Heinrich Karl Bukowski

Escrita

frequentemente é a única
coisa
entre você e a
impossibilidade.
nem um trago,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
se igualar.
nada pode salvar
você
exceto
a escrita.
ela evita que as paredes
desabem.
que as hordas 
se aproximem.
ela explode as 
trevas.
a escrita é tua

decisiva
psiquiatra,
A mais gentil
deusa de todos os
deuses.
a escrita encurrala a
morte.
não conhece a
desistência.
a escrita
ri de
si mesma,
na dor.
é a última
expectativa,
a última
explicação.
e isso
é o que
é.

Extraído de blank gun silencer - 1991


Writing 

often it is the only
thing
between you and
impossibility.
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.

from blank gun silencer - 1991



Os Riots não roem a roupa do rei


George Perry Floyd Jr. foi um homem negro americano assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 pelo policial branco Derek Chauvin, que o imobilizou e ajoelhou-se em seu pescoço durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Após sua morte, protestos contra o racismo começaram a acontecer pelos Estados Unidos. Ironia: Floyd supostamente usou uma nota falsificada de vinte dólares numa loja de conveniências para comprar cigarros. Ou seja, como o próprio irmão disse no funeral, assassinado por uma nota de 20 dólares.

 

- vinte merréis, um Jackson. pqp.  

 

O fato midiático me levou, nos levou, a refletir sobre temas como racismo violência policial, o preconceito, a hipocrisia…

 

Não sei se o racismo é igual em todo o lado, da mesma forma que não sei se o racismo é diferente do Brasil para os Estados Unidos. Isso é um assunto complexo e não está, como diria o historiador Marc Bloch, na epiderme dos fatos. Na literatura acadêmica há aos montes semelhanças e diferenças do preconceito nos dois países, que dividem o mesmo continente do Novo Mundo, e para onde foram importados projetos civilizatórios junto a homens, mulheres e crianças, amarrados, humilhados, por três séculos em porões de navios, vendidos como carne, por cinco séculos tratados como carne, em condições inimaginavelmente sub-humanas, por três séculos. Mas não vamos pensar nisso agora, para não irmos ficando putinhos logo de cara…

 

- sim estou puto sim, foda-se.

 

Eu só sei que, objetivamente falando, historiadores e sociólogos querem me fazer crer que o preconceito e o seu combate, tem matizes diferentes no Brasil e nos Estados Unidos.

 

Quando, no Brasil, a polícia na rua flagra um assalto, e por acaso um negro e um branco saem correndo, o mais certo é que uma voz de fantasmas e ausências  históricas faça com que o policial, naquele momento específico não pense duas vezes e detenha o homem negro, já  que para o policial o mais provável é que o negro seja o bandido. Por que naquele momento específico, o policial com seu alto nível discernimento entende que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e, portanto, são mais inclinados ao crime. Óbvio!

 

Quando, nos Estados Unidos os negros não podiam sentar no mesmo banco do ônibus que que um branco, nem usar os mesmos banheiros; Ou, quando a KKK dinamitava casas de pessoas negras ainda na década de 1950; era como se estivessem evidenciando que um negro era de uma raça inferior. Correto?

 

 - Óbvio é o cacete. Correto porra nenhuma!

 

Mas os tempos mudaram, e provavelmente, George Perry Floyd Jr. preencheu algum formulário escolar, empregatício perguntando a que “raça” ele se declarava pertencer. O menino João Pedro Mattos Pinto, morto em operação policial numa comunidade em São Gonçalo, ou mesmo Marielle Franco, se tivessem tido o direito de viver, talvez jamais preencheriam um formulário similar que faz parte da condição burocrática central da cidadania nos Estados Unidos, onde historicamente se praticou uma exclusão seletiva que eliminava da equação índios, escravos e imigrantes latinos. No Brasil isso não tem não, aqui é diferente!

 

- vdd!

 

Isso quase torna nosso racismo uma maneira de convívio democrática, não? Pois afinal, a união de maleáveis conformados escravos com a benevolência do mito do bom senhor tornou-nos diferentes dos irmãos do Norte. E vou mais além, hodiernamente, se um ser humano negro brasileiro estudar, saber mais, e deixar de ser pobre, seus problemas estão todos resolvidos. Ou seja, o racismo deixa de ser um racismo de segregação como aqui (falo de Los Angeles) e passa a ser apenas um racismo social como lá (no Brasil). E tudo fica mais fácil. Então, para que riots ao sul do Equador?  Ora bolas!

 

 - O problema é que o buraco é muito muito muito mais embaixo…

 

O racismo moreno brasileiro é estrutural e cheio de malemolência: separa-se seres humanos em guetos - o bairro, favelas, quebradas - sem água, sem luz, sem áreas de lazer, com educação de baixa qualidade e a inconveniência do convívio é separado por uma questão de classe. Nesses lugares, geralmente periféricos, muitas vezes na mesma cidade, periféricos por segregados, tornam-se convenientes cidades dormitório, onde uma classe trabalhadora mora e tem de conviver com a ausência do Estado.

 

- Tudo separado… sei…

 

A resistência a esse racismo estrutural, no âmbito das lutas institucionais, conseguiu recentemente inserir com louvor jovens em universidades por sistemas de cotas raciais e sociais. Conseguiu avançar com Art. 3, inciso XLI da Constituição, e com a lei Caó de nº 7.716. Mas isso tudo num andar de cima onde tudo é restritivamente igualitário. Entretanto, nos andares mais abaixo, nos espaços periféricos, onde tudo é includentemente desigual, gravita entre o silêncio e a indiferença o fato de que O Brasil ser um país mundialmente reconhecido pela violência policial. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.094 pessoas negras. No Brasil, a polícia teve participação na morte de 5.804. Apenas um detalhe aqui, Marielle Franco não faz parte dessa estatística, por que foi morta em 14 de março de 2018, quando 6160 pessoas foram assassinadas pela polícia. Quantos desses eram pessoas negras? Pois é… por ai você vai vendo.

 

A eficácia desses números não se mede pela sua capacidade de serem capturadas pelo discurso midiático. Afinal, filmar a violência policial hoje em dia é muito fácil. Todos nós temos um smartphone no bolso. Mas estamos falando de racismo e preconceito e não dos efeitos extremos dele, por favor, não percam o fio da meada. O buraco é muito muito muito mais embaixo, lembra?  

 

Este são fenômenos cujos efeitos se medem no longo prazo, e não podemos esquecer que quando o tempo transforma toda a lembrança em cinza, e todas as sutilezas em pó sobre os códices, esses números acumulados em pilhas de corpos se ligam à natureza estrutural desse nosso racismo, que muitos dizem ser apenas de classe.

 

O Racismo opera no nível do preconceito, que no Brasil, como dito, está tipificado no Código Penal. Só que no Brasil isso também está numa camada mental, no não-dito. Sua absorção, muitas vezes involuntária, nem sequer gera discursos compreensíveis, mas uma certa metafísica da repetição de dinâmicas bem safadamente ocultas. A dinâmica do racismo no Brasil, pelos menos para mim tem a ver com a introjecção de uma certa ideia de relevamento, de consentimento em situações limite, de um acordo de conveniências que fica bem evidente quando calar sob determinadas situações, em deixar pra lá determinadas saias justas de frases escrotas e piadas infames… talvez essa safadeza oculta esteja naquela ideia que Caetano Veloso definiu bem como o vil, abjeto e torpe valor necessário do ato hipócrita.

 

O geógrafo Milton Santos dizia que a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

 

- Eu também gosto do Milton Santos…

 

Claro que a gente – a gente aqui, me refiro a pessoas como nós - sempre pensa numa sociedade mais humana, mais decente, mais democrática e arejada. O problema, aquele, do buraco mais embaixo, é que a nossa sociedade é uma sociedade fodida, é uma sociedade includentemente desigual no andar de baixo, onde por acaso estão mais negros e pardos que brancos,  e isso não deixa de conter uma certa ironia azeda nessa nossa monstruosa metafísica da repetição, vazia e individualista, que fica evidente quando cidadãos negros e pardos ascendem socialmente: e só aí passam a sentir na pele, as cenas dos próximos capítulos.

 

Nota: não sei se o leitor reparou, mas este texto contem dor e ironia nesse diálogo.

 

Ana Cristina Cesar

Rádio Batuta disponibilizou  alguns áudios de Ana Cristina Cesar. A poeta falou a alunos de uma faculdade do Rio de Janeiro seis meses antes de morrer, em 1983.




morTe dO leiTeiro

Morte do leiteiro 

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro
.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei
.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade - A rosa do povo