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JOÃO ANTÕNIO




Título: João Antônio

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Janeiro 2022

 


Filho de pai português, dono de botequim, e mãe mulata batalhadora, semi-analfabeta, João Antônio em nasceu em Presidente Altino, distrito de Osasco, na grande São Paulo, em 1937. Seu pai era um português atípico. Falava francês e tinha sido caminhoneiro, auxiliar de contador, e dono de armazém de secos e molhados.  Era violonista e bandolinista auto-didata. Levava o filho para as noites de seresta nos interiores de São Paulo -  sem a aprovação da mãe. Segundo palavras do próprio autor, cresceu criado na rua, vendo prostitutas, batedores de carteira, malandros em geral que nos seus futuros livros ganhariam uma dimensão existência. Ainda jovem descobriu os benefícios do conhaque, da cerveja, das mulheres e das mesas de sinuca, que o acompanharia por todas as suas andanças em São Paulo, Rio de Janeiro, e o interior de todos os lugares por onde passou. Aliás, dizem as más línguas que era mulherengo e mão-de vaca.

Jornalista conhecido por sua participação na imprensa alternativa nos anos 1970, desde jovem mostrou talento para a escrita. Sempre escreveu à mão, e somente depois datilografava seus textos. Depois os lia, e ria sozinho na varanda da casa, igual maluco. O jovem João Antônio Ferreira Filho trabalhou em empregos mal remunerados antes de lançar seu primeiro livro de contos, Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963. Com este primeiro livro, ganhou os prêmios Jabuti e o Prêmio Fábio Prado e o Prêmio Prefeitura Municipal de São Paulo.

Este livro, a propósito, é fruto de um grande trauma em sua vida de escritor. Em 12 de agosto 1960 um incêndio, por conta de um ferro elétrico que deixaram ligado, destruiu a casa em que vivia com sua família.  João Antônio perdeu os originais deste seu primeiro livro Malagueta, Perus e Bacanaço neste incêncio. Anos mais tarde, diria que aquela era uma data absolutamente inesquecível em sua vida, porque ficou traumatizado durante muito tempo, chegando mesmo a se recusar a entrar em livrarias, por reviver a memória da perda de seus originais.  Este seu livro de estreia seria reescrito em menos de dois anos, valendo-se de cartas e rascunhos enviados a amigos e de suas memórias, publicado finalmente em 1963 pela Editora Civilização Brasileira.

O sucesso literário conduziu-o à atividade jornalística. Entre a estreia em 1963 e o segundo livro, Leão de chácara, passam-se 12 anos. Nesse meio-tempo, João Antônio, aos 27 anos foi convidado para ser repórter do Jornal do Brasil e se mudou para o Rio de Janeiro, cidade que escolheu como residência fixa. Foi da equipe fundadora da Revista Realidade, na qual publicou o primeiro conto-reportagem do jornalismo brasileiro, Um dia no cais em 1968. Trabalhou, ainda, na revista Manchete, no jornal O Pasquim, além de diversos órgãos da imprensa alternativa, de oposição ao regime militar. Foi de cunho de João Antônio a famosa expressão “imprensa nanica” para designar os jornais alternativos do período da Ditadura Militar que se instalou no Brasil em 1º de abril de 1964, que eram vendidos clandestinamente em bancas de jornais.

Com o filho pequeno, trabalhando feito louco em seis anos de trabalho ininterrupto por longas horas à frente da máquina de escrever, mais as noites de boemia e as andanças pelas ruas do Rio de Janeiro, renderam ao autor uma crise nervosa - talvez catalisada pela birita.

No começo de 1970, essa crise o obrigou a se internar por dois meses em uma instituição psiquiátrica. A passagem pelo Sanatório da Muda, na Tijuca, em maio e junho, rendeu a João Antônio não apenas a oportunidade de se restabelecer, como também dois textos que se tornariam centrais para entender a relação de João Antônio consigo mesmo e com o seu escritor de predileção: Lima Barreto. 

Nesta fase de sua vida, João Antônio escreveu dois de seus grandes livros. Um deles é a crônica de João Antônio sobre o próprio sanatório, que dá título a seu quarto livro, Casa de loucos, de 1976. Numa espécie de livro-reportagem, entrevista psicografada ou crônicas surrealistas dos encontros que o autor teve com personagens históricos tais como Darcy Ribeiro, Nelson Cavaquinho e Noel Rosa.  

O outro livro trata-se de nada menos que “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”, um roteiro dos bares, restaurantes, cafés, ruas, redações e livrarias que Lima frequentava, onde bebia e encontrava amigos e conhecidos. A reconstituição foi feita a partir do relato que João Antônio ouviu de um colega de sanatório já senil, o professor Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, 72 anos, que conviveu com Lima na década de 1910. O escritor chega a afirmar em uma nota que nenhuma palavra na obra é sua e que seu trabalho foi o de um “montador de cinema”. No livro João Antônio mapeou os trajetos que o escritor fazia de casa, no subúrbio do Encantado, para o Centro do Rio, bem como as andanças e as tertúlias de que fazia parte. Apesar nenhuma palavra na obra ser sua - como ele próprio sempre afirmou – o toque de devoção de João Antônio a Lima Barreto, está nos cortes e colagens que ele faz no texto de história oral, narrado por Carlos Alberto Nóbrega, pontuando episódios, amigos e personalidades históricas citadas, com passagens dos diversos livros de Lima Barreto.  

Assim o relato não é uma biografia de Lima, mas uma espécie de perfil do escritor feito da colagem de muitas vozes. São numerosos os trechos do autor que João Antônio reproduz, pontuando passagens escolhidas de obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Feiras e mafuás, Os Bruzundangas, Diário íntimo, Correspondência, entre outros.

Se não fosse por João Antônio, jamais saberíamos que Lima fumava cigarros Elite 18, da Sousa Cruz, e que jamais saía de casa sem chapéu, mesmo que sempre suado e com os paletós poidos. Não saberíamos que guardava seu dinheiro, com as notas enroladas em tubinhos, no bolso do lencinho do paletó. Nem saberíamos de sua enorme sabedoria etílica em evitar a mistura de fermentados e destilados, quando se trata de bebida alcoólica. Jamais tomava nada que não fosse Parati - a nossa mais que conhecida aguardente de cana. E mesmo com muitas doses, jamais apresentava momentos de embriaguez, ficava apenas sorumbático, tendendo à “melancolia”. Sem esse livro de João Antonio, jamais saberíamos que Lima Barreto era um homem bem humorado, pelo menos entre os seus, amigos de subúrbio.

Nesse compasso, produziu quinze livros, mas sempre se recusava a participar de cerimônias e de se vincular a grupos e academias literárias. Aceitava apenas convites para palestras em escolas e universidades.

Como a maioria dos escritores retratados nessa coleção, João Antônio retratou essencialmente os oprimidos. Operários, bichas, picaretas, prostitutas, otários e malandros, que disputam o jogo onde seja para ganhar um trocado, faturar um almoço, uma dose grátis, uma ronda a dinheiro, uma mulher alheia, o troco do café, ou um pouco de droga, significa muito para própria sobrevivência da espécie.

Mas não somente os oprimidos eram retratados em sua narrativa. O amor espúrio está na narrativa de maridos desnorteados, mulheres de 50 desesperadas de amor e rapazes bonitos que pelas circunstâncias viram gigolôs.  Narrativas onde há bipolaridade, tiroteio em disputa por mulheres, tentativas de suicídio, e atrações inesperados que explodem em paixões. Enredos que facilmente, dependendo do grau de distração, poderiam ser piegas, mas que na mão de João Antônio viram uma realidade muito próxima do leitor.

Sempre retratando o calvário de pingentes, desde o início da leitura de cada um - digo, cada um – de seus contos, temos a sensação que o protagonista pode se transmutar em qualquer ser, seja, um burro-sem-rabo andarilho, um publicitário fracassado, um antropólogo com câncer, uma prostituta apaixonada, burguês falido, juiz de futebol ladrão, ou até mesmo um guardador de carros poeta. A curva da sua trajetória literária que principia lírica e melancólica, com Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), acaba raivosa, indignada e ressentida, em Dama do encantado (1996).

Essa fase magoada começa nos anos 1980. Talvez o ressentimento fosse com ele mesmo, vindo de um desconforto de não se achar em lugar nenhum. Nesses anos deambulou São Paulo, Rio de Janeiro, Amsterdã e Berlim, onde viveu por mais de um ano, ao ganhar uma residência literária (aliás, a mesma vencida por Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão). Tinha se afastado da malandragem, e já não se identificava nem com os pingentes, nem como um falso figurante na desdenhada classe média, que ele sempre atacou. Esse despertencimento gradual foi mexendo com sua cabeça. 

A desigualdade aumentara no Brasil na mesma proporção da inflação e das trocas de moeda. O Botecos, antes xexelentos, com seus mictórios encardidos, agora tinham televisão que passava o futebol, e o abismo formado entre as classes, roía sua lírica da miséria. Alguns críticos diziam com certa leviandade, que ele tinha perdido a mão, repetindo o enredos e  anedotário em seus últimos livros. Entretanto, paradoxalmente, era e permanece um escritor atual. Passados 60 anos, temos em seus contos um projeto de país, que com muito jeitinho e antropofagia, descambou em uma nação dividida, violenta e proto-fascista.

Seria leviano dizer que João Antônio morreu esquecido. Sua morte foi noticiada em jornais e revistas de circulação nacional como O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Isto é e Caros Amigos. O sepultamento se deu com honras municipais. Também seria leviano dizer que morreu respeitado. Naquela década o escritor publicou os livros Zicartola e que tudo vá pro inferno, Dama do Encantado, Patuléia: gente de rua. Além disso, o livro Guardador recebeu o prêmio Jabuti em 1993.

A indiferença da crítica literária e da mídia em relação ao escritor, essas sim, provavelmente catalisaram desilusão do próprio. Mesmo que os críticos estivesses corretos sobre sua frouxidão nas rédeas da escrita dos últimos anos, jamais abandonara sua ênfase como porta-voz dos marginalizados.

JAMIL SNEGE





Título: Jamil Snege

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Xilogravura

Data: Dezembro 2021


Mais um da extensa lista que o Brasil fez questão de esquecer, é Jamil Snege. O escritor do Sul do Brasil, vem de uma família de descendentes árabes, por parte de pai, e italianos, por parte de mãe. Cresceu no elegante bairro da Água Verde na Curitiba dos anos 1940, e como todo o menino da sua idade, queria ser jogador de futebol. Felizmente, por inabilidade ou pura incompetência, e para felicidade de seus leitores, por volta dos 17 anos, sua paixão não foi correspondida e abandonou o sonho de ser jogador, ingressando logo em seguida no serviço militar.  

Prestou serviço militar nos anos 50, no Centro de Operações de Oficiais da Reserva (CPOR), e para felicidade de seus leitores, foi logo expulso por “falta de idoneidade moral”, como dizia o seu boletim de expulsão da época.

Após uma série de pequenos deslizes disciplinares, ele acabou provocando um incêndio num exercício de tiro. Participava de um exercício com peças de morteiro e começou imprudentemente  “levianamente”, em suas próprias palavras – a encostar a brasa do seu cigarro nas cápsulas auxiliares da munição dos morteiros dos companheiros de tropa, em Campo Largo da Roseira, colocando em risco a vida de toda a tropa. O incêndio se alastrou, pois havia um vento muito forte no momento, e todos tiveram uma tarde de muita fumaça, muito fogo e perigo de vida.

Além de escritor trabalhou com publicidade e marketing político. A propósito, formou-se em Sociologia e Política pela Pontífica Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), e destacou-se na publicidade pela ousadia e irreverência na criação de campanhas comerciais, políticas e educativas de grande êxito.  

Pode-se dizer que o “Turco”, como era chamado pelos amigos, como publicitário, ganhou a vida em sua agência de publicidade sempre promovendo os outros. Participou de diversas campanhas politicas de sucesso como a de José Richa e Roberto Requião. Richa foi eleito governador do Paraná em 1982. E no mandato, Snege desenvolveu projetos sociais de marketing, engajando-se também na campanha das Diretas Já, para a Presidência da República.

No campo literário, além da reconhecida qualidade de sua obra ficcional, notabilizou-se por recusar sistematicamente as propostas recebidas de grandes editoras, optando por financiar com recursos próprios a publicação artesanal de seus onze livros.

Alguns dizem que Snege define melhor a alma curitibana que o próprio Dalton Trevisa. Entretanto Jamil Snege sempre recusou o rótulo provinciano de escritor regionalista, com o argumento de que quando se olha para a literatura americana ou latino-americana, não existe a literatura da Carolina do Norte ou a literatura da California.

Dono de uma ironia sarcástica, enxuta, corrosiva, uma forma de heroicizar as misérias com um lirismo negativista, Snege tinha um olhar impiedoso sobre a condição humana. A diferença é que sempre escrevia com algo de auto-biográfico. Escritor reconhecido pela classe literária, publicou, entre outros, “O Jardim, a Tempestade” (minicontos, 1989), “Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo” (memórias, 1994) e “Os Verões da Grande Leitoa Branca” (contos, 2000).

Deixem-me arder
……..Deixem-me queimar as asas
nesse vela,
nesse sol, nesse leiser que envenena
as couves embrutecidas
pela treva.
…….Deixem-me arder.
…….Se ofendo sua lógica,
sua prosódias, seus anéis
de sempre elegante curvatura,
esmaguem minha musculatura
e os ossos que a sustêm.
…….Mas me deixem arder
…….Deixem-me arder de infinito
nesse iníquo delíquio
de existir.
…….E se os ofendo,
soprem minhas cinzas,
derramem minha lixívia,
mas me deixem auferir
as estrelas como o úmero roto
açoita o músculo que seu vôo
desencanta.
…….Deixem-me luzir
definhar meu luminoso espanto
onde só lhes é permitido
sobraçar espasmos
e guarda-chuvas.
…….E seu eu venha a ferir,
opacos, o lusco-fusco
de seus baços,
o hálito de hortaliças,
o bolor de queijo
que amadurece em seus
atrios
absteçam-me de mil insultos
…….
Mas me deixem incender.

SABOTAGE



Título: Sabotage

Dimensões: 9x9Cm

Técnica: Drypoint, Etching

Data: Dezembro 2021



Mauro Mateus dos Santos nasceu na periferia de São Paulo 3 de abril de 1973 e morreu assassinado na mesma cidade a 24 de janeiro de 2003.  Nestes breves 29 anos de vida, o poeta ficou conhecido pelo seu nome artístico Sabotage, Mauro Mateus fez de tudo um pouco. Foi poeta, traficante de drogas, rapper, cantor, compositor, e ator brasileiro. A origem do apelido Sabotage deu-se por ter quase sempre conseguindo burlar as normas com algum êxito, como entrar em bailes, festas e boates sem permissões, e sair ileso de inúmeras confusões e brigas. Artista que combina raramente fineza e simplicidade numa prosa agilíssima, Sabotage foi criado na favela do Canão, capital paulista. Cresceu e viveu numa cidade que mata em média mata 700 pessoas por ano, em meio à criminalidade, à fama, o descaso, à morte e o sucesso. Começou a trabalhar aos 8 anos em seu primeiro emprego, como “olheiro” - nome dado aos que trabalham do tráfico de drogas avisando aos chefes locais quando a polícia se aproxima. Filho mais novo de 3 irmãos, teve um dos irmãos mortos, após fugir da cadeia, e outro, dominado pela loucura do alcoolismo. Mauro, pai de 2 filhos, nasceu na Zona Sul de São Paulo, onde, depois de ter sido assaltante e gerente de tráfico encontrou a saída no rap, entrando na música e percebendo o seu verdadeiro dom. 

Sabotage fez um único disco solo, o “Rap é Compromisso!”, e participou de vários CDs com grupos como  RZO, SP Funk e outros. Seu único disco, de 2001, é um marco na historia da poesia Hip-Hop brasileira. Considerado uma lenda na Zona Sul, ele inspirou vários rappers, como Rhossi, Pavilhão 9, além de ter ensinado Paulo Miklos, cantor de ascendência húngara da banda de rock Titãs, como ser um malandro de verdade, no filme "O Invasor", de Beto Brant, com quem escreveu até uma música.

Sua música, mistura letras inteligentes, frases contundentes e rimas ágeis, com ritmos que não necessariamente são apenas de rap, mas também gêneros como o Samba, Rock, e Música Eletrônica.

Também fez parte de dois filmes, o já citado "O Invasor", e o premiado "Carandiru", além de ter recebido vários prêmios, como personalidade, revelação e outros no Hútus, o grande festival de premiação de rap no Brasil. Vale ressaltar que Sabotage era o próprio compositor e cantor de suas músicas. Em toda sua carreira, compôs dezenas de trabalhos e alguns deles se tornaram uma espécie de hino para jovens da periferia. Para muitos, Sabotage é uma rica expressão da constante luta que o pobre enfrenta diariamente para viver dignamente e isso fez com que vários outros artistas usassem suas obras como samples, colagens e scratches de seus trabalhos".

Na manhã do dia 24 de janeiro de 2003, em frente ao número 1877 da avenida Professor Abrão de Morais, no bairro da Saúde, próximo a sua casa, Sabotage levou sua mulher, Maria Dalva da Rocha Viana, ao ponto de ônibus. Na despedida, disse à esposa que iria para o Fórum Social Mundial, na cidade de Porto Alegre. Após entrar no carro, segundo testemunhas, foi abordado por um homem que disparou 4 tiros: dois na coluna vertebral 1 na mandíbula e 1 na cabeça. Encontrado horas depois, aos seu lado havia uma máscara preta. Muito se especulou, maliciosamente, à época sobre algumas possíveis causas de seu assassinato, entre elas, o envolvimento do rapper com o mundo do crime quando era mais jovem. A falsas acusações, entretanto, são veementemente negadas por seus amigos e familiares, haja visto que Sabotage tinha desistido da vida criminosa por volta de 10 anos antes de sua morte.

 Em 2016, 13 anos após sua morte, o álbum que leva o mesmo nome do cantor foi lançado no serviço de streaming Spotify. Nele estão diversas canções feitas na semana em que o rapper foi assassinado.

Sai da Frente 

Sai da frente, o mar, não tá pra peixe, entende?

Minha gente, quem não for do corre, sai da frente
As águas, sei, tão turvas, aqui ou no Oriente
A fome em Sampa arruína, esmagadora, brava gente
Click-clack-bang
Sai da frente, gente
Bala perdida é igual cadeia, a dor ardente
Me disseram: "O sol nasceu pra todos"
Pra quem será que dizem, mano?
Pra nós os pobres ou pro simples tolo? " 

O qUiNzE



Cordulina viu pelo bafo do marido e pela fúria das apóstrofes, tão desacostumadas no seu natural sossegado, que ele tinha bebido demais. E interpelou-o:
— Mas Chico, pra que é que você toma quando vai no Quixadá? Toda a vez que vem de lá é nesse jeito!
— Besteira, mulher!... Tomei nada! Matei o bicho! A vontade que eu tinha era estar mesmo bebinho, pra me esquecer de tudo quanto é desgraça!...

Em O Quinze, de Rachel de Queirós.

O nome Aldir Blanc significa algo para você ?

Eu apenas queria dizer duas ou três coisas sobre o Aldir Blanc.



Primeiro, que o dia de hoje está sendo tão triste e que talvez seria melhor não dizer, nem escrever, nada. Talvez fosse melhor guardar uma espécie de contrição por esse pesar, por essa pena, por esse vento frio encanado em minh'alma, por esse sentimento de esmagamento que estou sentido hoje. 



Aldir Blanc - Rubem Fonseca também, à sua maneira - foi muito importante para mim. Cresci no subúrbio, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Fui leitor assíduo do cronista, com quem dei muitas risadas. Seus personagens eram criaturas quase que à clef. Era possível ver aquelas pessoas em qualquer lugar. Era quase possível falar com aquelas pessoas. Era possível… Bastava andar pelas ruas, entrar num ônibus, num boteco sozinho e pedir uma Brahma, que logo apareceriam:  o marido da Medéia de Vila Isabel; o Leocácio, com sua cara de próspero e pinta de quem  sempre faturava fácil; a bunda da boazuda passando na da porta da tinturaria; o Waldyr com seu baralho indo para o velório do tio do Gouveia, na rua Paula Matos - onde por acaso eu nasci. Até caminhando pela Praça XV à noite, era possível ver a Candice Bergen em frente à carrocinha de Angu do Gomes; na porta de um cinema era possível ver o Ambrósio, lutando contra o Capota Arriada, como um verdadeiro Don Juan, guerreando pelo coração de Yolanda enquanto solta a letra no ouvido da mulata. 



Segundo, eu podia dizer aqui que o Aldir é a cara do Brasil! Mas não é… o letrista pode ser… O cronista não. O cronista é nosso! É do Rio de Janeiro, de Cabucçu, Cordovil, Caxambi, Madureira, Olaria e Bangú, Cascadura, Agua Santa, Pari, e ousaria dizer mais de Nova Iguaçu que de Ipanema. Apenas nós, cidadãos cariocas, podemos ver o Leocádio, o Waldyr, o Francelino, a Dona Otília, o seu Joaquim do taxi, a irmã solteira do Sardinha… só nós podemos vê-los…  



O letrista Aldir Blanc, é outra História. É o do Linha de Passe, O letrista Aldir Blanc musicou a abertura política lembrando tanta gente que partiu num rabo de foguete, sem saber que o Bêbado e o Equilibrista, lançado em 1979 - ano em que Figueiredo sancionou a lei que concedia Anistia aos cassados pelo regime militar - seria três anos depois, o hino das Diretas Já. Na poesia, na arte, em geral, as coisas são assim, meio por acaso. Por isso deve haver mais arte para que depois de tudo aquilo que sobra, depois de todas as mentiras que vivemos nesse país escroto ao qual pertencemos, tenhamos a verdade como uma síntese dialética. Essa verdade:



O Brazil não conhece o Brasil

O Brasil nunca foi ao Brazil



O Brazil que o Aldir musicou no fim dos anos 70 tinha esses defeitos, mas era um Brasil de esperança. Mesmo, nós, sabendo que sempre foi um país de elites tacanhas, rentistas, aduladoras da autoridade, do kiss up kick down, do preço da cura e da justiça, da injustiça, do golpe, do golpe baixo, da barganha, da política do café com leite, do rent-seeking, do racismo, do almirante negro, do sebastianismo, dos partidos políticos solventes, das eleições roubadas, dos juros caóticos, do mercado selvagem, da opressão ao pobre, do câmbio, e por aí vai… não pensávamos que iríamos chegar ao ponto em que chegamos com o juiz ladrão de braços dados com as trevas, com a tortura louvada pelo chefe inominável do executivo, com a verdade manchada, com a doença terrível, com o sádico e o cruel andando lado a lado de mãos dadas com neo-pentecostais. Não pensávamos lá atrás, que o Brazil poderia matar o Brasil. Achávamos que era apenas uma mera questão de tempo, e que tudo se ajeitaria, e que a Democracia traria a vida, a luz, um pouco de Humanismo, com igualdade… para um país tão fodidamente desigual. Nos enganamos. O Brazil matou sim… 




Entendeu? Aldir Blanc morreu hoje. Ele não foi ali comprar um cigarro. Ele não volta nunca mais. 



Aldir Blanc morreu hoje, justo hoje quando está dificílimo ter esperança no futuro. Pode ser sintomático o que estou pensando agora... pode ser vocacional e cruelmente intencional o que fizeram com o Brasil nesse últimos 5 anos…  mas o fato de Aldir ter atravessado o espelho hoje, é uma metáfora cruel do que fizemos com nós de nós, de nossa História. Eu estou imaginando que dentro de cem anos, os historiadores vão definir o fim do Século XX, oficialmente, com a morte de Aldir Blanc vítima de COVID -19, na segunda década do Século XXI. E para piorar em muioto nossa situação, com uma carta testamento de Flavio Migliaccio. 



Entendeu? O Brasil que todos nós conhecemos morreu num CTI. Esta na lona. E nesse momento, tem vários corpos estendidos no chão...   




Nota: Ponto final do Gardenia Azul. Ela parecia um pardal e tinha jeito de trabalhar nas Lojas
Americanas. Nao pude resistir. Pegou bem no ouvidinho esquerdo:

- O nome Aldir Blanc significa algo pra voce?

Balão Cativo


Não gosto de diários, mas me lembro com se fosse hoje.  Naquele tempo uma ida de Cascadura a Copacabana, de ônibus, tardava umas duas intermináveis horas. Naquele dia, minha mãe tinha que resolver algum problema burocrático no Consulado Espanhol, que ficava justamente em Copacabana. Podíamos ter ido de trem até a Central, e dali pegar um ônibus até o destino, mas aquela rodoviária da Central nunca foi um lugar muito seguro e minha mãe procurava evitar. Naquele dia pegamos o ônibus 254, saltamos na frente da UERJ -  e aqui um parêntese: eu jamais imaginaria que naquele dia de 1982 eu estudaria naquela universidade. Dali pegávamos o 464. Nessas idas a Copacabana, eu não gostava do 464 por um detalhe específico. Quando ele saía da rua Riachuelo, cruzávamos os arcos da Lapa -  e sempre ao passar pela igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa, minha mãe me lembrava que ali tinha se casado com meu pai -  assim que acabava a rua Teixeira de Freitas o ônibus virava à direita, bem ali no prédio do IHGB, na Avenida Beira Mar, e ia por "dentro". Não dava para ver nada do Aterro do Flamengo. Na pista de dentro do Aterro, até o vento parece diferente, daquele que venta na pista de fora, perto da praia. 

Lembro que o Consulado ficava na Rua Duvivier, no predio ao lado do Beco das Garrafas. Ali trabalhava o Padre Pepe. Padre Pepe era um amanuense espanhol muito amigo da nossa família,  que trabalhava no Consulado há anos, e que tinha casado meus pais, na supracitada ibidem Igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa. Nesse dia específico, lembro bem, eu tinha 10 anos. Com 10 anos você é inocente. Mas eu sempre saia do Consulado com a certeza que o padre Pepe não ia com a minha cara. E fique certo de que a recíproca também era verdadeira, tanto é que minha mãe me dizia antes de entrar: Se comporta, não toca em nada, só abra a boca se falarem com você.  Uma mãe só diz isso a um filho, quando tem a certeza de que ele não é flor que se cheire.

Nessa época, nesse dia específico, eu ainda não desconfiava que o pilantra também tinha uma dona há anos. Mas aquilo era um tabu na família. Todo mundo sabia da amante do Padre Pepe, menos eu e minhas primas menores. Padre Pepe devia ser Franquista. E a possibilidade dele ser franquista me deixaria num futuro pretérito mais que perfeito, muito puto. Isso me deixa mais puto até hoje. Pari passu  ao condicional fato de ele ter vivido com uma mulher a vida toda -  isso realmente é o de menos - , o malandro atendia ao público num órgão governamental, público, laico, com a clérgima!

Enfim, eu nem queria falar dessa viagem longa e cansativa, nem do subúrbio, nem dessas ignomínias à clef de um padre pilantra, mas queria lembrar que nesse dia específico, saímos da rua Duvivier, e dobramos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana para voltarmos para casa. Perto do ponto do ônibus havia uma livraria. Minha mãe e eu, entramos nessa livraria. Nesse dia específico eu comprei meu primeiro livro... com minha própria graninha... Justamente do Flavio Migliaccio, que se suicidou hoje. 





...me lembro que a viagem de volta foi linda. E eu acabei de ler o livro, antes de chegar a Cascadura...

...essa coisa de ter uma memória péssima é horrível, apesar de lembrar de tudo... mas quase me esqueci desse fato... quase esqueci que As aventuras do Tio Maneco, passavam na televisão à tardinha, e que tinha 3 guris, um tio gente muito boa, um carro velho, um robô de lata...






Flavio... Poucos tem coragem de deixar uma carta tão corajosa....não foi em vão não, irmão... A gente apenas perdeu tua referência física... isso dói, não vou dizer que não... Tio Maneco, eu era aquele moleque que te acompanhava todos os dias a tardinha na TVE e aprendia um  monte de coisas, contigo e com o Daniel Azulay...

A carta deixada é soco no estômago de uma nação em ruínas...






Eu tava me sentindo muito infeliz...



Segunda à esquerda



Não, não se trata de grandeza

Mas do precário equilíbrio

Entre sofrer pelos outros

E rir de mim.

Pensando bem,

Ninguém me perguntou nada.

Com Licença


A casa era exatamente o que eu esperava. Um jardim, aquelas garrafinhas pra beija-flor, o maior sossego. Respirei fundo e fiquei repetindo pra mim mesmo: "Puxa! Eh impossível que alguém se sinta infeliz num lugar assim". Eu tava me
sentindo muito infeliz.

... pensei que pudesse largar o batuque e a brahma...

... ao menos, não desmente que te amei com a estupidez de um halterofilista, todo pedido teu
tornado lei, vassalo como um político arenista...

... eu nunca marco a derrota do meu time na loteria, me sinto um traidor...







Ponto final do Gardenia Azul. Ela parecia um pardal e tinha jeito de trabalhar nas Lojas Americanas. Não pude resistir. Pegou bem no ouvidinho esquerdo:

- O nome Aldir Blanc significa algo pra você?