda se passa numa espécie de hospital, que por vezes se assemelha a um hospital psiquiátrico, onde Aimoré é interrogado - diga-se de passagem, sem reconhecer seus interrogadores - e grava suas inúmeras versões em fitas. No depoimento a um tal de professor Albano, percebe-se certa excêntricidades em Aimoré, que lá pelas tantas já não se sabe se são decorrentes de sua amnésia ou de sua malandragem narrativa, pois o protagonista precisa acima de tudo encobrir o fato de que, malandramente falando, copiou, o mesmo quadro de Portinari para duas quadrilhas de negociantes de obras falsas, embolsando as respectivas granas e pinturas importadas do Doutor Dárdano e do Doutor Orestes.
Aimoré passa a ser ameaçado pelas quadrilhas. Uma delas tenta, usando a cópia do Menino Morto, forjar a documentação referente ao quadro num escritório de Advogados em Boston, pondo em dúvida a autenticidade da obra exposta no Museu de São Paulo. Nesse meio tempo, resistindo à perda de memória e lutando para encontrar sua prórpia identidade, Aimoré deixa a obra encomendada inacabada, gerando toda a procura do livro... pelo quadro, pela identidade, pela memória, pela Ana Perena....
Num fluxo desordenado, nessa procura aleatória, com níveis de memória que dariam um nó na cabecinha do pobre William James, há espaços onde Aimoré preenche com sua consciência seletiva aquilo que a tal memória secundária deixou à deriva. Nesse caminho, Aimoré remonta 3 eixos. Primeiro, a estória do cego Baltazar, na baía da Babitonga, em Santa Catarina, que o conheceu durante a juventude apresentando-lhe um mundo mitológico e cheio de lorotas. Segundo, o encontro com um travesti, a quem assassina violentamente. Terceiro e talvez mais importante na retomada da memória, a relação digamos erótico-horizontal com Ana Perena, cujo desaparecimento o transtorna.
Certamente há uma linha que separa a loucura da sanidade nos depoimentos de Aimoré. Mas ao final do livro percebe-se que, de perto, o cara não é tão anormal e tampouco tão pacada assim. Ele, mesmo que por vezes se perca em suas versões, não apenas as cria de maneira intencional, como nos faz viajar nelas. E nos faz viajar de maneira que tão céticos e perdidos quanto o Albano, que grava os depoimentos, nos quedamos perdidos como leitores, sem saber que desvio tomamos. Pós-moderno? Meio pós-moderno, sim, se essa é a pergunta. Godofredo Neto usa e abusa tanto dos meandros do fluxo de consciência na forma de narrar quanto da cronologia aleatória, da linguagem coloquial e sem meneios, e do sexo (componente mercadológico fundamental para reconquistar a classe média leitora iletrada), pois é disso que o povo gosta. Foi sim uma dupla jogada crítica de Godofredo Neto, pois nas palavras de Aimoré, que se recusa a definir seu trabalho como cópia - mas sim uma recriação -, Godofredo, criando um protagonista, imerso em seu individualismo, assumindo uma personalidade esquizofrênica, rejeitando a definição de falsário ao introduzir pequenas modificações em suas telas, cria paradigmas para a própria auto-afirmação do artista (pintor,escultor ou escritor) num mundo onde Harold Bloom e o pós-modernismo decretaram a falência da originalidade.
Ou seja, John Ballantine tem tudo que Mister Buddwing tem, mas o papel de Aimoré no papel é melhor que o de ambos na telona. Fazer o quê?
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4 comentários:
Chico,
Muito bom! Eu, como você, costumo fazer associações entre leituras, entre literatura e cinema, literatura e música, literatura e pintura...
Pelo que você descreveu do protagonista, lembrei de um conto do Stefan Zweig, Xadrez, em que um personagem desenvolve a capacidade de jogar consigo mesmo, tendo sequências completas de jogos na cabeça - podendo, assim, prever qualquer movimento de seus adversários.
(Ah... Esse quadro do Portinari é maravilhoso!)
Abraços
Grande Ricardo, obrigado pela visita e pela dica do conto do Zweig. Certamente vou atras, ainda mais agora que ando meio numa fase Beckett. Consegui uma serie de DVDs com todas as pecas e ando vendo uma por dia.
A proposito, o livro eh baseado nessa pintura.
Abracao, Chico.
Chico,
Não conhecia o Godofredo Neto, e fiquei muito bem impressionado com o seu excelente resumo. Muito bom mesmo, e vou até incluí-lo na minha lista para pesquisas futuras.
Abraços
Fala Barros, ando lendo um outro dele chamado Marcelino. Para quem gosta de historia do Brasil e Era Vargas, acho que esta ateh mais emocionante. Mas nem me fale de listas, pois ando meio escravo delas... ta dificil diminuir a pilha de leituras...
Abraco grande, Chico
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