Olho por olho....
Dentes de ouro, sorriso suasório. Após juntar algum dinheiro em pedras e jóias com a lida do garimpo, parece que la pro Norte, Moacir decidiu partir. Sonhava em parar numa cidade pequena abrir um secos & molhados e levar Josefina consigo. O filho que levavam consigo fazia, ele, de conta que era seu. Os seus, de fato e de direito, providenciaria assim que sentassem praça. O cão, o destino do cão que seguia Moacir por toda a parte talvez nunca se venha a saber, talvez fosse melhor não perguntarmos qual será o destino do animal, ignaro e disperso por natureza, que vive apenas os dias sem um fio condutor que ligue seus acontecimentos cotidianos a um sentido da vida, que não aquele de seguir e proteger seu proprietário, se é que aí esteja o verdadeiro sentido da felicidade animal, o de não refletir sobre seus semelhantes seres, sobre a mudez das coisas, o sentidos presentes e ausentes, as origens, os fins, as razões, as margens das intenções, os desesperos dos gestos... Escolheram para viver, aquela pequena cidade de interior, com o busto do filho ilustre, igreja e prefeitura. Meio padaria, meio armarinho: vitrine com carnes boiando em caldos engordurados, salgados, ovos cozidos, restos de aguardente nos copos sobre balcão, mesa de totó, ovo rosa, maria-mole, mortadela pendurado, linhas de diversas cores, pipas coloridas, garrafas de cana penduradas, enlatados nas prateleiras que iam até o teto. Em poucas semanas os clientes já tinham caderno de fiados, e sem que Moacir percebesse os visitadores entravam pelos fundos do bar. Os comentários já se espelhavam pela cidade e à alcunha de forasteiro se agregou a de corno.
Quando descobre que é traído, na tarde em que buscaria os filhos na casa da cunhada, mas que por obra do acaso ou do azar, nesse caso, caminhando lado a lado em significado e infortúnio, retorna com a sensação, comprovada ao olhar a mesa de centro da sala, de que tinha esquecidos as chaves de casa, Moacir, trincando os molares de ouro, sorrateiro, escuta os ruídos no quarto, ouve os gemidos, risos. Recolhe suas lembranças em tudo que se desordena ao seu redor; aproveita um dos passeios matinais de Josefina à igreja e tranca o portão dos fundos, veda as janelas, trocas as fechaduras e envenena o cão estimado da casa, afeto da mulher. Os clientes estranharam a loja vazia no meio da manhã. Quando Josefina retorna, ele aplaca o coração partido, aqui significando estilhaços de um paraíso possível para sempre perdido, sentido fragmentário que o abandono do corpo exprime em juízos vingativos, reativos, violentos, que vão sendo cardados, fiados, tecidos dia-a-dia silenciosamente, mas que no caso de Moacir o golpe de asa negra do orgulho o impulsionou, intenção precedida de uma profunda dor na alma, a prende no quarto para sempre. Nunca mais se viu Josefina, as lendas eram muitas, dizem que ela criou fiapos de barba no queixo e no buço, a pele esverdeou de tanta escuridão e os olhos exoftálmicos denotavam avançado estado de miopia. Como não se teve mais notícias dizem que ela aceitou seu destino recluso. Uns elogiavam, outros condenavam a atitude de Moacir. O fato é que todas as noites antes de se deitar ao lado de Josefina, sentado aos pés da cama acendia uma vela na mesinha de cabeceira, rezava um Pai Nosso, uma Ave Maria, riscava o sinal-da-cruz sobre o peito e dormia o que lhe parecia ser o sono dos justos.
...dente por dente
Durante uns dois meses Moacir passou a sentir fortes engulhos. Semanas se passavam. Alguns diziam que era úlcera, outros chegaram até a desconfiar de tuberculose e deixaram de freqüentar a Mercearia de Moacir. Os filhos iam crescendo com a ausência da mãe, que recebia a comida por baixo da porta - os excrementos eram acumulados num barril no canto do quarto e recolhidos quinzenalmente. No fim do segundo ciclo lunar a quitanda foi aberta sem a presença de Moacir. A sombra de Josefina que reaparecia, após doze anos de reclusão, não se comparava com a exuberância daquela outra mulher do passado. Os corpos de Moacir e Estógio nunca foram encontrados na cidade. Mas, secretamente, Josefina passou a exibir um cordão de ouro onde o que chamava a atenção era o crucifixo de pedras esmeraldas, ladeados por dois caninos de cão.
Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
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