Antropofagia



Um modernista poderia dar cambalhotas de felicidade. Eu não. Em um dia apenas, confiro o saldo bancário, leio de 30 a 40 páginas, dou pelo menos uns 10 Ctrl+Alt+Del, uns 150 Enters, troco 3 fraldas em média e durmo 6 horas em média, traduzo e reviso, assino meu nome pelo menos duas vezes por dia em algum memorando sem a menor importância, leio dois jornais em português, dois um em inglês, um em espanhol e quando dá um em galego, uso o comando ls –l e o pwd e abro e fecho permissões  no UNIX  pelo menos 200 vezes para saber onde estou localizado no mundo, e assisto pelo menos dois filmes. Quando dá tempo, ainda racunho coisas para este meu blogue maltratado e sem-vergonha. E por isso tudo, mas principalmente pela falta de tempo, não há coisa mais insuportável para mim que assistir filmes ruins. Ao assistir Inglorious Basterds certifico-me do grande antropofágico que é Tarantino. Uma vez pergutaram para Billy Wilder o que ele achava de Tarantino – na época de Pulp Fiction e Reservoir Dogs! Wilder devolveu ao entrevistador uma pergunta premonitória: “Quem?”


À epoca, achei um certo exagero de Wilder. Mas depois de assitir Jackie Brown e principalmente Bill Kill um e dois, chego a conclusão que Wilder tinha razão. Tarantino é um pastiche dele mesmo, um reciclador de lixo, prova disso é que seu filme anterior, Death Proof nem chegou a ser lançado. No fundo o que ele faz é usar filmes B dos anos 70, colocar uma trilha sonora eletrizante, dar novos ângulos, encher tudo com violência explícita e gratuita, juntando humor negro, para brincar com os fatos e estereótipos,  transformando tudo num novo filme B com um suposto ar cool. Essa antropofagia é ótima para fazer teses. 

O título inglês original está grafado errado de propósito para enfatizar que os Basterds são energúmenos e psicopatas violentos. Tudo no filme é assim, surpreendente e ao mesmo tempo rigorosamente calculado para conseguir um efeito esdrúxulo: A visão vingativa - que funciona  nos quadrinhos e nos filmes B mas não na História.  No fundo aposta na idéia excepcional e infantilmente forçada de que nada foi daquele jeito, mas que bem poderia ter sido.... No fundo, falta-lhe um certo pudor com seu prórpio passado, com aquele cineasta genial que poderia ter sido levado a sério uma década atrás. 

Se há algum mérito nesse filme, não sei bem. Há sem dúvida, diálogos bons, como o da sequência inicial quando um fazendeiro francês, na França de Vichy recebe a visita de um oficial da SS que vem interrogá-lo aparentemente de forma amigável. Além disso as sequências dos filmes quando Hitler, Goebbels e o alto comando morre no cinema, são reais. Dá pra notar que pelo menos um dos filmes é da Leni Reifensthal.
Pensar que nessas duas horas e meia (!) eu podia não ter feito nada, ou ter dado 5 Ctrl+Alt+Del, ou 25  ls –ls e  pwds, ou ter lido de 20 páginas, ou ter dado 40 Enters, ou trocado 1 fralda fedida  e asquerosa, ou  traduzido e revisado um texto, ou ter assinado meu nome num papel que será arquivado e esquecido, ou simplesmente não ter feito nada, pois melhor a metafísica em não pensar em nada a um desses  filmes do Tarantino. 

Música do dia: Hoje não tem música....
Há qualquer coisa a que eu chamo o rancor da grandeza: tudo o que é grande, uma obra, um feito, volta-se imediatamente, uma vez realizado, contra quem o fez. Este, precisamente porque o fez, encontra-se fraco — já não suporta o seu acto, já não o olha de frente. Ter atrás de si algo que nunca se deveria ter querido, algo em que está atado o nó que há no destino da humanidade — e tê-lo, doravante, sobre si!... É quase esmagador... O rancor do que é grande! Outra coisa é o silêncio horripilante que se ouve à nossa volta. A solidão tem sete peles; nada mais as atravessa. Encontramos pessoas, saudamos os amigos: novo ermo, já nenhum olhar nos saúda. No melhor dos casos, uma espécie de revolta. Uma tal revolta senti-a eu, em graus muito diversos, mas por parte de quase toda a gente que me era próxima; parece que nada ofende mais do que fazer, subitamente, notar uma diferença — as naturezas nobres, que não sabem viver sem venerar, são raras.
in Ecce Homo, Friedrich Nietzsche

Imagem. Cannibalism in Autumn. Dali.