Blanche Ebelin-Koning faleceu na quinta-feira. Trabalhei com ela por três anos na Oliveira Lima Library e sempre a admirei, não apenas por sua personalidade forte, mas por sua ironia fina. Catalogadora de livros raros e tradutora, era capaz de ler 7 línguas, incluindo o latim. Nos últimos anos andava a trabalhar numa criteriosa tradução do holandês para o inglês de um  livro do historiador e poeta humanista Gaspar Barlaeus.

Barlaeus se propôs a narrar os feitos do conde Maurício de Nassau na obra Rerum per octennium in Brasilia (História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil).  As ilustrações do livro são um espetáculo à parte que poucos no mundo tiveram o privilégio de presenciar, até por que deve haver no máximo 5 copias coloridas no mundo - eu conheço 3, incluindo a da Fundação Biblioteca Nacional. Trata-se de 340 páginas e 56 ilustrações, entre elas o retrato de Nassau por Theodor Matham (1605-1660), mapas de George Marcgraf (1610-1644) e gravuras de Frans Post (1612-1680) retratando a paisagem pernambucana, o cotidiano dos escravos, dos engenhos, dos portos e do comércio.

A edição em português, foi organizada em 1940 por Cláudio Brandão e concordo quando Blanche a criticava. É absolutamente ilegível e displicente. Em contrapartida, em sua tradução - sou testemunha -  ela preocupava-se em encontrar  forma perfeita para o que melhor definisse os nomes de frutas, tipos de armas descritas, os monstros narrados, os nomes dos rios, os nomes dos tubérculos definidos pelos índios, as etnias indígenas, as embarcações, os equipamentos e nós náuticos. Enfim, um trabalho absolutamente impressionante que por vezes me parecia interminável principalmente por sua  incansável busca da expressão que melhor traduzisse do holandês - seu idioma nativo - para o inglês - sua língua de uso -  com minúcia e destreza as expressões holandesas do século XVII.

Traduzir o texto de um erudito como Barlaeus não é tarefa das mais fáceis. Além de historiador e poeta, Barlaeus foi um teólogo defensor da causa arminianiana, doutrina pela qual os seres humanos são incapazes de fazer qualquer esforço para salvação e que nenhuma obra do esforço humano pode causar ou contribuir para a salvação.

Enfim, em meio a luta para terminar a tradução, na última quinta-feira, Blanche nos deixou. Diagnosticada com um problema numa das válvulas do coração, os médicos lhe deram um ano de vida caso não se operasse. Operou-se e não resistiu. Parece retórico, mas assim com Barleaus ela era uma Humanista plena. Deixou registrado que não queria enterro nem cerimoniais póstumos. Não sei o que fez com a sua pequena casa em Greenbelt. Não sei se acreditava na salvação da carne, na remissão dos pecados, na vida eterna e em todas essas inúmeras bobagens. Provavelmente não, pois doou em vida seu corpo para estudos científicos.

No último ano acompanhei a sua luta, pari passu a sua gradual fragilidade física - para terminar a tradução que tanto a atormentava - certa vez, nuum de nosso almoços confessou que sonhava com pernambuco colonial. Nos últimos anos, andava perdendo muito peso o que lhe acentuava a fragilidade, mas eu não desconfiava dos sempre silenciosos e traiçoeiros problemas cardíacos. Almoçávamos quase todas as semanas pois ela vinha a Library para terminar as inúmeras revisões. Viúva de um economista que trabalhara na ONU, ela nunca tivera filhos. Em fevereiro último estive com ela quase três dias no hospital, pois ela teve um sério problema gástrico... e desde março não tinha notícias dela. Engraçado... semana passada pensei em telefonar, mas a inútil correira do dia-a-dia E recebi a notícia ontem com um choque.
Acompanhei sua luta para terminar esta tradução, tentando conseguir finaciamento e cartas de recomendação com scholars que tinham idade para serem filhos dela, da Library of Congress, para pagar pelas imagens que a biblitoteca detentora da obra somente liberaria mediante pecúlio... e que a editora se recusava a publicar integralmente por tornar a edição do livro muito cara... Blanche literalmente lutou até o fim por este livro. O mais irônico de toda a luta... entregou ao editor a última revisão de sua tradução de Barlaeus duas semanas antes da operação e não chegou a vê-la publicada...

El viaje vertical

El viaje vertical é um livro de Enrique Vila-Matas que fala com boa dose de humor e uma certa dose de absurdo dos dilemas da terceira idade... vamos dizer assim...




Mayol é um homem dos que se pode dizer já ter conquistado muita coisa na vida. Empresário, catalão, nacionalista moderado, dono de uma agência de seguros, bem estabelecido, com filho criados, netos, esposa, alguns bons amigos do poker... enfim, um tipo que se poderia dizer de-bem-com-a-vida.

Tudo vai bem, até o dia em que a mulher, Júlia, o expulsa de casa poucos dias depois de celebrarem as Bodas de Ouro. Motivo: prosaico: a mulher não o aguenta mais. A notícia é dada assim do nada com a esposa na cozinha descascando as ervilhas para o almoço. Começa então um momento crucial da existência do protagonista Federico Mayol. Mayol descobre que a vida não é nada do que imaginava. Tenta se aconselhar com os filhos. Um dos filhos, o que admnistra a agência de seguros, anda em crise existencial no casamento, sem tempo ou paciência, e por razões óbvias não pode consolar o pai. A relação conflituosa com o outro filho, o artista da família, é um capítulo à parte.

Aturdido, Mayol vai ao único lugar onde um homem sem respostas deve sempre ir. Vai ao bar encontrar com os amigos que não necessariamente são os mais sensíveis, não necessariamente são os mais hábeis, não necessariamente, são os mais competentes mas assim como os analistas sempre podem nos mostrar novas, ainda que inúteis, perspectivas. Um dos amigos o aconselha a uma viagem. Uma viagem a um lugar desconhecido, inóspito, inusitado. Mayol vaga pelas ruas da velha Barcelona sem saber bem para onde ir ou o que fazer. Então, entre uma taça e outra de vinho Oporto, decide.

Mas antes de dar o passo decisivo, tenta se aconselhar com os filhos. Um dos filhos, o que admnistra a agência de seguros, anda em crise existencial no casamento e por razões óbvias não pode consolar o pai. A relação conflituosa com o outro filho, o artista da família, é um capítulo à parte e algo que nos leva a boas gargalhadas. O filho é pintor. Sente desprezo pela falta de cultura do pai, que com dinheiro e tempo poderia ter polido os espírito, lido mais. O pai, igulamente, sente desprezo pelas alma nefelibata e descentrada do filho. As cenas e os diálogos entre os dois são algo impagável. A certa altura o filho diz: “Mira, papá. Tú y yo somos igualitos. Sentido de humor, inteligencia, imaginación. Como dice un amigo mío, sólo nos diferenciamos en la cultura. Yo tengo, tú no mucha.” E mais adiante: “Pues que por mucho que te duela, yo tengo cierta genialidad. Y tu eres un simple merluzo.” Há ainda uma outra cena impagável em que Mayol aparece encharcado de chuva na casa do filho e ele lhe dá uma capa de chuva. Absorto por um quadro que não consegue conceber, assim que vê o pai com a tal capa diz-lhe que ele se parece a Kim Novak!

Risadas garantidas à parte, Mayol compra uma passagem para  Oporto. O avião sairia em três dias, tempo suficiente para arrumar as malas, despedir-se dos filhos e pensar na nova identidade que passaria a assumir, pois decidira que junto à decisão de se tornar um novo homem numa terra estranha, decidira mudar!


Dentre outras situações inusitadas, antes de embarca num avião com destino a Oporto, descobre que no mesmo vôo está a seleção nacional portuguesa de hoquei sobre patins que acaba de perder um jogo decisivo contra a seleção da Espanha. Todos de cabeça cheia e Mayol, tentando agora em vão fazer novos amigos.

Sem dúvida, o constante diálogo entre Mayol, um homem arrogante mas de vida simples, com os “intelectuais” que o cercam mostra que, mais que o próprio sentido da viagem, este é o ponto alto deste livro. Sua viagem de auto-descoberta, cheia de pequenas loucuras, absurdos, encontros impossíveis e desencontros factíveis, e até mesmo avisos do destino nada tem de espiritual e em nada se assemelha a uma descoberta de grandes revelações. Ao contrário, a cada novo encontro o protagonista sente-se mais inculto. Seu próprio sentido de humor o faz ver a cultura é uma sucessão de improvisos – vide o exemplo do próprio filho – que geram o êxito. Ou seja, me parece que para o protagonista de Vila-Matas não existem as regras, nem a disciplina, nem o método.

Western Crepuscular ou Tráiganme la cabeza de Alfredo García

"El Jefe" é milionário e “fazendeiro”. Mejicano e cheio de capangas mejicanos. Certo dia, descobre que sua filha Teresa está grávida. PQP, pra que?  Ora veja você, o cidadão em vez de ficar feliz por ser avô de primeiro neto, fica furioso. Primeiro, por que a criança vai nascer sem pai, segundo por que a menina era virgem – veja bem, estamos falando de caras mexicanos, ano de 1974, com outro diapasão que não o seu de século XXI. El Jefe, então, aplica uns safanões na menina para saber quem seria o pai da criança. Entre uma bordoada e outra a moça acaba revelando que o pai é o tal do Alfredo Garcia, justamente o homem que El Jefe tinha preparado para ser seu sucessor – ai você pensaria… ahh, tá explicado, Freud explica. Você leitor, é um tremendo babaca, não entende nada de roteiro de Peckinpah, nem do que é a porra da vida.

Para lavar a honra tanto da filha como de sua película apassivadora, contrata dois pistoleiros maus e internacionais, que na verdade encontram-se na outra margem do Rio Grande, e oferece 1 milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do tal Alfredo Garcia.

Dois pistoleiros chegam a um bar do baixo meretrício mejicano en Ciudad de Méjico, onde encontram o pianista Bennie, e um ex militar americano que vendo a pinta dos pistoleiros se faz de desentendido. Eles, os bandoleiros transviados que eram o bambas lá da zona, oferecem um bom tutu pela informação do paradeiro de Alfredo Garcia, mas queriam como prova a cabeça de Garcia. O pianista já andava meio na bronca com Garcia pela folga com a cantora Elita, seu trelêlê oficial,  e fica de dar a resposta aos bandidos. Bennie vai atrás de Garcia e se certifica que ele estivera com Elita. Mas a cantora lhe diz que Garcia foi embora para sua cidade no interior do México, onde sofreu um acidente de carro e morreu. 

Mas é claro (!) que Bennie não acredita nessa estorinha fiada de Elita.  E no melhor estilo brasileiro compra um terçado e parte com Elita rumo à cidade onde Garcia foi enterrado, para conseguir a prova da morte de Garcia, ou seja, literalmente a cabeça de Alfredo Garcia. 

Mas como isso tudo é uma estória de western pop crepuscular pensada na cabeça de Peckinpah, o mais gótico dos diretores do gênero, os assassinos não confiam em Bennie e sem ele saber o seguem até a um vilarejo no interior do Méjico, onde então ocorrerá a emboscada e a pendenga pendejada semi-final. Afinal, pensa comigo. Por que eles vão pagar ao cara, se podem embolsar a grana e ainda matar o infeliz do Bennie, não é mesmo. Isso é Óbvio.

O filme foi um dos mais baratos do Peckinpah, e justiça seja feita, fez milagres. Fico pensado se o Peckinpah tivesse metade da grana e dos amigos do Tarantino...

Com orçamento enxugadíssimo e um roteiro barato, não deu outra, Bennie encontra a sepultura de Alfredo Garcia e ao tentar desenterrá-lo é atacado pelas costas. Quando desperta, está enterrado. Com muito esforço consegue se desenterrar, mas constada que sua amante, Elita, enterrada ao seu lado está morta.  Bennie ao ver a sepultura de Garcia aberta, constata que o corpo não tinha a cabeça, levada enquanto esteve desacordado e então passa a desconfiar que se os dois assassinos de aluguel o seguiram até aquele fim de mundo, e levaram a cabeça de Alfredo Garcia, por que a cabeça do morto vale muito mais na mão dos sicários que na dele. 

Enfim, depois tremenda troca de tiros, ele recupera a cabeça de Garcia e a coloca num saco com gelo e dirige com a cabeça no banco do lado. 

O monólogo de Bennie com a cabeça morta de Alfredo Garcia é uma cena surreal, mas fantástica. Talvez o ponto alto do filme seja esse diálogo/monólogo e convívio  de Bennie com a cabeça decepada. 

O filme tem várias reviravoltas. Os matadores Sappensly e Quill acabam fazendo uma emboscada, quando Bennie vai devolver a cabeça à família de Alfredo Garcia. Quill mata toda a familia de Garcia, mas é morto por Bennie. Sappensly, desolado como um matador olhando para seu parceiro morto, diz que não pagará Bennie, e também toma um caroço na cabeça. 

E nesse meio tempo, Bennie continua conversando com a cabeça. Chega ao hotel, lava-a e pretende levá-la ao Jefe, com o pretexto de receber os US$ 10K.  Em meio a mais tiros, Bennie finalmente consegue o endereço do  eL Jefe. 

Consegue chegar justo no dia do batizado do rebento. O Jefe estava até feliz. Bennie se apresenta, entrega a cabeça e relata quantas pessoas morreram por aquela cabeça. Quando o Jefe diz para ele pegar seu dinheiro, jogar a cabeça para os porcos, e ir embora, ele lembra que Elita se incluía naquele monte de mortes em vão, e aí é possível ver como o semblante de Warren Oates muda ao constatar que tudo aquilo tinha sido em vão. 

Aí meu amigo... acho que não era nem mais o Beniie que estava ali, e sim o Oates, vaqueiro do Kentucky, amigo do Steve McQueen.  Foi tiro pra todo lado. Bennie, enfurecido,  mata um monte de capanga do Jefe. 

A mocinha entra com o filho no colo e pede que mate seu pai. Ele pega a cabeça e vai em direção a porteira da fazenda levando o Jefe, junto a Teresa. 

Chegando na porteira, ele se vira pra Teresa e diz assim mesmo do jeito que eu estou te falando: “Agora, você cuida da tua criança, que do teu pai cuido eu…”  UAU ! podia terminar ai né! Mas não…. Isso é um filme de Sam Peckinpah.

Como nesses de mafiosos, traficantes, milicianos, tem sempre capangas pra caramba, surgiu mais um monte do nada e rasgaram Bennie com rajadas de metralhadoras. 

Nota. Sam Peckinpah já foi partícula apassivadora em tiranicídia contenda entre meu concunhado e eu. Enquanto eu dizia que o cinema americano não era autoral. Ou seja, para mim não tinha uma linha de cineastas americanos que faziam filmes classificáveis, pelo toque de Midas da linha autoral. O concunhado dizia que havia Peckinpah: "brutalidade mimética, estética da violência e ódio fiduciário". Dito assim, de maneira tão bonita, pode até ser isso mesmo.






Música do dia. El Justiciero. Mutantes.