Waiting for Godô


Da serie britânica de 4 DVDs Beckett on Film, assisti quase todos. A bola da vez de ontem foi Waiting for Godot, como já dito por alguém, dificil para um adulto e incrivelmente fácil para uma criança. Waiting.. é um texto enigmático em vários sentidos, mas sem dúvida é a obra prima de Beckett.

Dirigido por Michael Lindsay-Hogg e tendo Barry McGovern no papel de Vladimir, Johnny Murphy no papel de Estragon e Stephen Brennan no papel de Lucky; a peça é dividida em dois atos onde contracenam dois personagens principais Vladimir, chamado de Didi, e Estragon, chamado de Gogo - e no decorrer da estória aparecem Pozzo, Lucky (uma espécie de escravo de Pozzo) e na cena final entra um menino, suposto mensageiro de Godot. A peça começa com ambos, Didi e Gogo, num lugar ermo, uma espécie de estrada, com uma àrvore seca ao fundo e um tempo indefinido entre o dia e a noite. Estragon tenta tirar sua botina, sem muito sucesso até desistir e murmurar... Nothing to be done, não há nada a fazer. Os dois então iniciam um diálogo trivial com uma série de referências bíblicas, tais como quando bem no começo, Vladimir citando o livro de Lucas, começa a falar da crucificação de Jesus e da salvação de dois dos quatro crucificados, se não me engano no fim da pirambeira da via Apia. Vladimir se sente frustado com a limitação de seu interlocutor e essa relação de superioridade impera nos dois atos. Mas os diálogos são triviais que chegam a ser absurdos, sim.

Estão ali esperando um sujeito de nome Godot. Nada se sabe a respeito deste. Durante toda a peça não há o mínimo indício de quem é ele ou o que Vladimir e Estragon querem dele. Interessante observar que a incógnita não interefere no andamento da peça, pois Godot é um ente oculto que em nada interefere na vida dos personagens. Muitos desinformados foram levados a fazer uma associação direta entre Godot e God, associação veementemente refutada pelo protestante irlandes Beckett em vida. Na verdade, penso que não fazer a associação enriquece muito mais a assimilação da peça.

No vazio em que se encontram, Estragon sugere que se suicidem. O efeito é cômico pois rapidamente abandonam a idéia ao se darem conta que talvez um sobrevivesse deixando o outro solitário, hipótese absolutamente imponderável para ambos.

A certa altura passam dois desconhecidos. Um segurando uma longa corda que está amarrada ao pescoço do segundo. Pozzo segura a corda que amarra o pescoço de Lucky, que carrega uma pesada mala. Didi e Gogo, eles que estão esperando alguém que nem sequer conhecem, se sentem assustados com o absurdo da cena. Pozzo decide descansar um pouco e puxar dois dedos de prosa com a dupla Didi e Gogo, que a princípio pensam se tratar de Godot. Pozzo come um frango, toma uma taça de vinho e assim que termina lança os ossos a Lucky que Estragon prontamente tenta alcançar, para embaraço de Vladimir.

Antes de partir Pozzo pergunta se ele poderia fazer algo pelos dois. Estragon tenta perdir algum dinheiro, porém Vladimir corta-o imediatamente, mas aceitam que Lucky dance e filosofe na frente deles. Na peça como se pode ver não há ação, não há profundos sentimentos que liguem os personagens, não há sequer uma trama que amarre a todos, chegou-se a dizer que nas peças de Beckett nada acontece. De fato, nada acontece. Não há a ação que encontramos, por exemplo, nas peças de outros dramaturgos contemporâneos comoEugene O’Neill ou Wilde, ou a profundidade psicológica de um Treplev de Tchekov. Então o que nos torna reféns da poltrona frente à peça?
Tal como tudo que é bom, ilegal, imoral e engorda, o que te prende na poltrona é o paradoxo da atração e do incômodo.

Os paradoxos para espectador são muitos, nem tanto pelo absurdo das cenas e dos diálogos desconexos, mas pelas consequências dos mesmos. A peça é surpreendentemente instigante exatamente pelos fragmentos de diálogos e da narrativa, quase na forma de esquetes que ficam cutucando e incomodando de alguma forma nosso parcimonioso inconsciente sonolento e preguiçoso.
Como diria o porteiro de um lugar onde trabalhei... [Beckett] é celebral!
Tudo de complexo para ele, tal como um drible do Nunes ou um passe do Adílio, era cerebral.

Efemérides e quinquilharias

Para todos os efeitos, no dia 22 de abril de 1500, o jovem de 33 anos, nascido em Belmonte, Pedro Alvares Cabral, chegou às costas da Bahia. Veio trazido, de inopinado que era, por ventos que o desviaram da rota das Indias.

Não se sabe ao certo se sabia-se ou não da existência de Pindorama, mas já havia indícios de que havia algo do lado de cá do Atlântico, já que em Novembro de 1493 Cristóvão Colombo escrevera em carta ao Rei sobre o achado as supostas Índias Orientais.

http://www.wdl.org/en/item/2962/

Há indícios que Alonso Ojeda, acompanhado de Américo Vaspúcio teria descido pela Venezuela e tocado a Terra dos Papagaios no litoral do Rio Grande do Norte, antes de Cabral. Quem sugere isso é Varnhaguen, que acabou sendo contestado por Capistrano de Abreu e Rio Branco - que diga-se de passagem era homem de Estado e dependente da arte psicotrópico-cartográfica. Dizem que, tendo casado com uma dançarina francesa, não lhe restava outra coisa que dormir sobre os mapas espalhados na mesa do palácio Itamaraty.

Corre outra lenda que Vicente Yánez Pinzón havia tocado o litoral de Pernambuco, ou a ponta do Mucuripe no Ceará, tomado posse e chegado ao chamado Mar Dulce, que viria a ser a foz do Amazonas, mas resolveu seguir para o Norte. Os historiadores Duarte Leite, Capistrano e o Visconde de Porto Seguro a contestam, com o argumento baseado na preexistência conhecida do Tratado de Tordesilhas, mas escondendo a opinião de que no fundo pai é quem cria.

Embora o descobrimento tenha sido de fato feito por Pinzón, o descobrimento oficialmente válido foi feito pelo seu Cabral.

Em 1852, no IHGB - aquela arcádia olissiponense de gente inteligente mas chata para dedéu, iniciou-se uma peleja das mais tiranicídias, com direito a dedos no olho, cuspidas na cara e envolvimentos de nomes de mães no meio. O tema do acaso ou da intencionalidade do descobrimento, ou como diziam, a questão da prioridade e da intencionalidade, veio à tona. Gonçalves Dias - aquele... do... Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá... - sustentando a tese de Norberto de Sousa sobre a prioridade da posse, afirma que D. Manuel, em carta aos reis da Espanha, comunicava a descoberta 'milagrosa' da terra.

Referia-se o Rei que Cabral "chegou a uma terra que novamente descobriu". Esse novamente virou objeto de discórdia entre a velharada do IHGB por anos. Foi resolvido apenas por Capistrano de Abreu, que retoricamente afirmou tratar-se a carta de viagens feitas à região sententrional, onde havia estado outros navegantes portugueses, e a palavra novamente, poderia ter bem o sentido de recentemente - mas essa é uma questão que de fato apenas uma pessoa pode resolver: Zé Saramago.


Nota do dia.
Lançamento da World Digital Library.
http://www.wdl.org/pt/

Little Children

O filme trata da vida suburbana americana num estilo de drama psicológico. Duas pessoas casadas tem um caso amoroso. Um pervertido ronda a vizinhança. Um ex-policial não larga o pé do pervertido. Enfim, um filme com pitadas de todos os problemas que aterrorizam o subúrbio americano: adultério e perversão (e drogas, mas essas não estão nesse filme).

Sarah Pierce (Kate Winslet), casada com Richard (Gregg Edelman), vive no monótono e impressionantemente interiorano subúrbio americano. Ex-feminista e militante, sem em ter mais o que fazer com suas horas livres do dia, leva sua filhinha Lucy a uma pequena pracinha perto de sua casa para que a menina possa brincar com as outras ciranças. Sarah nunca consegue aderir plenamente à conversa com outras mães que falam de filhos, dos utensílios domésticos que incluem seus maridos gordos, da dedicação heróica aos filhos e das insatisfações sexuais decorrentes de fazerem sexo com a mesma pessoa por anos. Bom, certo dia, surge no parquinho Brad Adamson (Patrick Wilson) e seu filho Aaron. Brad que já estivera no parque anteriormente, mas Sarah não o vira, e tinha sido apelidado pelas mulheres como "rei do baile de formatura".

A ‘comissão suspiradora de mães frustradas’, nem sequer sabe o nome do homem, mas ficam alimentando uma esperança que ele apareça. Belo dia Brad aparece e fica empurrando o seu guri no balanço como quem não quer nada. Sara vai até o balanço e fica empurrando sua menina como quem não que nada, mas puxa uma conversa com Brad. Resumindo a estória. Brad é frustrado por ter terminado a faculdade de Direito e não ser capaz de passar em duas tentativas no BAR Examination – sem esse exame o cara não pode exercer a profissão. Ele fica o dia todo em casa, cuidando do filho, enquanto e mulher, infeliz com o casamento e com a vida, trabalha como diretora de documentários paraa rede pública de televisão, PBS. Ou seja, a Amélia sustenta a casa.

Sarah não trabalha, mas é frustrada com o casamento e a própria vida em comum. Ela que fora uma estudante feminista militante, encontra-se agora casda com um marido workaholic que nas horas vagas frequenta sites de muita sacanagem pornográfica, comprando calcinhas usadas – sim, o capitalismo chegou a tal ponto que é ou não é muita sacanagem esse negócio de vender calcinha usada. Certo dia é inevitável. Ela pega o malandro, eufemisticamente com a boca na botija, na frente do computador, ou melhor, onanisticamente com as mãos na botija. Fica p... diz poucas e boas, mas continua casada...

Nesse meio tempo, Ronald "Ronnie" James McGorvey, que havia sido preso exibindo suas ‘coisas’ para um menor, retorna para o bairro, deixando todos os moradores apavorados. Brad é convidado por Larry Hedges, um ex-policial, para fazer parte da comissão de moradores contra a presença de "Ronnie". "Ronnie" é um cara tão anormal que consegue sair com uma outra mulher, assim como ele cheia de problemas, e põe por terra o velho adágio de que há sempre um sapato velho para um pé doente, e acaba se masturbando dentro do carro, na frente dela, que desconsolada, chora.

Sarah Pierce e Brad Adamson, então começam um romance, num dia de chuva, os filhos molhados, vão dormir na casa de Sara, no meio do dia. No basement o casal começa os movimentos iniciais de lesco-lesco. Daí par a frente...

Como uma estória dessas termina? Nada bem, apesar do final ser surpreendente e conciliador para todos, menos para Brad Adamson que leva realmente a pior nisso tudo. O filme foi baseado no livro homônimo de Tom Perrota. Não li este livro especificamente, mas o filme me lembrou o Mystic River de Dennis Lehane.

Sentimentos



O historiador Arno Mayer em seu grande livro The Persistence of the Old Regime: Europe to the Great War, sustenta que na Europa do século XIX, mesmo com toda a modernização da Segunda Revolução Industrial, mesmo com todo o avanço no campo econômico, era lenta no campo social. Lenta por que haviam forças remanescentes do Antigo Regime que somente viriam a cair a partir da Primeira Guerra Mundial.

Recentemente, lendo L'Éducation Sentimentale, onde Flaubert narra de maneira inviolavelmente distanciada as circunstâncias da Revolução de 1848 e o nascimento, em plena chapa quente, do "Manifesto Comunista", percebi que a tese de Meyer pode não ser de todo errática.

A força da tradição a qual Mayer se refere trata fundamentalmente da persistência que a classes aristocráticas, encalacradas nas esferas de poder do Estado, tiveram na deflagração da I Grande Guerra. Com o fim da Guerra, era necessário uma nova diplomacia que não cometesse os mesmo erros de Versailles - bom com a guerra dos Balcãs, vimos que o buraco seria mais embaixo. Fato é que a Velha Diplomacia, dos tratados secretos, das viradas de mesa dos bastidores cedeu lugar à Nova Diplomacia pautada na teses de Lênin e de Woodrow Wilson.

A falência desse, digamos assim, antigo regime, criou uma certa ilusão nas classes médias contemporâneas de que viveriam felizes para sempre no mundo dourado da meritocracia. O cidadão então pensou que bastava ganhar dinheiro para os comprar para se tornar um incluído no seleto grupo aristocrático, absorvendo assim seus valores. O"self-made men" burguês, incluto e iletrado, cedeu ao bosta, pois passou a frequentar o tal do shopis centis e incorreu num erro mais grave. Passou a viver ignorando ou em alguns casos pensando ilududamente que procedência, sobrenome, proveniência e todas as metáforas do antigo regime cairíam totalemente. Pensou, erroneamente, que podia ser igual ao cara que vem de berço. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, e o enterro do Velho Mundo que o conflito arrastou consigo, quase tudo mudou, mas ter nascido em bom berço - e no caso brasileiro, ter um nome com mais de 6 sobrenomes - ainda ajudou muito para abrir portas.

Um dos grandes intelectuais do Século XX a desvendar essa face cruel da sociedade, foi o Pierre Bourdieu. Desmascarando a "ideologia da igualdade de oportunidades" - ideia que tem que ser dita bem baixinho, com muita delicadeza, quase sussurrando para não ferir os brios dos marxistas – Bourdieu marotamente substituiu a idéia que determina um burguês. O poder de uma classe social, ao menos no campo literário, para Bourdieu, não é determinado pela posse material da propriedade privada ou voilá pela posse dos meios de produção, mas sim pelo uso de um poder subjetivo que vai se construindo pouco a pouco. O poder simbólico. Um poder permeado pelas idéias de esferas de valor, influência, ascendência, autonomia. Ou seja, o que determina a importância literária de um livro, não seria produção material do objeto livro em si, mas a produção de seu valor. Em outras palavras, escrever todo mundo é capaz, publicar um livro talvez seja fácil também pois te um monte de palha no mercado, mas então se escrever é, com algumas regras básicas, aparentemente possível, e se publicar também, o que determina o sucesso de um livro? Para Bourdieu o que definiria isso seria o tal valor agragado que está para além da produção material da obra.

Boa parte da teoria em torno ao que ele chama de habitus, vem sendo trabalhada por Bourdieu desde os anos 1960, quando o sociólogo, que era na verdade antropólogo, estudava a dinâmica de matrimônios arranjados e seu impacto na dinâmica econômica das tribos de Kabyla, no norte da Argélia. No livro Les règles de l’art. Genèse et struture du champ litéraire, Bourdieu estuda exatamente o L'Éducation Sentimentale de Gustave Flaubert.

Depois de quase 3 meses de idas e vindas, anotações e leituras paralelas... terminei o livro L'Éducation Sentimentale de Gustave Flaubert e o Las Reglas del Arte, já que mon frances est tres bizarre pa podê lê nu orriginale.

Por que tanto tempo? Este não é um livro de fácil leitura, tampouco um livro como qualquer outro. São pelo menos 25 personagens medíocres que aparecem e desaparecem no contexto de dois grande grupos. Primeiro, os personagens que orbitam o universo do protagonista, Frederic Moreau. Segundo, os personagens que giram em torno da familia Arnoux, com quem Frederic trava contato ainda nos tempos de universidade.

Frédéric Moreau. O protagonista e o nosso jovem herói. Um provinciano francês que em seus altos e baixos termina como um dos membros da classe média francesa.

Jacques Arnoux. Editor, industrial do ramo de porcelanas, especulador, avalista, conquistador e principalmente chavelho.

Mme. Arnoux. Mãe de dois, Marthe Arnoux e Eugène Arnoux, meio Capitú, consorte, sem sorte, por querer esquentar seus pés justamente com Frédéric Moreau.

M. Roque. Um mediano prorietário de terras e espécie de guarda-livros (essa palavra ainda existe?) de M. Dambreuse. Pai da adorável Louise Roque, que tem o terrível defeito de só pensar em uma coisa na vida: casar.

Louise Roque. Adorável filha de M. Roque, que por só pensar em casar, apaixona-se por Frederic, mas casa-se com Deslauriers, um dos elhores amigos de Frederic.

M. Dambreuse. Banqueiro, aristocrata, provavelmente gordo e hipertenso. Casado com Mme Dambreuse, mulher mais jovem e cheia de fugor, com quem Frederic tem um caso e parte de suas dívidas pagas.

Mme Dambreuse. Esposa do banqueiro provavelmente gordo, diabético ou hipertenso Dambreuse. Jovem e cheia de fugor, a viuva tem um caso com Frederic.

Charles Deslauriers. Estudante de direito e melhor amigo de Frederic. O oposto de outros amigos de Frederic tal como Cisy. E ambicioso e inteligente. Tem ambição mas carece das relações sociais que possam catalisar suas ambições. Pela falta delas, vive num universo de inocência colegial pois ao mesmo tempo que tem ambições estéticas, ignora determiandos mecanismos sociais tais como o esnobismo. Flaubert é cruel com nosso amigo: “Por ser pobre, ambicionava o luxo em suas formas mais transparentes”

Baptiste Martinon. Estudante de direito. Tem berço pois é filho de um fazendeiro. Mesmo tendo berço e dinheiro, é retratado com workaholic e talvez por isso, ou apesar disso, termina como Senador, no fim da novela.

Marques de Cisy. Um nobre que nas horas vagas é estudante de direito. Flaubert o retrata como um personagem bonito, co boas relações e com dinheiro, mas pouco inteligente.

Sénécal. Professor de matemática, puritano, provavelmente careca e um Republicano dogmático.

Dussardier. Comerciante dono de um pequeno comércio. Um republicano idealista, mas sem muita fundamentação teórica.

Hussonet. Jornalista e crítico teatral, que com as manifestações do 1848 acaba por controlar a impensa e os teatros.

Regimbart, O Cidadão padrão. O revolucionario que de tão revolucionário se tornou um chuavinista. Com seu discurso tão revolucionário, se tornou uma sombra patética e incosistente do que foi.

Pellerin, um pintor com mais teorias que talento e que passa a ser fotógrafo - possso estar iludido como sempre, ams Luiz Antônio Assis Brasil escreveu recentemente um livro ( O pintor de Retratos) ondeseu portagonista Sandro Lanari, lembra vagamente Pellerin.

Mlle Vatnaz, quase feminista, quase escritora, quase atriz, e competente cortesã.

M. e Mme Oudry, e Dittmer, conviva de Arnoux

Delmar, ator, cantor e nada mais.

Catherine, governanta de M. Roque.

Eléonore, mãe de Louise Roque.

Tio Barthélemy, o tio que Frédéric mais ama e que quer que morra logo, para herdar a herança prometida.

Rosanette Bron, "A Marechala" courtesã, última esposa e viúva de M. Audry.

Clémence. Amante de Deslauriers.

Marquês Aulnays. Padrinho de Cisy; M. de Forchambeaux, seu amigo, Barão de Comaing, outro amigo; M. Vezou, o tutor.

Cécile. "sobrinha" de M. Dambreuse. Na verdade filha ilegítima.

Mas sua complexidade e corrosiva sutileza não residem na quantidade de personagens, mas na interseção destes, e na magistral maneira como Flaubert conduz a obra mostrando como o personagem principal refuta paulatinamente a realidade deixando quase que exclusivamente os outros personagens da novela tomarem das principais decisões e diratem os rumos da novela. Bourdieu chega a dizer que “Frederic não consegue comprometer-se nem com o mundo dos jogos da arte tampouco com o mundo do dinheiro, como propõe sua realidade social. Refuta a Illusio como ilusão de realidade, se refugia na ilusão verdadeira, cuja a form por excelência é a ilusão novelesca em suas formas mais extremas".

Esta novela é uma obra-prima. Talvez não tão rica em termos de adultérios e reviravoltas como Madame Bovary, mas talvez mais interessante para um leitor contemporâneo e urbano, pois não há nela a tentativa da protagonista de fugir de sua condição banal e vazia da vida provinciana vivida por Emma Bovary, em Rouen, na Normandia. Não há um marido como o entediante marido de Bovary. Não há, entre conquistas e decaídas, a série de amantes que Bovary vai colecionando ao longo de sua vida. O que há em L'Éducation Sentimentale, uma novela não menos polêmica mas totalmente diferente da publicada doze anos antes, é a visão sobre o fracasso de uma geração inteira que vê pela primeira vez seus ideais fundados na Revolução Francesa, rumarem ralo abaixo. De certa forma, incitou a literatura realista com a criação de personagens percebem a sua vida medíocre e lutam para se ver finalmente “livres”.


O tema do aultério é sem dúvida recorrente em suas páginas. A novela de tom irônico e pessimista, retrata vinte e sete anos da vida de Frederic Moreau e de sua paixão por uma mulher mais velha, Madame Arnoux. No início da novela, Frederic Moreau, um jovem provinciano, estudante de direito, passa parte de sua juventude de estudos em Paris da década de 1840. Certo dia conhece Mme. Arnoux, esposa de um editor de uma revista de arte e um comerciante de quadros com uma loja em Montmartre. E se apaixona por ela.

Frederic é um jovem sonhador e indeciso sobre que carreira seguir, dentre as muitas que se abririam na burocracia estatal, assim que terminasse a faculdade de Direito. O problema é que é um jovem sonhador, com algumas veleidades literárias, artísticas e mundanas. Outro porblema, por ter tido tudo tão fácil, nunca se esforçou para alcançar nenhum de seus objetivos. Por uma capacidade intuitiva, pensava que poderia ter tudo que quisesse, bastava que para isso fosse para Paris e se relacionasse com a burguesia e a aristocracia. E nesse ponto cabe uma observação no que tange à oposição social na amizade de Frederic e Deslauriers. Frederic é tão pobre quando Deslauriers, porém tem a possibilidade de se tornar um herdeiro, e isso os diferencia, da mesma forma que diferencia os que herdam e os que apenas tem a aspiração de possuir. Bourdieu, em sua análise estruturalista, diz que essa é a diferença essencial entre os burguês e o pequeno burguês.

Para penetrar nesse estreito mundo, tenta se oncluir no círculos dos Dambreuse, banqueiro, aristocrata, provavelmente gordo e hipertenso, casado com Mme Dambreuse, mulher mais jovem e cheia de fugor. Ledo engano. Mesmo atado às formalidades típicas de um provinciano, Frederic, em sua cordialidade, tenta estreitar as distâncias pessoais que o separam de outros parisienses, priorizando os laços afetivos, criando uma intimidade com aqueles com quem se relaciona. Essa busca pela intimidade com seus pares, alheia aos fatos e às diferenças que os distanciam, poderia possibilitar sua ascendência, não fosse sua tendência à mediocridade. Com a acolhida fria que recebe nos altos círculos, volta a desaparecer na incerteza, em seu ócio e em sua solidão. Paralelamente, frequenta outros grupo de jovens estudantes e boêmios: Martinon, Cisy, Sénécal, Dussardier e Hussonnet. No contexto desse grupo é convidado a ir à casa dos Arnoux, onde reencontra a Madame Arnoux e demosntra sua atração. Entretanto, ela aparentemente não corresponde à suas iniciativas.

Parte então de férias para sua Nogent natal. De sua mãe, recebe a notícia de que a situação finaceira da família é delicada, mas há uma luz: a morte de um tio velho e cheio da grana. A situação precária, não o abala, especialmente por que conhece a Louise Roque, que se apaixona por ele. Mas o dândi já frequentava a cidade, e agora com a possibilidade dos bolsos cheios de dinheiro, não havia muito espaço para Louise.

De volta a Paris, passa a frequentar mais e mais a casa dos Arnoux. Torna-se tão íntimo que passa a dividir segredos com Arnoux. De fato, Flaubert dá um pontapé na idéia de moralidade dos românticos por considerá-la um ultraje, mais do que um modelo a seguir. Frederic conhece a amante de Arnoux, a cortesã Rosanette. E nesse contexto de noitadas e cafés, aproveitando-se da derrocada econômica e de suas dívidas,algumas das quais Frederic fora avalista, este aproveita-se da situação para tornar-se amante de Rosanette e dos encantos da vida luxuosa.

(CONTINUA)
Música do dia. Sentimentos do disco "Memórias - Cantando" - Paulinho da Viola.

Krapp’s Last Tape

Causou-me espanto a resenha que Coetzee escreveu recentemente sobre o epistolário de Samuel Beckett no The New York Review of Books (Volume 56, Number 7 • April 30, 2009 - http://www.nybooks.com/articles/22612 - ). Espanta por que Coetzee dedica palavras extremamente generosas ao livro The Letters of Samuel Beckett, Volume 1: 1929–1940, especialmente por se tratar de um resenhador sem um pingo de compaixão de seus personagens literários. Enfim, Beckett não é um personagem de Coetzee. Beckett é Beckett, ou em seu melhor estilo: Beckett não é Beckett e sim outro Beckett.

O livro trata desta temática da indefinição, justamente no período mais instável da vida. Trata das cartas da juventude, justamente o período em que Beckett não era o Beckett que conhecemos em Krapp’s Last Tape, Waiting for Godot ou Act Without Words I e II. Segundo Coetzee, mostra-se nessas cartas todas as angústias do jovem escritor frente a indefinição do futuro, frente a sua fragilidade e insegurança como jovem professor de literatura, procurando saídas para a vida sísifica de um profissional que deve viver de ensinar àqueles que não querem aprender.

Isso fica claro com algumas passagens, como a da consternação que Beckett sentia com a possibilidade de se tornar escravo do magistério. Após terminar sua licenciatura em italiano e francês com uma tese sobre Proust, em 1931, Beckett passaria a sentir calafrios com a possibilidade de ser professor. Dia após dia, o introspectivo, taciturno e jovem homem, confrontava-se na sala de aula com os filhos irlandeses de classe média protestante. A experiência é traumática mesmo, só que já enfrentou uma sala cheia de alunos sabe do peso da cruz que Beckett carregou. Além dos fatores psicológicos do enfrentamento, com seu modesto salário de professor se viu obrigado a cuidar da mãe, após a morte do pai. Nesse contexto, passou a publicar short-stories como More Pricks Than Kicks (1934) e a pequena novela Murphy (1938). A falta de grana, a ambição de se tornar escritor e a convivência com a mãe, o tornaram um cara meio amargo. Sobre a mãe escreve ao amigo Thomas McGreevy, "to keep me tight so that I may be goaded into salaried employment. Which reads more bitterly than it is intended."

No entanto persistia na escrita. Continuava trabalhando como professor de línguas no Berlitz school na Suiça e na Rodésia, com propaganda em Londres, e até mesmo como piloto de aviões. Mas, das artes, a carreira que o fascinava era o cinema. Eisenstein, o cineasta preferido. Chegou a escrever para ele pedindo uma vaga para ingressar na Moscow State School of Cinematography. Isso aí foi no final dos anos 30. Coetzee se pergunta, com alguma malícia, como Beckett poderia ter tão olímpico desisteresse por política, num momento em que Stalin, Mussolini e Hitler estavam no poder. […] breathtaking naiveté or as serene indifference to politics? Bem, a pergunta procede, vindo de quem vem, pois pouca gente sabe, mas muita gente desconfia que Coetzee participou dos primórdios da Weatherman – um dos grupos mais radicais da política americana e ao qual Philip Roth dedica o enredo de American Pastoral.

Coetzee sentencia que o pai do Teatro do Absurso, tinha o coração na direita por sua formação protestante. E podia até ser, mas as justificativas para a assertiva, não são explicitadas por Coetzee. Ele lança a questão e desvia dela no paragrafo seguinte, retornando maliciosamente para o aspecto literário de Beckett. Bem, acho estranho que um camarada que tenha participado da resistência francesa fosse um cara tão de direita assim. Mas também concordo com a velha piada que depois da guerra não havia um francês que tivesse apoiado Vichy... Não estaria Coetzee criando uma cortina de fumaça para que esta sua face misteriosa acadêmico-ex-Weatherman, viesse à tona?

No frigir dos ovos... na sanha de assistir todas as peças da série de Beckett on Film http://www.beckettonfilm.com/ , ontem assisti ao Krapp’s Last Tape, um peça escrita em 1958. John Hurt interpreta Krapp nesta peça dirigida por Atom Egoyan.

Uma peça de cenário simples. Uma mesa, uma cadeira, estantes com livros e cadernos de anotação por toda a parte. Sobre a mesa, o elemento principal, um gravador de rolo. Krapp passa a maior parte do tempo sentado à frente do gravador, sob um foco de luz, e um cenário bem definido entre escuridão e luz, passado e presente, história e memória.

Na peça, Krapp é um homem envelhecido que costumava a gravar suas falas num gravador de rolo. Aleatoriamente, encontra a caixa número três, fita número cinco. Na gravação antiga, a princípio, não se sabe ao certo do que se trata, pois há uma série de fragmentos de falas do próprio Krapp. Aos poucos percebemos que Krapp, ao escutar sua voz juvenil, se impacienta com seu passado. Parece-lhe que quando jovem era extremamente arrogante, ególatra e descentrado com a realidade. Em algumas partes, torna-se até mesmo doloroso Krapp escutar sua voz falando de sua relação com uma mulher que visivelmente não se sentia atraida por ele, mas que ele insistia em tocá-la.

“I said again I thought it was hopeless and no good going on, and she agreed, without opening her eyes. (Pause.) I asked her to look at me and after a few moments--(pause)--after a few moments she did, but the eyes just slits, because of the glare. I bent over her to get them in the shadow and they opened. (Pause. Low.) Let me in. (Pause.) We drifted in among the flags and stuck. The way they went down, sighing, before the stem! (Pause.) I lay down across her with my face in her breasts and my hand on her. We lay there without moving. But under us all moved, and moved us, gently, up and down, and from side to side.”

Ao final, ele, talvez, tentando modificar ou amenizar sua história e seu passado, grava uma nova fita sobre sua experiência em escutar suas narrativas e constatar que seu presente de velhice amarga e carente de esperança poderia talvez ser mudado para a posteridade.

“Pause. Krapp's lips move. No sound.

Past midnight. Never knew such silence. The earth might be uninhabited.

Pause.

Here I end this reel. Box--(pause)--three, spool--(pause)--five. (Pause). Perhaps my best years are gone. When there was a chance of happiness. But I wouldn't want them back. Not with the fire in me now. No, I wouldn't want them back.

Krapp motionless staring before him. The tape runs on in silence.”


Um peça que muito faz pensar nessa coisa de ter um blog...

La grande illusion


Ontem, Stella e eu assitimos o La Grande Illusion, um filme de 1937, dirigido por Jean Renoir. Durante a I Guerra Mundial, dois aviadores franceses, Capitão de Boeldieu e Maréchal, caem prisioneiros na Alemanha. Capitão de Boeldieu é um aristocrata enquanto Maréchal era um mecânico nos tempos de civil. Na prisão, encontram outros prisioneiros de diferentes patentes e estratos sociais, tais como Rosenthal, filho de um banqueiro judeu. Presos, Maréchal e Rosenthal só pensam numa coisa: escapar. Para isso, começam um túnel. No entanto antes de sua conclusão, os dois são transferidos de prisão e pelas barreirsa linguisticas não conseguem comunicar aos novos ocupantes britânicos da cela que havia ali um túnel a ser concluído. Alguns meses depois, reencontram Rosenthal, na prisão de Wintersborn admnistrada pelo Capitão von Rauffenstein (interpretado pelo grande Erich von Stroheim). Wintersborn é uma espécie de Bangu 25 – versão de máxima segurança de prisões de segurança máxima. Mas os três prisioneiros conspiram pela fuga.

O dilema dos prisioneiros passa longe da teoria dos jogos, pois todos os envolvidos são movidos pela Grande Ilusão dos grandes sentimentos. Boeldieu tem um plano que consiste em chamar a atenção dos guardas alemães, para que os outros dois Maréchal e Rosenthal escapem. Uma assembléia é organizada e uma espécie de rebelião, com todos tocando uma espécie de flautas doces improvisadas, começa uma baderna generalizada. Na contagem do presos, Boeldieu, que não está presente, começa chamar atenção no telhado. Os guardas se dirigem ao telhado enquanto Maréchal e Rosenthal escapam por uma corda confeccionada por meses.

A hombridade de Boeldieu não se deve especificamente a uma grandeza de ânimo metafísica acima do humano, ainda que haja uma boa dose de humanismo em sua personalidade. Boeldieu é humano, mas não é isso que o faz ser respeitado por von Rauffenstein. O que o faz ser respeitado por von Rauffenstein é sua natureza aristocrática, que o permitiu frequentar as mesmas mesas no Maxim's em Paris ou cortejando as mesmas mulheres, sorvendo os mesmos licores. Prova disso é que, enquanto todos usam uniformes, e muitas vezes possuem a mesma patente, o que os distingue dos demais militares é sua origem e o uso de diferentes idiomas. Para isso, ambos conversam tanto em alemão, quanto em francês e até mesmo em inglês quando não querem ter suas conversas ouvidas pela malta da caserna. O detalhe do que o Bourdieu chamaria um dos componentes do poder simbólico está aqui, talvez insignificante para muitos, mas está ali, firme e forte. Está na conversa de von Rauffenstein e Boeldieu, quando o primeiro lamenta-se da derrocada final da classe aristocrática – que o historiador Arno Mayer definirá brilhantemente seu grande livro The Persistence of the Old Regime: Europe to the Great War, sustenta que na Europa do século XIX.

Na sequência da fuga de Maréchal e Rosenthal, esse vínculo entre o Capitão von Rauffenstein e Boeldieu torna-se claro e dramático. Von Rauffenstein, vendo a resistência de Boeldieu em se render, é obrigado relutantemente a atirar no amigo.

A partir desse momento, o filme prova que, ao menos em termos de narrativa, é um dos melhores filmes de todos os tempos (com sequências que na minha modesta opinião, iriam influenciar Billy Wilder em Stalag 17 e até mesmo Tarkovsky. Como? Um filme de Guerra, sem sequências de batalhas).

Maréchal e Rosenthal escapam pelos cantões alemães enquanto Boeldieu definha ferido na prisão. Rosenthal, machucado, não consegue acompanhar o ritmo de Maréchal, apesar de persistirem na caminhada pela neve, enfrentando o frio, exaustos, tentando chegar à fronteira da França. Decidem então refigiarem-se numa casa. Chegam a casa de Elsa, uma das viúvas da guerra, que cuida dos dois por alguns dias de véspera de Natal. Em meio ao frio, a incerteza, à solidão de Elsa e sua filha, Rosenthal e Maréchal, então, preparam uma festa de natal para a filha de Elsa. Na mesma noite
Maréchal e Elsa inicia um romance, que duraria pouco, pois prontamente Maréchal e Rosenthal deveriam escapar pela fronteira da Suiça. Apesar de Maréchal prometer que se sobreviver voltará. A cena da despedida é triste, como todas as profundas e sem esperanças despedidas. Ele não olha para trás, pois sabe que se o fizer, não partirá. Na fronteira, ainda são alvejados por soldados alemães, mas que impotentes já não os podem capturar. Enquanto isso o Capitão von Rauffenstein acompanha com unção os últimos momentos de vida de Boeldieu, lamentando-se por ter atirado no amigo. Consternado, quando já não há mais nada a fazer, fecha os olhos de Boeldieu.

Para terminar, umas curiosidades cercam o filme que foi censurado por anos na Bélgica – que tem um aeroporto chamado Chaleroi - e foi terminantemente proibido por Goebbels na Alemanha. Outra curiosidade interessante é quando Elsa mostra as fotos do marido e dos irmãos, mortos nas batalhas de Verdun, Liège, Charleroi, e Tannenberg, exatamente as vitórias mais decisivas da Alemanha na I Guerra. O Jean Renoir escreveu em sua autobiografía, Ma Vie et mes films, que Erich von Stroheim, apesar de austríaco, não falava alemão, e teve de aprender o idioma como um menino de escola para interpretar o oficial de coluna esculhambada, Capitão von Rauffenstein.

Se eu pudesse definir esse filme em poucas palavras diria, sem incorrer em filosofia banca de jornal, que este é um filme que fala da esperança perdida nas relações humanas. Não é nada, não é nada, após assitir o filme, olhe para os lados, ponha a mão na consciência, e me diga, primeiro, se o mundo não está cheio de escrotidão, e segundo se o nome do filme não é perfeito? Stella, de emocionada que ficou, diz que ainda é cedo para falar. Acho que entendo o porquê.

The Brief Wondrous Life of Oscar Wao



Deixe-me ser claro: Um livro que tem como protagonista um adolescente, obeso, mulato, dominicano, onanista, vivendo em Nova Iorque, ruim de jogo comas as mulheres e ainda por cima nerd viciado em ficção científica, tinha tudo para ser um desastre editorial. Brief wondrous life of Oscar Wao de Junot Diaz, não é. Ao contrário. Apesar de não ser uma obra prima, é um livro bem legal. Um livro bacana e cheio de humor, pois o protagonista Oscar carrega consigo uma maldição, o fukú, que afeta a maioria dos dominicanos do sexo macho e que precisam conquistar e ter muitas mulheres para poder conquistar para ter mais mulheres, e assim ter mais mulheres para poder conquistar. O rapaz é simplesmente um fracasso não apenas com as meninas, mas em quase tudo que faz. Uma espécie de inútil na familia. Tão inútil, tão inútil, que, por pena, o deixam em paz.

Ele é um tipo de garoto que treme nas aulas de educação física, não gosta de esportes, mas que usa palavras incrivelmente sofisticadas em conversas com amigos que ele sabe, mal terminarão o estudo secundário - isso o torna estranho até mesmo dentro de seu habitat natural. Uma das máculas em seu curriculum de jovem suburbano de Paterson, New Jersey, é o fato que terminou o High School sem ter nunca tido sexo. Para piorar, até seus amigos mais nerd, tinha conseguido sair com alguma menina. E ele, virgem...

No College, sua irmã Lola e seu namorado Yunior, fazem de tudo para por o pobre Oscar na linha. Pressionam de todo o lado para que ele faça ginástica, coma menos e melhor, se entrose com as meninas.... Yunior é o camarada que finalmente vaticina que Oscar sofre de “a high-level fukú”, ou seja ziquizira da brava e que precisa reverter essa maldita situação que se arrasta em sua família. O problema é que Oscar é um cara tão introspectivo que, ao contrário de lutar, acaba se refugiando na sua solidão e ainda mais em seus livros e em seu universo paralelo.

Mas enganam-se, entretanto, aqueles que pensam ser o livro uma versão latina dos filmes de adolescentes idiotizados nos Colleges. Junot, dá vários cortes na história de Oscar e amplia o foco para as origens da família do jovem, ainda sobre o regime do sanguinário Trujillo.

Junot Diaz contrabalança bem o humor com o drama, especialmente por que por trás da vida dos irmãos Oscar e Lola, há uma mãe latina, autoritária, violenta e compassiva, que aos poucos vai sendo devorada por um câncer e que usa a doença para submeter mais e mais aos filhos – seu único elo com a vida. Aos poucos descobrimos os meandros psicológicos da vida da mãe, Belícia de León, mulher trabalhadora e sempre ausente, e descobrimos mais sobre o pai que nunca apareceu. O pai, que tinha sido torturado pelos algozes de Trujillo enquanto a mãe tinha tivera um caso amoroso justamente com um dos homens próximos de Trujillo, o tal de Gangster, até finalmente ser resgatada por um primo da familia e levada aos Estados Unidos. Descobrimos, então, mesmo que não diretamente, por que Oscar se refugia em seu mundo de ficção científica e sua irmã no universo gótico das letras e da estética do Robert Smith, The Cure - aquele cara esquisitão que nos 80 cantava Boys Don't Cry.

O livro ganhou o Pulitzer de 2008 com uma linguagem que para o nativo americano sem uma noção mínima do espanhol caribenho poderia emperrar a leitura em vários momentos. Poderia, salvo pela habilidade narrativa de Junot. Não deixa de ser surpreendente a subjetividade dessas bancas de jurados - como o Barros apontou bem. E pelo que li pela internet, Junot demorou uns oito anos para terminar o livro. Cheguei ao final do livro com a forte impressão de que o tal do fuku, foi uma sacada genial de Junot Diaz para reinventar uma narrativa romântica. Fuku, uma espécie de revigoramento do mito de Eros e Psique. Ou seja, para ter o amor de Eros, Psique jamais poderia ver seu rosto. Oscar, o protagonista, de certa forma, passando às secas o largo estío da adolescência, sem nunca poder ter visto a cara do amor na sua forma erótica, diga-se de passagem, calejando suas pobres mãos - se é que me faço entender com uso de tão calhorda metáfora - , foi o único que pôde entender de fato que peso os raios do tal de fuku tiveram em sua vida. Enfim, é um livro bem legal, apesar de ser milimetricamente comercial, com todas as questões conceituais que fazem do multi-culturalismo americano babar nas gravatas - e mais importante que tudo, não é uma obra-prima.

Distâncias

A HUMPBACK WHALE

Sábado, 4 de abril de 2009.

O nome Pretória invoca algo poderoso, romano, germânico, quase fascista. A cidade é, na verdade, uma grande fazenda, povoada pelos afrikaners, descendentes dos holandeses que vieram tentar a sorte por aqui a partir do século XVII. Os edifícios são germânicos, imponentes. Não posso afirmar exatamente como era no tempo do apartheid mas hoje, 15 anos depois, posso dizer que a separação racial ainda é total. Posso dizer isso, porque vi, com estes olhos que a terra há de comer, que os brancos têm carrão e os negros pegam ônibus, ou melhor, vans, porque os ônibus demoram muito a passar, sobretudo nos fins de semana. E que se você é branca, sendo ou não afrikaner, tem que pegar táxi. Só que não há táxis. Então você fica com uma sensação de vazio, no meio do caminho.

Nunca parei muito para pensar que eu era branca.

Os negros parecem sentir-se incomodados com uma branquela com cara de afrikanner, mas com um sotaque estranho, que pega a van ou o ônibus deles. Os brancos ficam alarmados com essa gringa com cara de afrikanner que parece querer queimar o filme deles e insiste em demorar a comprar carro próprio. Por que você não pegou um táxi para conhecer o centro da cidade?

- Por que não tem táxi por aqui...

- Então por que você quer conhecer downtown se não há táxi? Espere comprar um carro, ou alguém que leve você. Há muitos estupros na cidade para uma mulher andar sozinha. Onde é que já se viu querer pegar ônibus?

Minha aventura de conhecer o centro da cidade sozinha teve a inestimável ajuda do Lonely Planet e de uma moça de nome Johanna, que trabalha como caixa no supermercado Pick-and-Pay, em frente ao hotel guesthouse de cinco estrelas onde me hospedaram (é melhor você pagar um pouco mais e ficar perto do trabalho, afinal é perigoso andar sozinha à noite, você ainda não tem carro...). Tampouco posso deixar de agradecer ao senhor cowboy “flanelinha branco”, o “car taker”, com cinto e chapéu estilo texanos, que cuida dos carrões dos afrikaners que estacionam em frente ao mall. O car taker também foi útil para que eu aprendesse duas coisas: há brancos classe média baixa por aqui, poucos mas há. E definitivamente não há taxis disponíveis.

- Para ir ao Centro a senhora deve pegar um táxi.

- Aonde?

- Não há nenhum à vista, mas pode ser que apareça algum do outro lado da avenida.
- E se não aparecer nenhum?

Alguns segundos de silêncio.

- Então a senhora vai ter que pegar um ônibus.

Com o estímulo do cowboy cartaker branco afrikaner, dirigi-me à parada de ônibus, onde já estava Johanna, uma negra mais ou menos jovem que trabalhava como caixa no supermercado Pick-and-Pay do outro lado da rua, no bairro mais caro de Pretória. Desconfiada e algo distante, ela me disse que era ali mesmo que passava o ônibus. Tentei ser simpática e fazer algumas perguntas, num inglês não muito claro. Após algum tempo de espera ela me disse que talvez fosse melhor pegar uma van para ir ao centro. Era a primeira vez que ela propunha algo, em nosso curto contato. Até então eu havia perguntado e ela só respondera, respeitosa e desconfiadamente. Entrei com ela na van. Vi que me respeitavam porque eu estava com ela e que fizeram a ela algumas perguntas sobre mim. Perguntei que idioma ela falava com o cobrador. Disse que falava um pouco de afrikaner, mas não muito bem, e tswane. Com o Lonely Planet na mão, perguntei como se lia o nome de Pretória em tswane.

- Tisuana.

Não era difícil de pronunciar. Mostrando o meu mapa de Pretória, perguntei onde ela morava. Não me lembro o nome do local, mas era longe, não estava dentro do mapa.
Passamos por vários bairros caros. Em função das obras para a Copa do Mundo em 2010, a cidade está passando por muitas obras. Ao ver que eu tentava seguir o caminho pelo mapa, Johanna se preocupou em me explicar que estávamos fazendo outros caminhos por conta das obras, mas estávamos indo para o lugar certo, uma linha reta à esquerda no mapa, onde ficava downtown. Vi que ela estava preocupada, cuidando de mim e que a situação era estranha de uma branca na van. Expliquei de onde eu era e ela explicou ao motorista e ao cobrador da van de onde eu era. Paguei a passagem dela, como cortesia. Fiquei com a sensação ruim de que estava comprando os serviços de guia da moça por uma miséria de passagem. Não que ela estivesse me fazendo um favor, ou será que estava me fazendo o favor? Ao chegarmos em Church Square ela desceu comigo, disse que iria tomar outra van para o lugar onde morava. Agradeci, disse que a partir de agora me virava sozinha. Uma última pergunta? Onde está a church, da Church Square? Ela pensou, olhou para os lados, não tinha igreja na Church Square. Fiquei achando que de repente ela havia descido da van só para me acompanhar, ou será que ela teria que trocar de condução mesmo?

Munida do meu guia, andei pelas ruas mais antigas, retíssimas, longas do centro de Pretória. A Church Street, que sai da Church Square, é uma das mais extensas do mundo. Os museus da rua Paul Kruger, líder afrikaner da guerra vermelha – quando mataram 12 mil Zulus e o rio ficou vermelho de sangue– estavam fechados. O antigo Parlamento da Africa do Sul afrikaner estava semi-aberto, a moça que era um misto de segurança e guia me deixou entrar. Perguntei algumas coisas que ela não sabia responder. Disse que aquele edifício fora o primeiro Parlamento da Africa do Sul. Mas a Africa do Sul não existia ainda como país naquela época. As fotos dos parlamentares na paredes são de brancos holandeses afrikaners, sem negros. Mas a guia negra diz que aquele foi o primeiro Parlamento de seu país. Não tinha muita consciência histórica. Tampouco há muitos turistas por ali. Após uma rápida passagem pelo primeiro e segundo andares, pedi para sentar na varanda para ler meu guia e ver para onde teria que me dirigir depois.

- Ok, disse ela, do you have something for me?

Eu não havia pago ingresso para entrar no antigo Parlamento, hoje sede da Prefeitura, mas deveria dar algo a ela. O Lonely Planet não falava nada sobre o velho Parlamento mas dizia quanto custava a entrada para outros museus. Bobeira minha querer visitar algo que não estava indicado no guia, nem era tão bonito assim esse velho Parlamento. A moça tinha feito o favor de abrir o Parlamento que hoje é prefeitura só para mim e eu tinha que pagar a ela alguma coisa. Dei 20 rands, uns dois dólares e meio, e fui atrás dos museus indicados no livro. Queria achar algo que não fosse puro afrikanner. Acabei topando com a Igreja anglicana reformada, que estava em outra rua perto da Church Square. O Lonely Planet explicava: a Igreja havia sido incendidada e reconstruída duas vezes, por isso tinha ido parar em outra rua que não era a Church Square. Fiquei com pena de a Johanna não ter sabido me explicar isso. Dois museus estavam fechados, o African View (parece ser um conjunto de centros culturais interessantes) e o Museu da Polícia (sobre a história do apartheid e da repressão policial). Fechados. Em frente à entrada do Museu da Polícia, com uma sede mais ou menos bonita, havia um montão de caixas de papelão, como se algum mendigo estivesse acampando ali em frente. Tentei entrar por uma lateral mas estava claro que estava fechado. Olhei de novo no guia: from Monday to Saturday, 9pm to 17pm. Eram 2pm ainda. Estranho estar fechado! Seria feriado ainda? Continuei andando tentando achar algo que não fosse só afrikanner. Tomei uma Coca-Cola light, depois um sorvete. Não havia almoçado tampouco tinha fome, devia ser o jet lag.

Fui andando. Não estava lá muito animada com a cidade. Era bonita, praticamente de primeiro mundo, sólida, monumental. Não havia branco algum em volta downtown. Na parte das lojas mais populares da Church Square vi um ou dois, estacionando o carro. São lojas boas, para padrão brasileiro, mas não suficientemente boas para os afrikaners, que têm vida de primeiro mundo. O centrão é Madureira, pra eles. Tentei achar um banheiro, entrei numa loja de roupas, não havia banheiro, saí em seguida. O negro da segurança pediu para olhar minha bolsa. Entrei noutra loja, a mesma coisa. Legal acharem que branco também rouba. Procurei o Mc Donald’s porque lá eu sabia que havia banheiro. A globalização tem lá as suas vantagens.

Continuei andando, tentando seguir o mapa. Pensei que se não conseguisse achar nada legal aberto, pelo menos faria exercício, o sapato não estava machucando, tomava sol, que não estava forte demais, e aprenderia a olhar mapas um pouco mais rápido. Sempre tive um péssimo sentido de orientação. Para saber realmente para onde tinha que ir, eu precisava torcer o livro na direção da rua. Tinha uma visão de mim mesma, nesse dia, especialmente patética: uma branquela no meio de negros, sozinha, em ruas de um centro antigo pouco povoado num dia de sábado, fazendo turismo onde não havia turistas, dando voltas sozinha para posicionar um mapa como se fosse um celular atrás de cobertura, de cabeça pra baixo, de um lado, para outro. Não me perdi muito, porém mais de uma vez desci a rua quando deveria ter subido, e demorei para achar a indicação da Oficina de Turismo que, aliás, foi onde me disseram para visitar o Parlamento, desviando-me do sábio Lonely Planet.

Andando e andando, agora o sapato já começava a machucar um pouco e estava com sede e um pouquinho de fome, cheguei ao Transvaal Museum, que na verdade é um museu antropológico, mas para crianças, com um esqueleto enorme de baleia do lado de fora. Fiquei vendo os diferentes tipos de baleia, a metade do crânio da Mrs. Peels, encontrada nos anos 50 e com mais de 3 milhões de anos de existência, e fiz algumas anotações bizarras:

“Um réptil que retira o seu calor diretamente do sol pode viver só com 10% da comida necessária para um mamífero de tamanho similar. Por essa razão, os répteis podem sobreviver em desertos onde os mamíferos morreriam de fome”.

“Cerca de 80% das calorias que ingerimos são empregadas na manutenção da nossa temperatura corporal em um nível constante”.

“As baleias humpacks produzem os mais longos e variados sons do mundo animal. Pesquisas provaram que essas músicas evoluem com o tempo e todas as baleias na área aprendem as novas seqüências conforme elas vão surgindo. Não se sabe o propósito dessas canções. Essas baleias são muito ativas e podem saltar fora d’ água caindo para trás com um grande splash. A população original de centenas de milhares ficou reduzida a somente 6.000 espécies, devido à caça às baleias.”

Descansei um pouco no museu. Lá só havia crianças e adultos branquinhos alourados de olhos claros, com pais inteligentes e bem-informados. Os negros serviam na portaria, na segurança e no restaurante. Encontrei, sobre uma mesinha, um papel brilhoso com o hino da África do Sul impresso em braille. Ao lado, a biografia do francês Braille, com sua triste história de ter ferido seu próprio olho, aos 3 anos, com uma faca quando queria cortar uma fruta ou algo assim. A ferida infectou e ele ficou cego. Ia para a escola com a irmã, mas como não sabia ler nem escrever, tinha que aprender tudo de cor. Ainda assim era o melhor aluno do colégio. Os pais resolveram mandá-lo para o único colégio de cegos da França. Lá, travou contato com um método militar de leitura cujo objetivo era permitir que os soldados lessem no escuro. Braille aperfeiçoou o método, reduziu-o, se não me engano, a 26 letras e passou a dar aula na escola onde estudava. Com 24 anos adquriu tuberculose – comum naqueles tempos, sobretudo numa escola superlotada, com gentes de todo o país-, e morreu muito cedo.

Fiquei pensando na beleza do hino da Africa do Sul e que o texto do hino em Braille ficaria bonito num quadro emoldurado, como lembrança não sei muito bem do quê. Fiquei pensando que talvez Braille fosse um espírito iluminado que tivesse vindo a este mundo somente para inventar o método de leitura. Fez isso e foi embora. Viver mais para quê, se já tinha cumprido sua missão?

Não sei porque fiz anotações sobre baleias. Talvez porque nunca tenha visto uma. Talvez porque espero ver alguma dia uma. Porque são impressionantes. Porque estava cansada de andar e precisava escrever alguma coisa. Porque as baleias não são afrikanners. Então tomei nota sobre as baleias.



Nota. Tenho muitas vezes a certeza de que sou um cabotino. Mas tenho bons amigos dos quais me orgulho. Estes, vez por outra, me escrevem. Ao mesmo tempo que isso me salva, revela minha personalidade falporria e biltre ao publicar sem atorização suas cartas aqui. Esta por exemplo, foi recebida hoje. Vem de Pretória, Africa do Sul.

Entre Portinari e Spellbound



Mister Buddwing, interpretado pelo canastrão James Garner, evoca o mesmo tema da perda da memória que Gregory Peck imprimiu, com muito mais força e talento, em Spellbound. Mister Buddwing desperta certa manhã num banco de praça, no meio do Central Park. Acorda, olha para o céu e percebe que não tem idéia quem é. Está bem vestido, portanto não é um mendigo. Não está de ressaca, portanto não é manguaça. Simplesmente, o homem acorda sem memória. Encontra em seu bolso algumas, diríamos, drageas e um número de telefone. Na mão direita um anel com as iniciais “de G.V.” Vaga desorientado pelas ruas de Manhattan em meio a uma trilha sonora povoada de jazz. Perdido, cria um nome Sam Buddwing inspirado nas asas de um avião e na cerveja, agora brasileira (!), Budweiser. Durante todo o filme, buscando sua identidade, Mister Buddwing acaba encontrando vários tipos esquisitos que alimentam um certo voyeurismo de princípio do espectador. Enfim, o filme é um melodrama meio vulgar sobre um cara com amnésia em meio a uma sociedade mediatizada e massificada, que nem valeria a nota, mas veio a calhar exatamente na mesma noite que terminei um livrinho interessante de Godofredo de Oliveira Neto chamado O Menino Oculto.

Um livrinho interessante e experimental na linguagem, na trama e na forma de narrar. De forma leve, mas sem perder o pulso da linguagem, concilía uma estrutura narrativa de planos múltiplos, mas sem uma cronologia muito bem definida - o que por vezes acaba confundindo o leitor. Mas também não é pra menos... O protagonista Aimoré Seixas é um português que ainda jovem foi morar em Santa Catarina. Aimoré é um pintor de quadros. Mais exatamente: um falsificador de quadros perturbado por delírios e ziquiziras mentais. Com uma suposta inteligência acima da média é capaz de só numa olhadela, absorver os detalhes e copiar telas de grandes pintores brasileiros. Meio que por acaso, acaba se envolvendo com negociantes de quadros falsos, que lhe encomendam uma cópia do Menino Morto, de Portinari. Além dos dotes visuais e perceptivos o cara, que usa as guias de Clio e deve ter batido cabeça para Mnemosine, é capaz de recitar trechos inteiros de autores clássicos do cânone brasileiro. Porém, entretanto, todavia, Aimoré tem um problema. Ele perde a memória num acidente e passa a viver o dilema de identidade... a mesma perda de identidade presente em famosos duplos literários como os de Borges em Borges; como Goliádkin no Duplo ou Pávlovitch em O Eterno Marido Dostoievski; como Mr. Blank nas Viagens do Scriptorium de Paul Auster; ou como recentemente o Indigitado do Cony.

A trama toda se passa numa espécie de hospital, que por vezes se assemelha a um hospital psiquiátrico, onde Aimoré é interrogado - diga-se de passagem, sem reconhecer seus interrogadores - e grava suas inúmeras versões em fitas. No depoimento a um tal de professor Albano, percebe-se certa excêntricidades em Aimoré, que lá pelas tantas já não se sabe se são decorrentes de sua amnésia ou de sua malandragem narrativa, pois o protagonista precisa acima de tudo encobrir o fato de que, malandramente falando, copiou, o mesmo quadro de Portinari para duas quadrilhas de negociantes de obras falsas, embolsando as respectivas granas e pinturas importadas do Doutor Dárdano e do Doutor Orestes.

Aimoré passa a ser ameaçado pelas quadrilhas. Uma delas tenta, usando a cópia do Menino Morto, forjar a documentação referente ao quadro num escritório de Advogados em Boston, pondo em dúvida a autenticidade da obra exposta no Museu de São Paulo. Nesse meio tempo, resistindo à perda de memória e lutando para encontrar sua prórpia identidade, Aimoré deixa a obra encomendada inacabada, gerando toda a procura do livro... pelo quadro, pela identidade, pela memória, pela Ana Perena....

Num fluxo desordenado, nessa procura aleatória, com níveis de memória que dariam um nó na cabecinha do pobre William James, há espaços onde Aimoré preenche com sua consciência seletiva aquilo que a tal memória secundária deixou à deriva. Nesse caminho, Aimoré remonta 3 eixos. Primeiro, a estória do cego Baltazar, na baía da Babitonga, em Santa Catarina, que o conheceu durante a juventude apresentando-lhe um mundo mitológico e cheio de lorotas. Segundo, o encontro com um travesti, a quem assassina violentamente. Terceiro e talvez mais importante na retomada da memória, a relação digamos erótico-horizontal com Ana Perena, cujo desaparecimento o transtorna.

Certamente há uma linha que separa a loucura da sanidade nos depoimentos de Aimoré. Mas ao final do livro percebe-se que, de perto, o cara não é tão anormal e tampouco tão pacada assim. Ele, mesmo que por vezes se perca em suas versões, não apenas as cria de maneira intencional, como nos faz viajar nelas. E nos faz viajar de maneira que tão céticos e perdidos quanto o Albano, que grava os depoimentos, nos quedamos perdidos como leitores, sem saber que desvio tomamos. Pós-moderno? Meio pós-moderno, sim, se essa é a pergunta. Godofredo Neto usa e abusa tanto dos meandros do fluxo de consciência na forma de narrar quanto da cronologia aleatória, da linguagem coloquial e sem meneios, e do sexo (componente mercadológico fundamental para reconquistar a classe média leitora iletrada), pois é disso que o povo gosta. Foi sim uma dupla jogada crítica de Godofredo Neto, pois nas palavras de Aimoré, que se recusa a definir seu trabalho como cópia - mas sim uma recriação -, Godofredo, criando um protagonista, imerso em seu individualismo, assumindo uma personalidade esquizofrênica, rejeitando a definição de falsário ao introduzir pequenas modificações em suas telas, cria paradigmas para a própria auto-afirmação do artista (pintor,escultor ou escritor) num mundo onde Harold Bloom e o pós-modernismo decretaram a falência da originalidade.

Ou seja, John Ballantine tem tudo que Mister Buddwing tem, mas o papel de Aimoré no papel é melhor que o de ambos na telona. Fazer o quê?

Stella

Astrophel and Stella

Peace, I thinke that some giue eare;
Come no more, least I get anger.
Blisse, I will my blisse forbeare;
Fearing, sweete, you to endanger;
But my soule shall harbour there.

Philip Sidney