O Balzaquiano Flaubert: 140 anos de pura malemolência


Ernest Pinard foi um ministro do Interior francês, facilmente olvidável, a não ser por alguns detalhes de sua biografia. Nivelados por baixo, Pinard e Sérgio Moro guardam alguma semelhança. Ambos tinham ambição maior que seus estômagos, e ambos tiveram carreiras meteóricas.


Pinard decidiu ingressar no judiciário e, em maio de 1849, sendo nomeado procurador adjunto em Tonnerre. Em dezembro de 1851, ele se tornou procurador adjunto em Troyes e, em dezembro de 1852, em Reims. Em outubro de 1853, foi nomeado procurador adjunto no Tribunal do Sena em Paris onde aí sim começou uma espécie de Lava Jato dos bons costumes franceses.

 

Apenas para contextualizar, Em 1848 cai a Monarquia Francesa e o governo provisório organiza um processo político eleitoral, sendo eleito Luis Bonaparte, Sobrinho de Napoleão,  que vence as eleições por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos conferidos ao General Cavaignac – uma espécie de Haddad das bandas de lá. Em dezembro de 1851 Luis Bonaparte decreta o estado de sítio e lança o terror em Paris e outras cidades francesas. E é justamente aqui que Marx escreve "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte", artigo encomendado e publicado pela revista alemã Die Revolution.


Com a faca e o queijo na mão, Pinard não pensou duas vezes.  Lascou de processar todo mundo. De repente quis moralizar tudo. Em 1857, foi a vez de Baudelaire, por causa dos poemas de Flores do Mal; depois,  Eugénie Sue por seu Os Mistérios do Povo,  e por fim, Gustave Flaubert por Madame Bovary. 



Contra Baudelaire, ainda conseguiu banir 7 poemas do conjunto do Flores do Mal, por temática, ora veja você, lésbica (!) e sadomasoquista (!). Diga-se de passagem, a proibição permaneceu até 1948!  


Já contra Flaubert, o distinto se deu mal. Flaubert não só foi absolvido, como o processo  rendeu uma excelente publicidade à sua preciosa história de adultério, decadência e miséria provinciana que enredava seu Madame Bovary.


Pinard bem podia ser um personagem secundário de Flaubert, em A Educação Sentimental  -  escrito poucos anos depois do processo levantado por ele em sua opération lava jatô pessoal.  Eu particularmente desconfio, se me permitem, dada a licença poética, que  Jacques Arnoux tem algo dos cornos cuspidos e escarrados Ernest Pinard. Mas se  nem Lukács, nem Bourdieu falaram nada dos cornos que menino Moreau colocou na testa de Sr. Arnoux, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 


O fato é que em Pinard passou para a história com justiça poética: como apenas uma anedota verborrágica e censória. E nos anos 1980, ainda que alguns intelectuais tentassem imputar em Flaubert vários delitos de sexismo, pensamento antidemocrático, misantropia, abuso de menores e algumas  outras vigarices, Flaubert permaneceu um gênio da descrição, do mal e da minúcia. Para mim, A Educação Sentimental, mais até que Madame Bovary, é um clássico de formação para um jovem. Ele tem um força incontida, indomesticável, que busca o absurdo e a beleza em cada descrição dos meandros psicológicos dos personagens.


Este mês se celebra 140 anos de morte de Flaubert. Flaubert continua Flaubert, e o malandro Ernest Pinard, não passou de um burocrata da Segunda República francesa. Mas ainda assim, conseguiu cavar uma vaguinha como procurador geral francês em Douai,e terminar a vida com uma aposentadoria legal … Moro, muito mais perigoso que Pinard, ainda está aguardando o desfecho do nosso 18 Brumário, pra ver se ele também consegue beliscar alguma daquelas prebendas prometidas lá atrás, durante o golpe do impeachment, na negociação com MPF da República das Araucárias, jogada no ventilador pelo The Intercept,  no episódio da prisão de Lula nas vésperas da eleição, impedindo sua candidatura… enfim, quem sou eu para ficar comentando essas coisas sobre a vida alheia? 

O aprendiz




Primeiro construí na areia, depois na rocha,
Quando a rocha ruiu,
Não construí mais nada.
Depois construí muitas vezes de novo
Ora na areia, ora na rocha, porém
Eu aprendi.

Aqueles a quem confiei a carta
Jogaram-na fora. Os outros, que nem notei,
A mim a trouxeram de volta.
Então aprendi.

O que eu mandei fazer não foi realizado,
Mas quando cheguei ao lugar
Vi que seria errado. O certo
Foi feito.
Disso eu aprendi.

As cicatrizes doem
No tempo frio.
Mas eu digo sempre: só o túmulo
Não me ensina mais nada.

 

 

 

BRECHT, Bertolt. "Der Lernende"/"O aprendiz". Trad. de Wira Selanski. In: SELANSKI, Wira (org.). Fonte: Antologia da lírica alemã. Rio de Janeiro: Editora Velha Lapa, 1999.

O nome Aldir Blanc significa algo para você ?

Eu apenas queria dizer duas ou três coisas sobre o Aldir Blanc.



Primeiro, que o dia de hoje está sendo tão triste e que talvez seria melhor não dizer, nem escrever, nada. Talvez fosse melhor guardar uma espécie de contrição por esse pesar, por essa pena, por esse vento frio encanado em minh'alma, por esse sentimento de esmagamento que estou sentido hoje. 



Aldir Blanc - Rubem Fonseca também, à sua maneira - foi muito importante para mim. Cresci no subúrbio, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Fui leitor assíduo do cronista, com quem dei muitas risadas. Seus personagens eram criaturas quase que à clef. Era possível ver aquelas pessoas em qualquer lugar. Era quase possível falar com aquelas pessoas. Era possível… Bastava andar pelas ruas, entrar num ônibus, num boteco sozinho e pedir uma Brahma, que logo apareceriam:  o marido da Medéia de Vila Isabel; o Leocácio, com sua cara de próspero e pinta de quem  sempre faturava fácil; a bunda da boazuda passando na da porta da tinturaria; o Waldyr com seu baralho indo para o velório do tio do Gouveia, na rua Paula Matos - onde por acaso eu nasci. Até caminhando pela Praça XV à noite, era possível ver a Candice Bergen em frente à carrocinha de Angu do Gomes; na porta de um cinema era possível ver o Ambrósio, lutando contra o Capota Arriada, como um verdadeiro Don Juan, guerreando pelo coração de Yolanda enquanto solta a letra no ouvido da mulata. 



Segundo, eu podia dizer aqui que o Aldir é a cara do Brasil! Mas não é… o letrista pode ser… O cronista não. O cronista é nosso! É do Rio de Janeiro, de Cabucçu, Cordovil, Caxambi, Madureira, Olaria e Bangú, Cascadura, Agua Santa, Pari, e ousaria dizer mais de Nova Iguaçu que de Ipanema. Apenas nós, cidadãos cariocas, podemos ver o Leocádio, o Waldyr, o Francelino, a Dona Otília, o seu Joaquim do taxi, a irmã solteira do Sardinha… só nós podemos vê-los…  



O letrista Aldir Blanc, é outra História. É o do Linha de Passe, O letrista Aldir Blanc musicou a abertura política lembrando tanta gente que partiu num rabo de foguete, sem saber que o Bêbado e o Equilibrista, lançado em 1979 - ano em que Figueiredo sancionou a lei que concedia Anistia aos cassados pelo regime militar - seria três anos depois, o hino das Diretas Já. Na poesia, na arte, em geral, as coisas são assim, meio por acaso. Por isso deve haver mais arte para que depois de tudo aquilo que sobra, depois de todas as mentiras que vivemos nesse país escroto ao qual pertencemos, tenhamos a verdade como uma síntese dialética. Essa verdade:



O Brazil não conhece o Brasil

O Brasil nunca foi ao Brazil



O Brazil que o Aldir musicou no fim dos anos 70 tinha esses defeitos, mas era um Brasil de esperança. Mesmo, nós, sabendo que sempre foi um país de elites tacanhas, rentistas, aduladoras da autoridade, do kiss up kick down, do preço da cura e da justiça, da injustiça, do golpe, do golpe baixo, da barganha, da política do café com leite, do rent-seeking, do racismo, do almirante negro, do sebastianismo, dos partidos políticos solventes, das eleições roubadas, dos juros caóticos, do mercado selvagem, da opressão ao pobre, do câmbio, e por aí vai… não pensávamos que iríamos chegar ao ponto em que chegamos com o juiz ladrão de braços dados com as trevas, com a tortura louvada pelo chefe inominável do executivo, com a verdade manchada, com a doença terrível, com o sádico e o cruel andando lado a lado de mãos dadas com neo-pentecostais. Não pensávamos lá atrás, que o Brazil poderia matar o Brasil. Achávamos que era apenas uma mera questão de tempo, e que tudo se ajeitaria, e que a Democracia traria a vida, a luz, um pouco de Humanismo, com igualdade… para um país tão fodidamente desigual. Nos enganamos. O Brazil matou sim… 




Entendeu? Aldir Blanc morreu hoje. Ele não foi ali comprar um cigarro. Ele não volta nunca mais. 



Aldir Blanc morreu hoje, justo hoje quando está dificílimo ter esperança no futuro. Pode ser sintomático o que estou pensando agora... pode ser vocacional e cruelmente intencional o que fizeram com o Brasil nesse últimos 5 anos…  mas o fato de Aldir ter atravessado o espelho hoje, é uma metáfora cruel do que fizemos com nós de nós, de nossa História. Eu estou imaginando que dentro de cem anos, os historiadores vão definir o fim do Século XX, oficialmente, com a morte de Aldir Blanc vítima de COVID -19, na segunda década do Século XXI. E para piorar em muioto nossa situação, com uma carta testamento de Flavio Migliaccio. 



Entendeu? O Brasil que todos nós conhecemos morreu num CTI. Esta na lona. E nesse momento, tem vários corpos estendidos no chão...   




Nota: Ponto final do Gardenia Azul. Ela parecia um pardal e tinha jeito de trabalhar nas Lojas
Americanas. Nao pude resistir. Pegou bem no ouvidinho esquerdo:

- O nome Aldir Blanc significa algo pra voce?

Balão Cativo


Não gosto de diários, mas me lembro com se fosse hoje.  Naquele tempo uma ida de Cascadura a Copacabana, de ônibus, tardava umas duas intermináveis horas. Naquele dia, minha mãe tinha que resolver algum problema burocrático no Consulado Espanhol, que ficava justamente em Copacabana. Podíamos ter ido de trem até a Central, e dali pegar um ônibus até o destino, mas aquela rodoviária da Central nunca foi um lugar muito seguro e minha mãe procurava evitar. Naquele dia pegamos o ônibus 254, saltamos na frente da UERJ -  e aqui um parêntese: eu jamais imaginaria que naquele dia de 1982 eu estudaria naquela universidade. Dali pegávamos o 464. Nessas idas a Copacabana, eu não gostava do 464 por um detalhe específico. Quando ele saía da rua Riachuelo, cruzávamos os arcos da Lapa -  e sempre ao passar pela igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa, minha mãe me lembrava que ali tinha se casado com meu pai -  assim que acabava a rua Teixeira de Freitas o ônibus virava à direita, bem ali no prédio do IHGB, na Avenida Beira Mar, e ia por "dentro". Não dava para ver nada do Aterro do Flamengo. Na pista de dentro do Aterro, até o vento parece diferente, daquele que venta na pista de fora, perto da praia. 

Lembro que o Consulado ficava na Rua Duvivier, no predio ao lado do Beco das Garrafas. Ali trabalhava o Padre Pepe. Padre Pepe era um amanuense espanhol muito amigo da nossa família,  que trabalhava no Consulado há anos, e que tinha casado meus pais, na supracitada ibidem Igreja da Irmandade do Divino Espírito Santo da Lapa. Nesse dia específico, lembro bem, eu tinha 10 anos. Com 10 anos você é inocente. Mas eu sempre saia do Consulado com a certeza que o padre Pepe não ia com a minha cara. E fique certo de que a recíproca também era verdadeira, tanto é que minha mãe me dizia antes de entrar: Se comporta, não toca em nada, só abra a boca se falarem com você.  Uma mãe só diz isso a um filho, quando tem a certeza de que ele não é flor que se cheire.

Nessa época, nesse dia específico, eu ainda não desconfiava que o pilantra também tinha uma dona há anos. Mas aquilo era um tabu na família. Todo mundo sabia da amante do Padre Pepe, menos eu e minhas primas menores. Padre Pepe devia ser Franquista. E a possibilidade dele ser franquista me deixaria num futuro pretérito mais que perfeito, muito puto. Isso me deixa mais puto até hoje. Pari passu  ao condicional fato de ele ter vivido com uma mulher a vida toda -  isso realmente é o de menos - , o malandro atendia ao público num órgão governamental, público, laico, com a clérgima!

Enfim, eu nem queria falar dessa viagem longa e cansativa, nem do subúrbio, nem dessas ignomínias à clef de um padre pilantra, mas queria lembrar que nesse dia específico, saímos da rua Duvivier, e dobramos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana para voltarmos para casa. Perto do ponto do ônibus havia uma livraria. Minha mãe e eu, entramos nessa livraria. Nesse dia específico eu comprei meu primeiro livro... com minha própria graninha... Justamente do Flavio Migliaccio, que se suicidou hoje. 





...me lembro que a viagem de volta foi linda. E eu acabei de ler o livro, antes de chegar a Cascadura...

...essa coisa de ter uma memória péssima é horrível, apesar de lembrar de tudo... mas quase me esqueci desse fato... quase esqueci que As aventuras do Tio Maneco, passavam na televisão à tardinha, e que tinha 3 guris, um tio gente muito boa, um carro velho, um robô de lata...






Flavio... Poucos tem coragem de deixar uma carta tão corajosa....não foi em vão não, irmão... A gente apenas perdeu tua referência física... isso dói, não vou dizer que não... Tio Maneco, eu era aquele moleque que te acompanhava todos os dias a tardinha na TVE e aprendia um  monte de coisas, contigo e com o Daniel Azulay...

A carta deixada é soco no estômago de uma nação em ruínas...






Eu tava me sentindo muito infeliz...



Segunda à esquerda



Não, não se trata de grandeza

Mas do precário equilíbrio

Entre sofrer pelos outros

E rir de mim.

Pensando bem,

Ninguém me perguntou nada.

Com Licença


A casa era exatamente o que eu esperava. Um jardim, aquelas garrafinhas pra beija-flor, o maior sossego. Respirei fundo e fiquei repetindo pra mim mesmo: "Puxa! Eh impossível que alguém se sinta infeliz num lugar assim". Eu tava me
sentindo muito infeliz.

... pensei que pudesse largar o batuque e a brahma...

... ao menos, não desmente que te amei com a estupidez de um halterofilista, todo pedido teu
tornado lei, vassalo como um político arenista...

... eu nunca marco a derrota do meu time na loteria, me sinto um traidor...







Ponto final do Gardenia Azul. Ela parecia um pardal e tinha jeito de trabalhar nas Lojas Americanas. Não pude resistir. Pegou bem no ouvidinho esquerdo:

- O nome Aldir Blanc significa algo pra você?





25 DE ABRIL




Grândola Vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó Cidade
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto a igualdade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó Cidade
Dentro de ti ó Cidade, oh, oh, oh
Juro em ter a companheira
A sombra de uma azinheira
Que já não sabia a idade






Casablanca




Ontem assisti Casablanca pela décima oitava vez, talvez. Estava ali na tela do TCM… eu tava de boréstia, confinado e biritando , pra variar… e por que não? Casablanca. Casablanca é um desses mistérios que a gente não consegue explicar, mesmo. 

Não é um filme bom pra caramba. O roteiro tem um monte de furadas e clichês de filmes pastosos de amor. Não por acaso, Humberto Eco disse certa vez que a fraca verossimilhança psicológica dos personagens e as reviravoltas que ocorrem sem razões plausíveis tornam o filme fraco. Os atores, principalmente os militares, são meio caricatos. Além disso, a Ingrid Bergman, ainda que patinando numa série de filmes medianos, vinha de Intermezzo, e Humphrey Bogart vinha de nada mais nada menos Reliquia Macabra, The Maltese Falcon. 

Ou seja, Aceitar trabalhar em Casablanca, só pela grana mesmo. Por que no fundo, lendo o roteiro, parecia um filme apenas de propaganda anti-nazista.  E era mesmo, por que os produtores de Hollywood nunca estão de bobeira. Nunca dão ponto sem nó. Nunca chamam periquito de meu loro.

O roteiro era de um professor de escola de segundo grau, Murray Burnett,  em parceira com Joan Alison,  que o concebeu originalmente como uma peça de teatro. Isso no começo dos anos 30, quando Hitler nem era Hitler, Franco não era Franco, Mussolini apenas ensaiava ser Mussolini, por isso muitos dizem que o texto foi sendo complementado por 4 roteiristas durante as filmagens. A peça se chamava Everybody Comes to Rick's . Quando a coisa apertou na Europa, Burnett e a mulher se mandaram para lá, para repatriar dólares de parentes judeus para a América, e ali terminaram a peça. Reza a lenda que numa parte da viagem, pararam num bar no sul da França, que tinha ao piano um cantor negro americano, o que pode bem ter bem influenciado na escolha de Dooley Wilson para  o papel de Sam. Detalhe. Wilson era baterista na vida real, e não pianista. Então por que Casablanca se tornou Casablanca?  

Aí entra um conjunção quase aleatória de fatores.  O filme estréia em 26 de novembro de 1942, em Nova York, em plena Segunda Guerra. E antes de mais nada é importante dizer que o filme somente seria exibido na Europa em 1946 na Itália, e na Alemanha Oriental somente em 1983, diretamente na televisão! A première do filme foi antecipada devido a um fato histórico. Alguns dias antes, no dia 8 de novembro, as tropas aliadas (que se opunham à Alemanha de Hitler) invadiram a cidade marroquina de Casablanca que, até então, estava sob o domínio da França de Vichy.

Filmado em 3 meses, Casablanca conta a história de Rick Blaine, um americano amargo, machão, sentimental e cínico que vive e trabalha em Casablanca, onde tem um badalado café. O Rick’s Café é frequentado tanto por nazistas, como por funcionários franceses, estelionatários, compradores de ouro, malfeitores, biscateiros, apostadores, vigaristas, trabalhadoras da noite, biriteiros inofensivos, apontadores de jogo do bicho, dissidentes, maconheiros, músicos, artistas, fumadores de haxixe, Jesus, só coisa ruim. Numa noite, entra Ilsa Lund, o grande amor do passado de Rick, aparece em seu bar ao lado do marido, Victor Laszlo, herói da resistência tcheca. Dois anos antes ela tinha o deixado numa estação de Paris, sob chuva, esperando. La pelas tantas ele se lamenta com Sam…” de todos os botequins do mundo ela tinha que entrar justo no meu?” Está arrasado. E de repente vira-se para Sam e diz, “ se ela aguentou eu também aguento, toca ai Sam!” O reencontro dos ex-amantes reacende o amor entre eles e o sofrimento em Bogart. Mas o cara é foda! É Bogart porra! 

O sucesso de Casablanca pode ser considerado como o resultado de uma combinação de golpes de sorte  do destino ou acidentes de percurso. Além da pressa na filmagem, da questão do roteiro, alterado até o último minuto, a música quase deixa de ser  "As Time Goes By", de Herman Hupfeld, escrita em 1931. Max Steiner. O compositor da trilha sonora do filme, queria retirar a música e substituí-la por uma composição original, depois do filme acabado. Enfim, nesse meio tempo de pós-edição Ingrid Bergman já tinha cortado o cabelo curto, Bogart já ia começar a filmar Passagem para Marselha e enfrentavamais  um problema de separação com a atual mulher… enfim, ficou "As Time Goes By”.

A lenda mais inacreditável sobre o filme, é a que dá conta de que o ator principal, na pré-produção, não seria o Humphrey Bogart e sim Ronald Reagan. Felizmente Reagan teve de cumprir um serviço militar e Bogart pegou o papel.

O filme foi dirigido pelo húngaro Michael Curtiz, que filmou muito, mas um monte de filmes noir, bíblicos, com piratas, foras-da-lei, boxeadoresera considerado um faz tudo em Hollywood. Embrulhava e mandava. Está percebendo por que Casablanca não podia dar certo?

Humphrey Bogart costumava dizer que Casablanca era a melhor obra de sua filmografia. Isso pode ser um exagero. Eu gosto do Bogart, era um cara legal, era meio feio, meio magricela, e com boa vontade podia ser até um carioca do subúrbio. Mas ele as vezes mentia. A vida dele certamente mudou, mas não pelo filme…

Ele vinha de uma série de papéis de gangster e de detetives. A imagem dele era de cara durão e cínico. Tinha acabado de filmar a Reliquia Macabra, do Dasheill Hammett, pra mim um dos  melhores filmes e livros noir de todos os tempos.

Eu posso até concordar que a partir de Casablanca, Bogart se transformou numa espécie de manual, ou gramática expositiva de como um cara cínico e frio pode conquistar uma garota. Aquele cara que quando quer conquistar moça fala pouco, olha logo no olho e dá-lhe logo um beijo de tirar o ar. Todo mundo da minha geração e na anterior imitou alguma vez o Bogart. Quem não sonhou ser Bogart? Quem não? Fala ai? Andar por ai, entrar num bar ao lado de sujeitos meio sórdidos, meio Peter Lorre, que quando falam contigo, baixam os olhos entre medo e respeito. Puxar uma cadeira e estalar o dedo e pedir para o negão do violão, Flavinho, toca um Belchior aí! Depois vir uma garçonete toda derretida, e perguntar o que você quer… tipo, o que você quer ? (toda derretida).

Posso até concordar, mas o homem estava numa m... danada durante as filmagens. Antes de conhecer Lauren Bacall, mas isso foi bem depois, ele era um especialista em casar mal. Era só chave de cadeia que aparecia na vida do infeliz. Em Casablanca ele estava no terceiro relacionamento. Dizem as más línguas que era um cara muito fiel. Mas esse casamento era disparado o pior de todos, mesmo para um cara fiel e família e que dizia que todas as pessoas nasciam com 2 doses abaixo do normal. Casara-se com uma loura nem tão bonita, mas boazuda, alfabetizada e decotada, Mayo Methot. A.M. Sperber and Erick Lax contam em detalhes como essa vida a dois foi um inferno, não por ela ser má, mas é que depois de ¾ de uma garrafa de whisky, ela ficava um pouco alterada, ciumenta, possessiva, e quando esvaziava as garrafas mirava nos 3 Bogarts que via na frente. Por sorte ela sempre acertava o errado. Não bastasse as brigas em casa, Mayo ia várias vezes ao set de filmagem para arrumar quizumba com a Ingrid Bergman, que na época era casada com um dentista e comportadíssima. 

Em meio a esse inferno, ele tinha talvez, o primeiro papel dele que além de arrogante, cínico, feio, magricela, ele poderia finalmente mostrar que dentro do terno, havia um coração (essa frase ficou piegas, depois eu mudo)

Enfim, outro dia falo só de Humphrey Bogart. O que importa é que ainda não sei por que este filme é tão bom de assistir!

O Moleque

Xilogravura. Título.. Lima Barreto. Woodprint. 11x14". P.A. 1/1

O moleque é um conto irregular, mas muito legal de Lima Barreto. É cinematográfico, alias como quase tudo que ele escreve… vai por mim. O conto fala de bullying, de subúrbio, de religião, de racismo, de ritos de passagem com a beleza da ingenuidade que o cinema somente iria descobrir com neo-realismo italiano.   O narrador já sai de cara citando Elisee Reclus, geógrafo e anarquista militante, que tinha participado da Comuna de Paris. Vai vendo.  E argumenta que os nomes de lugares na Terra dos Papagaios, deveriam manter a grafia Tupy, por exprimirem melhor o sentido das coisas da natureza, tipo a cor da água, as formas dos rochedos nas montanhas, a vegetação e por aí vai. Mas, se você parar para pensar, essa preocupação de Barreto com a memória é política e faz muito sentido, já que  10 … 15 anos antes os republicanos refizeram bandeira, hino, símbolos nacionais, e até quase conseguiram apagar da memória que existiu escravidão na terra Brasil. 

No conto em si, ele vai traçando uma série de correlações geográficas e humanas, dentro do bairro de Inhaúma (!) um dos poucos bairros do subúrbio que na opinião dele guardavam nomes caboclos – subúrbio de gente pobre, cheio de velhas mangueiras, lugar de macumbas e feitiçarias.. Envolvido pela atmosfera da aldeia de Inhaúma, o leitor passa a conhecer o barracão em que mora D. Felismina – uma preta de meia idade, mas já sem atrativo algum - , espírita, mas contrária a bruxaria e ao feitiço. Vai vendo… Mais adiante, D. Emerenciana e Baiana que assim como D. Felismina, negras trabalhadoras que lavam roupas para fora para sobreviver.  José é o personagem central de uma história sem pai por perto. O moleque, em suas incursões à venda suburbana, onde costumava comprar sabão e, à casa dos fregueses nas quais costumava entregar as roupas limpas, é um garoto esperto e está ligado em tudo!  Nesse percurso, o garoto vai topando com uma série de figuras. Uma delas é o Coronel Castor (talvez uma espécie de Conde de Affonso Celso), que oferecera à sua mãe ajuda para que o garoto pudesse freqüentar a escola como os outros garotos de sua idade. Vai vendo….

O conto tem um acúmulo de sutilezas… que vão empilhando pequenas tensões.  Explico: Certo dia, José chega à casa do Coronel Castor chorando, sem querer revelar-lhe por que o fazia. O Coronel oferece-lhe uma fantasia de diabinho – era carnaval ishiquindôlêlê, aquela época do ano em que zera tudo -  em troca do seu segrego. Chegando em casa é recebido com desconfiança pela mãe, que sabia não ter o garoto dinheiro para comprar a fantasia. Um tanto constrangido pela desconfiança demonstrada pela mãe, tenta, ainda nervoso, esclarecer a situação: desejava assustar uns garotos, vizinhos do Coronel, que lhe tinham chamado de moleque, negro, gibi.
 Se esse conto daria um puta roteiro para um filme de neo-realismo (italiano), eu não tenho certeza, mas como sempre, tenho muitas desconfianças… sobre muita coisa…




O Moleque

Reclus, na sua Geografia Universal tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região. No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão eloquentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas.

— Niterói — água escondida.

Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.

Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.

Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.

O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.

Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.

Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho...

Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.

Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.

Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.

Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.

Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo.

E um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por que, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde.

É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.

Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso — o que era preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões históricas.

Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.

A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra que não tem querido guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por elas têm passado, ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene, soberba...

Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.

O "barracão" é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes "a sopapos". É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso "rancho" roceiro, possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dois aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.

Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira.

A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.

O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhora Romualdo, servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com dois filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.

A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:

— Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!

Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas essas raparigas por aí...

Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão — que lhe teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo — não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns "boas-noites", umas flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás — o que encontrasse – para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramilhete.

Todos da rua dos Maricás — era este o nome daquele trilho de Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias à ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe perguntavam quem era:

— Uma vagabunda.

Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era "rica". Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma coisa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua. Tinha "homem" enquanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca — uma menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por "Baianinha". E, ao ir às compras na venda, o caixeiro lhe dizia por brincadeira:

— "Baianinha", tua mãe é negra.

A pequena arrufava-se e respondia com indignação:

— Negra é tu, "seu" burro!

A Baiana, porém, era "rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o espiritismo, frequentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.

Certa vez salvou um dos filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que se emendaria.

Dona Felismina morava com o seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.

Tinha todos os traços de sua raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.

Era-lhe este seu filho o seu braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia à casa do "seu" Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:

— Zeca, vai à venda e traz dois tostões de sabão "regador".

Na venda, entre todo aquele pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitues do parati, como os há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento — entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:

— Caixeiro, "mi" serve já dois tostões de sabão "regador"!

Se o caixeiro estava atendendo à dona Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:

— "Mi despache", caixeiro! dois tostões de sabão "regador".

"Seu" Eduardo, o caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às compras, fazia docemente:

— Espere, menino. Você não vê que estou servindo, aqui, a dona Aninha!

A mãe tinha vontade de pô-lo no colégio; ela sentia a necessidade disso todas às vezes que era obrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a "seu" Frederico, aquele "branco" que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?

À tarde, Zeca descansava, brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.

Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda— Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantemente as "fitas" que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar também.

Como havia de ser uma "fita”? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que tudo aquilo falava?

Podia ter dinheiro para ir, pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...

Zeca, por seu procedimento, pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.

Muitos se interessavam com a mãe, para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único "homem".

Uma vez quase cedeu. O seu" Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:

— Não posso, "seu" coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem que é preciso aprender, saber, mas...

— Você vai lá para casa, Felismina; e não precisa estar se matando.

Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão — uma espécie de protesto de posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham mais enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe pelas suas necessidades.

Certo dia, em começo do ano, o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.

— Foi tua mãe?

— Não, "seu" coronel.

— Que foi, então, Zeca?

O pequeno não quis dizer e não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.

A atitude do pequeno, a sua recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.

— Dize, Zeca. Dize que eu te darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.

O pretinho levantou a cabeça e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.

Confessou; e Castro nada disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.

Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a roupa branca que estivera a secar.

Atarefada com esse serviço, ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara de "diabo".

Dona Felismina veio para o interior do barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca, distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de pinho estendeu uma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.

A mãe, ao barulho dos guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:

— Zeca, que é isso?

Uma visão dolorosa lhe chegou aos olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:

— Que é isso, Zeca? Onde você arranjou isso?

— Não... mamãe... não...

— Você roubou, meu filho?... Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você arranjou isso, Zeca?

A pobre mulher quase chorava e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:

— Mas... mamãe... não foi assim...

— Como foi? Diz!

— Foi "seu" Castro quem me deu. Eu não pedi...

Dona Felismina sossegou e o pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:

— Mas para que você quer isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para gente rica, que pode. Enfim...

— Mas, mamãe, eu aceitei, porque precisava.

— Disto! Ninguém precisa disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!

— Eu precisava, sim senhora.

— Como, você precisava?

— Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! — ó moleque! – o negro! — ó gibi!? Não lhe contei?

— Contou-me; e daí?

— Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.

— Que tem uma coisa com a outra?

— Queria amanhã passar por lã e meter medo aos meninos que me vaiaram

Música do dia. Bola de Meia, Bola de gude. Milton Nascimento