Contentemo-nos com a Ilusão da Semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças,
Coices e patadas de gente
Amadores da literatura observam com certa nostalgia a decadência atual do conto, devido provavelmente, pelo menos em parte, ao abuso do coloquial, à frouxidão na construção, às delongas em detalhes inorgânicos, comprometendo por um lado a poderosa visão da realidade e por outro a propria conclusão de uma estoria decentemente contada. eles eram muitos cavalos é um livro com histórias contadas - e bem contadas - em estilo absolutamente fragmetário e inexorávelmente real. Para muitos afundando ainda mais a narrativa moderna breve nessa miríade de decadência. Diga-se de passagem, quando o li há anos atrás, eu que sempre torci um pouco o nariz para a narrativa contemporânea, fiquei surpreso. Tudo se passa num recorte de tempo definido. Tudo se passa num só dia. Por que 9 de maio de 2000? Uma terça-feira? Não dá para saber exatamente o porquê. Poderia ter algo de apocalíptico - mas Ruffato, após o colofão, cita apenas o Salmo 82! Apesar de interagirem no mesmo tempo e no mesmo espaço geográfico, a cidade de São Paulo, as vidas desses personagens não se cruzam, pois vivem em tal estado de isolamento que passam a ser anônimos uns para os outros. Tratam-se de vendedores ambulantes esporrentos, pastores evangélicos histéricos, pedintes sem esperança, motoristas de táxi esquizofênicos, esposas infelizes, idosos redundantemente sem esperança, maridos redundantemente esmagados pelo quotidiano, assaltantes patéticos sem o mínimo poder de organização, ricos e ricaços, e alguma classe-média.... As estórias independentes reforçam no cenário paulistano, uma atmosfera caótica cercada por orações religiosas com ou sem pregação, cenas de amor e violência com engarrafamentos, ódio e paixão com ou sem amor. Os personagens são tão sombrios, por viverem nas sombras, ou seriam marginais (?), por viverem à margem, que aparecem e desaparecem como se num passe de magia. Enfim, no decorrer da leitura, percebemos que tais vidas não se cruzam apenas por um triz. Apenas por um triz. Pois,em vários momentos os destinos trágicos bem que poderiam se cruzar na bala perdida de um tiroteio, na passagem de um taxista falastrão, tão centrado em sua família, passando despercebido pelo local de um crime e associar todos os destinos, ou no destino traçado por uma folha de horóspcopo de jornal. Essa inovação inventiva, foi-me surpreendente na literatura brasileira, pois Ruffato talvez tenha ousado, à sua maneira, em construir uma narrativa que se aproximasse do Rayuela de Cortazar. Tudo bem, pode ser exagero. Mas, afinal, quem há de me impor a leitura da estória de maneira linear?
Mais ainda, quem vai me tirar o direito de, como leitor, eu, associar a Neide Nascimento, do classificado sentimental de jornal da estória 42, com a esposa insatisfeita do marido Foulcaultiano da estória numero 10?
Para quem é chegado na teoria, Ruffato, na prática, com sua fina ironia, ri de todos. Ao todo são 69 pequenas narrativas que por falta de termo melhor chamo, à guisa de um papo mais cabeça, pós-modernas, pois para cada uma delas se abre um universo de conexões sem soluções aparentes. Tudo é problemático, pois tudo e todos perecem já no momento que vem a vida. Ruffato propositalmente deixa tudo em suspenso nessa espécie de darwinismo social. Ou seja: uma proposta de romance que não é romance, uma proposta de conto que não é conto. Como se a única coisa sólida, ou ao menos tangível, como numa pintura de Jackson Pollock, fosse seu fundo a ser preenchido por trajetórias. O pano de fundo, como uma cidade vista de cima, onde as vidas são apenas tinta mosqueada traçando trajetórias variáveis e indefinidas na cidade. Todas as estórias se passam na moldura dada por São Paulo, num intervalo de poucas horas. E mais. O autor, nessa espécie de radiografia dos movimentos e ações dos indivíduos numa megalópole, nos permite apenas acessar contrastes.
Essa fragmentação e falta de precisão está marcada na escrita e na própria diagramação do texto. Ao passo que os narradores formam um mosaico textual composto por cartas, orações, cardápios, previsões meteorológicas, lista de livros, anúncios de classificados; os diálogos, pensamentos, digressões, descrições feitas pelo sujeito oculto, ou pelo narrador onisciente ou não, são separadas pelos diferentes formatos de fontes do Windows. Se isso já não é um problema suficiente, imagine!
Mais difícil ainda é perceber as influências de Ruffato para esse que seria um de seus primeiros livros - com chancela do Sergio Sant’Anna, diga-se de pasagem. Cumpre notar que é fruto de seu tempo.
Na literatura, não sei. Talvez, como já disse, Cortazar. Talvez o próprio Sant’Anna de Notas de Manfredo Rangel, repórter - um livro diga-se de passagem tão interessante e inovador quanto o eles eram muito cavalos. Parece que de tudo, há um pouco alí. No Cinema, a fórmula fragmentária já tinha sido tentada meio que de passagem por Haneke em seu 71 Fragments of a Chronology of Chance em 1994, e por David Cronemberg em Crash em 1996. Talvez até o 21 Gramas ou o próprio Babel em escala planetária de Iñarritu. Mas os últimos vieram depois de eles eram muitos cavalos! Portanto não se pode falar em influência, nesse caso. Seja como for, o livro de Ruffato, fruto de seu tempo, certamente foi inovador e um divisor de àguas na modorrenta literatura brasileira do final do anos 90. Seja como for, a multiplicidade de vozes, com influência ou sem influência do cinema, é o ponto forte da narrativa. O leitor passa a ser um participante visual de cada breve vida, em cada experiência ali exposta como num flash, como num fotograma; pois o leitor, dotado de uma grande câmera, acompanha passo-a-passo os errantes dessa narrativa. Exagerando: tal como a fotografia expressa a materialização da morte - que Barthes expõe em seu Câmera Clara -, as vidas desse personagens, também poderiam ser reproduzidas mecanicamente numa foto sem a interferência humana. Assim como Barthes procura mostrar que sem a intervenção pessoal e subjetiva do observador a fotografia ficaria limitada ao registro documental, Ruffato desvela que em sua narrativa há também essa manifestação interventora e inexorável no real: no fundo, em todas as estórias há um certificado de presença, pois Ruffato coloca todas essas fotos juntas, embaralha-as, deixando que disputem a atenção do leitor. Presentes enquanto duram, tal como os cavalos corredores no Jóquei.
Música do dia. Is you is or is you ain't my baby? Anita O'Day
Mais ainda, quem vai me tirar o direito de, como leitor, eu, associar a Neide Nascimento, do classificado sentimental de jornal da estória 42, com a esposa insatisfeita do marido Foulcaultiano da estória numero 10?
Para quem é chegado na teoria, Ruffato, na prática, com sua fina ironia, ri de todos. Ao todo são 69 pequenas narrativas que por falta de termo melhor chamo, à guisa de um papo mais cabeça, pós-modernas, pois para cada uma delas se abre um universo de conexões sem soluções aparentes. Tudo é problemático, pois tudo e todos perecem já no momento que vem a vida. Ruffato propositalmente deixa tudo em suspenso nessa espécie de darwinismo social. Ou seja: uma proposta de romance que não é romance, uma proposta de conto que não é conto. Como se a única coisa sólida, ou ao menos tangível, como numa pintura de Jackson Pollock, fosse seu fundo a ser preenchido por trajetórias. O pano de fundo, como uma cidade vista de cima, onde as vidas são apenas tinta mosqueada traçando trajetórias variáveis e indefinidas na cidade. Todas as estórias se passam na moldura dada por São Paulo, num intervalo de poucas horas. E mais. O autor, nessa espécie de radiografia dos movimentos e ações dos indivíduos numa megalópole, nos permite apenas acessar contrastes.
Essa fragmentação e falta de precisão está marcada na escrita e na própria diagramação do texto. Ao passo que os narradores formam um mosaico textual composto por cartas, orações, cardápios, previsões meteorológicas, lista de livros, anúncios de classificados; os diálogos, pensamentos, digressões, descrições feitas pelo sujeito oculto, ou pelo narrador onisciente ou não, são separadas pelos diferentes formatos de fontes do Windows. Se isso já não é um problema suficiente, imagine!
Mais difícil ainda é perceber as influências de Ruffato para esse que seria um de seus primeiros livros - com chancela do Sergio Sant’Anna, diga-se de pasagem. Cumpre notar que é fruto de seu tempo.
Na literatura, não sei. Talvez, como já disse, Cortazar. Talvez o próprio Sant’Anna de Notas de Manfredo Rangel, repórter - um livro diga-se de passagem tão interessante e inovador quanto o eles eram muito cavalos. Parece que de tudo, há um pouco alí. No Cinema, a fórmula fragmentária já tinha sido tentada meio que de passagem por Haneke em seu 71 Fragments of a Chronology of Chance em 1994, e por David Cronemberg em Crash em 1996. Talvez até o 21 Gramas ou o próprio Babel em escala planetária de Iñarritu. Mas os últimos vieram depois de eles eram muitos cavalos! Portanto não se pode falar em influência, nesse caso. Seja como for, o livro de Ruffato, fruto de seu tempo, certamente foi inovador e um divisor de àguas na modorrenta literatura brasileira do final do anos 90. Seja como for, a multiplicidade de vozes, com influência ou sem influência do cinema, é o ponto forte da narrativa. O leitor passa a ser um participante visual de cada breve vida, em cada experiência ali exposta como num flash, como num fotograma; pois o leitor, dotado de uma grande câmera, acompanha passo-a-passo os errantes dessa narrativa. Exagerando: tal como a fotografia expressa a materialização da morte - que Barthes expõe em seu Câmera Clara -, as vidas desse personagens, também poderiam ser reproduzidas mecanicamente numa foto sem a interferência humana. Assim como Barthes procura mostrar que sem a intervenção pessoal e subjetiva do observador a fotografia ficaria limitada ao registro documental, Ruffato desvela que em sua narrativa há também essa manifestação interventora e inexorável no real: no fundo, em todas as estórias há um certificado de presença, pois Ruffato coloca todas essas fotos juntas, embaralha-as, deixando que disputem a atenção do leitor. Presentes enquanto duram, tal como os cavalos corredores no Jóquei.
Música do dia. Is you is or is you ain't my baby? Anita O'Day
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